Em novembro de 2019, um submarino era intercetado na Galiza. Lá dentro, além de três tripulantes, trazia três toneladas de droga. Esta história verídica, cujo desfecho judicial ainda está pendente, inspira aquela que é a primeira produção luso-espanhola para uma plataforma de streaming — neste caso, a Amazon Prime Video.
A série, que chegará à plataforma no segundo semestre de 2022, é uma verdadeira operação ibérica: Ficción Producciones e Ukbar Filmes (produtoras galega e portuguesa que já tinham trabalhado em parceria na série da RTP "A Espia"), RTP e TV Galicia compõem a task force que concretizou o primeiro produto de ficção ibérico a ser divulgado em streaming.
"Operação Maré Negra", gravada entre Portugal e Espanha, foi planeada em tempo recorde: em apenas um mês e meio de pré-produção, estava montada a operação, cujas gravações terminaram em setembro.
O elenco é também ele composto por talento internacional: Aléx González (ator espanhol, protagonista da série "O Príncipe"), David Trejos (ator colombiano, "Estrella del Sur"), Leandro Firmino e Bruno Gagliasso (atores brasileiros, sobejamente conhecidos entre o público português) e os portugueses Nuno Lopes e Lúcia Moniz encabeçam a a lista de atores da série.
A MAGG visitou um dos locais de gravações da série. Bertiandos, freguesia de Ponte de Lima, foi o local escolhido para recriar a selva amazónica, onde os homens que iniciaram esta aventura que parecia impossível saíram, atravessando depois o oceano Atlântico até à Galiza.
Em "Operação Maré Negra", Nuno Lopes é Sérgio. Esta é a segunda série que o ator de 43 anos faz para uma plataforma de streaming. Depois de ter vestido a pele de Boxer em "White Lines", da Netflix, Lopes é um dos narcotraficantes envolvidos na odisseia deste submarino que fez o improvável percurso desde a América Latina até à Galiza.
Com sete novos projetos, todos ainda por estrear (três séries, entre as quais "Operação Maré Negra" e quatro filmes, dois portugueses e dois franceses), Nuno Lopes diz, com uma refrescante honestidade, que nunca procurou a internacionalização. Em conversa com um grupo de jornalistas portugueses, no qual a MAGG esteve integrada, durante a visita ao set de gravações de "Operação Maré Negra", o ator que também é DJ fala sobre o desejo de desafios e de boas histórias.
Em 2003, fez uma curta-metragem com Leandro Firmino. Como foi reencontrá-lo nesta série?
Sim, “O Corneteiro Lopes”. Foi há 20 quilos atrás (risos). Foi muito engraçado porque nós não nos víamos desde essa altura. Ele não mudou nada! Está um pouquinho mais velho e mais gordo, como eu, mas fora isso, está igual. Continua a ser uma pessoa amorosa e divertida, e foi muito bom voltar a revê-lo agora, tal como ao Bruno [Gagliasso].
Quem é a sua personagem, o Sérgio?
O Sérgio é um dos melhores amigos do Nando [Aléx González]. É uma criança grande. É um homem que, apesar de ter a minha idade, ainda se comporta como se tivesse 18 anos. É um tipo que cresceu pobre, tornou-se mecânico de barcos e que, finalmente, graças à droga, está a ganhar algum dinheiro para cumprir alguns sonhos.
No caso dele, como é um bon vivant, tem que ver com comprar roupas de surf, divertir-se, sair à noite e dar nas drogas. Como ele diz na série “eu não tenho espírito de Pablo Escobar”. Ele quer é divertir-se um pouco, ganhar um dinheirinho e, de repente, vê-se metido numa coisa que é maior que ele e maior do que tudo isso. É também o tipo que, mesmo que de uma maneira inconsciente, leva o Nando para o mundo das drogas. É a chamada má companhia, apesar de não ser um tipo mau.
O que é que lhe trouxe esta personagem?
Uma das grandes coisas que me faz estar aqui é o facto desta personagem ser muito diferente das que eu tenho interpretado, sobretudo fora de Portugal. Ultimamente têm sido sempre os amantes latinos, o tipo que seduz. Ou, como em "White Lines", uma figura icónica, um romântico… Este não tem nada esse lado. Pelo contrário. É um miúdo grande, um tipo divertido e meio inocente, até. Esse lado tem-me divertido bastante.
Aléx González disse que tiveram uma química “quase imediata” quando gravaram uma das cenas, passadas numa lancha, ao longo de 11 horas.
Sim. Nós conhecemo-nos num ensaio e estivemos uma hora juntos. Foi imediata a química, logo aí. Nos primeiros dois dias de rodagem estivemos os dois, sozinhos, numa lancha durante 11 horas, para aí. Felizmente demo-nos bem, porque se fosse com um ator de que não gostasse ia ser horrível. E foi muito importante para a criação das nossas personagens porque eles são amigos de infância. Quando começa a série, eles já não se viam há algum tempo e foi fundamental para nos conhecemos melhor, para eu perceber o que é que o faz rir, para ele perceber o que é que me faz rir, e ajudou bastante a que, agora, nas cenas, sejamos capazes de puxar um pelo outro.
O que estava escrito era uma coisa e, de repente, com esses dois dias na lancha, e com a conversa que tivemos com o Daniel [Calparsoro, um dos realizadores da série], as personagens tornarem-se quase opostas ao que estava escrito. Às vezes, há atores com quem filmamos a vida toda e nunca conseguimos ter química e, outras vezes, há atores com quem te sentas 10 minutos a falar e percebes que vais ser amigo daquela pessoa para o resto da vida. E com o Aléx foi assim.
