Tendo em conta as últimas novelas que a SIC estreou ("Sangue Oculto", "Flor sem Tempo" e "Lua de Mel"), que deixaram bastante a desejar (pelo menos para o nosso gosto, mais habituado a coisas, enfim, mais coesas), as nossas expectativas em relação a "Papel Principal" estavam baixas. Muito baixas. E, por isso, não íamos preparados para a montanha russa de energia e loucura que foi o primeiro episódio da trama que mostra os bastidores do mundo do espectáculo.
Carolina Carvalho e Ângelo Rodrigues são Aurora e Fred, o par romântico da história escrita por Ana Casaca. Conheceram-se no casting para a série juvenil "Os Eleitos" (uma espécie de "Morangos com Açúcar"), apaixonaram-se, depois veio a vida e o destino e Fred foi para longe. Para voltar, claro, porque o amor e tal.
De volta ao presente, Aurora é estrela do teatro, da TV, uma miúda querida mas um bocado totó que é um pau mandado de toda a gente, desde o encenador Marcelo Pimenta (Joaquim Monchique) até à mãe Irene (Mafalda Vilhena).
E, antes de desfiarmos todos os nossos pensamentos sobre o primeiro episódio da nova novela da SIC, vamos já deitar isto cá para fora: Mafalda Vilhena está assombrosa no papel de megera gananciosa e velhaca, de momager estilo Kris Jenner, disposta a esmifrar a filha até ao osso.
A cena em que percorre os bastidores do estúdio de televisão onde é gravada a sitcom "A Casa da Aurora", além de magistralmente coreografada (assim dá gosto ver televisão), demonstra a capacidade incrível da atriz de dar corpo e voz a esta personagem: uma trambiqueira do piorio, com uma ambição sem limites, e que é capaz de tudo (de tudo mesmo) para subir na vida.
Mas a maldade de Irene vai rivalizar com certeza com a de Lúcia Rocha (Margarida Vila-Nova), a miúda talentosa mas que, devido a chantagens várias de Irene ao guionista da série, é preterida a favor de Aurora e passa o resto da vida com dores inimagináveis, não só de cotovelo, mas físicas e reais. Mas já lá vamos.
A fasquia está alta, uma vez que estamos a falar da atriz que deu vida a uma das vilãs mais icónicas da ficção portuguesa, a Maria Laurinda de "Tempo de Viver" mas, a avaliar pelo primeiro episódio (e por aquele tique nervoso na narina, algo que só um ator de excelência conseguiria acrescentar a uma personagem para lhe dar ainda mais veracidade), os telespectadores vão poder ver muitas sacanices (e muito desespero) por parte de Lúcia e do seu irmão chunga mas muito fofo, Paulo, interpretado de forma irrepreensível por José Mata, que vai ao pormenor delicioso de usar de forma propositadamente incorreta a língua portuguesa, com expressões como "quem é que despediu-te?" e "dissestes".
Novela portuguesa que se preze tem sempre de tentar ter uma cena de ação que não faz qualquer sentido. E, em "Papel Principal", calha ser a do assalto a uma casa em plena luz do dia, levada a cabo por Paulo e Lúcia. Os irmãos decidem assaltar uma casa no centro da vila de Sintra e, sem surpresas, não só o alarme dispara como a polícia vai logo atrás deles. Lúcia e Paulo são os piores assaltantes de Portugal e arredores porque não só o fazem durante o dia, como num carro azul berrante, e num local onde a probabilidade de encontrar uma carrinha de cargas e descargas ou uma excursão de turistas a bloquear o caminho é enorme.
Mas, claro, safam-se e é aí que percebemos que Maria Laurinda - ai, desculpem - , aliás, Lúcia, tem um problema físico. Sai flashback e eis a explicação: depois de ter sido rejeitada para a série juvenil, a jovem Lúcia confronta Irene, que não só a insulta como a atira para uma pilha de lixo. Ao tentar levantar-se, Lúcia é atingida por um Citroën 2 cavalos igualzinho ao da série "Duarte e Companhia". Esta miúda tem mesmo de começar a andar de transportes públicos, porque já vimos que os carros não querem nada com ela.
Adiante.
Ângelo é uma espécie de Don Corleone do Bairro Horizonte, um meliante de quinta categoria tão bem interpretado por Marco d'Almeida que, por nós, já está no top dos melhores vilões manhosos da ficção portuguesa, juntamente com o Arruda (Albano Jerónimo) da série da Netflix "Rabo de Peixe". Os irmãos Lúcia e Paulo estão nas mãos de Ângelo e vão ver-se e desejar-se para cumprir o que prometeram. A vida da família Peixoto vai de mal a pior uma vez que a avó Fernanda (Márcia Breia) foi despedida por Irene do Teatro Paraíso, onde trabalhava há 30 anos. Megera, como dissemos anteriormente.
À semelhança de "Festa é Festa", da TVI, "Papel Principal" brilha e destaca-se de todas as novelas feitas nos últimos tempos não só pela comicidade, mas também pela contracena. Ou seja, a escolha destes atores, pela sua experiência, foi essencial para que o texto se agigantasse. E isso é perfeitamente visível na cena do bar em que estão presentes o casal Miguel (Renato Godinho) e Silvina (Patrícia Tavares), Denise (Sofia Arruda) e Marcelo (Joaquim Monchique). Miguel é, juntamente com Aurora, protagonista do musical "Lisboa Não sejas Estrangeira" e da sitcom "A Casa da Aurora". Algo com que Silvina tem dificuldade em lidar, fazendo cenas de ciúme inacreditáveis (e hilariantes).
Sofia Arruda, que já tem dado provas do seu enorme talento em comédia na peça de teatro "Mais Respeito que sou Tua Mãe" e na série da SIC "Patrões Fora", faz em "Papel Principal" de falsa loura burra, que atira ideias aparentemente parvas para o ar... e que depois são apanhadas de surra por Marcelo.
A nova trama da SIC marca a estreia de Joaquim Monchique nas novelas portuguesas, e a personagem não podia ter sido melhor escolhida.
Temos de dizer isto: ou Carolina Carvalho é demasiado boa atriz para fazer da choninhas Aurora ou a história ainda vai dar uma grande volta. É que a personagem principal irrita de tão boazinha, tão queridinha, tão amiguinha de toda a gente, tão "ó, o gajo que me deixou há 10 anos voltou e está tudo bem, somos amigos na mesma!".
Claro que Aurora, como todas as Auroras desta vida, só atrai gente que não interessa nem ao menino Jesus. E é a própria que o diz, embora com um sorriso tão rasgado que dá assim ares de Joker. "Nunca me senti tão sozinha, só tenho trastes. Mais valia assumir que vou ficar sozinha para sempre". Calma, amiga.
E por falar em gajos, eis que chega Fred (Ângelo Rodrigues). Impávido e sereno, passa completamente despercebido entre a multidão, apesar de ter sido uma superestrela de televisão há uma década. Será que fez uma plástica? Será que há uma espécie de amnésia coletiva? É que eu vejo fotos minhas de há 1o anos e, mais ruga menos ruga, estou igual.
Coisas da ficção.
Íamos questionar porque é que Aurora aparece com uma peruca afro estilos anos 70 no musical "Lisboa Não sejas Estrangeira" mas não estamos com capacidade para lidar com essa situação. Quem também não está a saber lidar com a vida em geral (sobretudo porque corre o risco de lhe ser amputada uma perna) é Lúcia, que vai até ao teatro de faca na mão, disposta a vingar-se da sua arquirrival.
Terminado o musical, ficamos confusos e sem saber se isto se passa em Portugal ou na Broadway, tal é quantidade de fãs loucos que esperam à porta por Aurora e Miguel. Ainda mais estranho é o facto de pedirem autógrafos em vez de selfies à atriz, mas espetarem o telemóvel na cara do ator.
Nós sabemos que este é apenas o primeiro episódio mas... que raio de relação têm Aurora e Fred? São amigos? Não são? Que raio de intimidade é esta? E porque é que Aurora diz "vou enviar-te a location" em vez de "i'm going to send you the localização?". Confuso.
Esta noite ficaremos a saber se Maria Laurinda - ai, caraças! - Lúcia espetou a naifa em Aurora ou se apenas a usou para descascar uma maçã.
O melhor
- A incrível frase de Miguel, o diretor de casting de "Os Eleitos", desesperado pela falta de talento das candidatas: "só me apetece beber gasolina e fazer motocross";
- o triângulo amoroso Irene (Mafalda Vilhena), Júlio (António Fonseca) e Marcelo (Joaquim Monchique);
- Renato Godinho e Patrícia Tavares, que interpretam o casal Miguel e Silvina, a terem uma das melhores químicas no ecrã que já vimos nos últimos tempos;
- o ritmo alucinante do primeiro episódio, sem tempos mortos nem cenas a despropósito;
- a fotografia, que faz saltar as cores vivas dos cenários e do guarda-roupa.
O que pode ser melhorado
- Ângelo Rodrigues: há qualquer coisa que não funciona neste Fred. A imagem do ator na vida real está exatamente igual à da personagem. Não há absolutamente nada, do cabelo à barba, passando pela própria roupa, que distinga o ator da personagem. E o ritmo também é dissonante. Parece que o restante elenco está sob o efeito de cinco chávenas de café ao passo que Ângelo Rodrigues bebeu um chá de camomila morninho;
- As letras e as coreografias do musical "Lisboa Não sejas Estrangeira" são fraquinhas. Muito fraquinhas. "Ai minha Lisboa / cidade encantadora / sardinhas, bacalhau e gente acolhedora / O sol brilha forte / o mar está já ali / tudo o que eu mais quero / é viver aqui". Bom para um anúncio da Remax para estrangeiros com guito para comprar casa na capital, estranho para uma peça de teatro musical com ares de revista. E "o sol brilha forte até de madrugada"? Não, não brilha. Não somos nós que dizemos, são as leis da Física.