Há pouco falava sobre os papéis que tem interpretado e como este é diferente, Como é que olha para o futuro da ficção, devido às plataformas de streaming?
A grande mais valia das plataformas [de streaming] foi justamente deixar de ser um preconceito sobre aquilo que eram as personagens. Falando do "White Lines": há dez anos aquela série seria feita só por ingleses que soubessem falar espanhol e o meu personagem seria feito por um inglês que falasse espanhol e que dizia, às tantas, que era português.
No meu caso, foram buscar um português para falar espanhol numa série inglesa. Isso nunca se passaria há dez anos. Nesse sentido, as plataformas são muito responsáveis por isso. Por ter havido sucessos de países que não são de língua inglesa, como "La Casa de Papel", em Espanha, como "Dark"... De repente, começou-se a ouvir outras línguas, a conhecer-se outros atores e a querer-se investir-se noutros países, a querer-se olhar para essas pessoas como pessoas únicas e não como um estereótipo do que é um dinamarquês, um português ou um italiano.
Uma das grandes mais valias, e problema ao mesmo tempo, foi que os portugueses não tinham um estereótipo. Como, por exemplo, os italianos, em que vês logo a pizza e o bigode, ou o francês, que é o romântico que fuma. O português não tinha um estereótipo. Para o bem e para o mal. O facto de se estar a fazer séries como esta, pode ser que se perceba que os portugueses são vários tipos de pessoas. O streaming ajuda muito nesse sentido. A aposta das plataformas de streaming nos vários países tem sempre que ver com o tipo de aposta que se tem. Por exemplo: eu demorei dez meses a fazer o "White Lines". E é uma série de dez episódios. Espero que as plataformas como a Amazon, como a HBO, como a Netflix, apostem em Portugal mas que apostem com esse tipo de envolvimento. Se apostarem em séries que vão ser feitas em mês e meio, não há qualidade que salve. O investimento tem de ser proporcional ao nome da plataforma. Esse é não o meu receio, mas a minha curiosidade sobre o futuro das plataformas.
"Não tenho desejo nenhum de ser um ator internacional. Tenho desejo de contar histórias e de ser desafiado"
Este elenco tem atores de várias nacionalidades. Como foi trabalhar com tanta gente diferente?
Foi incrivelmente fácil. Muitas vezes sentes esse choque de culturas mas aqui, não. Para já, estávamos a trabalhar na Galiza. Mesmo a própria língua, o galego, é muito mais próxima do português de Portugal. Isso aproximou-nos muito, aos espanhóis, portugueses e brasileiros. Parte da facilidade tem que ver com isso, com estarmos a filmar na Galiza e não em Madrid ou Barcelona. É muito bom poder participar numa série onde, de repente, estamos sentados, e o ator que faz de brasileiro é realmente um ator brasileiro bom. De repente, estamos à mesa, a jantar, e estamos a falar de problemas políticos que se passam no Brasil neste momento, e estamos a conhecer um bocadinho.
Falando a nível pessoal, interessa-me muito esse tipo de conhecimento porque estamos a ouvir em primeira mão como é que as pessoas se sentem do outro lado. Nesse sentido, é muito tocante. É um privilégio muito grande poder estar a fazer uma série que junta pessoas de vários sítios. Até a fazer as cenas, estamos constantemente a lidar [com isso]. Estamos a fazer uma cena e diz-me o David “ui, se fizesses isso na Colômbia! Não podias, estavas feito, eras morto”. Nós vamo-nos conhecendo uns aos outros, as culturas de cada um, consoante o que vamos discutindo até para o próprio trabalho.
Como é que lida com a progressiva internacionalização da sua carreira?
Não tenho desejo nenhum de ser um ator internacional. Tenho desejo de contar histórias e de ser desafiado. Eu gosto de filmar e, infelizmente, não fazemos muitas séries em Portugal. E fazemos dez filmes por ano. Ter um personagem num filme português por ano já é uma sorte. E eu sou uma das pessoas que tem mais sorte no panorama nacional porque filmo muito em Portugal. Eu só sou um ator internacional porque, de facto, temos pouco em Portugal e eu desejo ser desafiado. Já trabalhei com uma data de pessoas com quem queria trabalhar, e quero mais.
E, às vezes, tem de se ir buscar lá fora. Mas não tenho nenhum interesse em ser um ator internacional. Acontece porque estou atrás de trabalhar com certas pessoas, em certo tipo de histórias, de ser desafiado, e isso leva-me, infelizmente, a ter de sair do meu País. Espero que isso mude e que, algum dia, eu possa estar mais perto de casa, até porque estou farto de viajar (risos). Não estou farto, mas já ia a Lisboa umas vezes sem ser de férias.
Tem estado a entrar e sair de personagens a um ritmo alucinante. Como é que lida com isso?
Aconteceu um coisa com a pandemia. Primeiro, eu não queria estar em casa, parado, porque estava a dar em maluco. Depois, as produções deixaram de ter uma data específica, por causa das restrições. Eu tinha para aí quatro projetos em que tinha um mês de intervalo entre cada um, o que é um sonho e, de repente, acabo este, começo outro dois dias depois. Antes de vir para aqui, no dia anterior, estava a fazer um filme francês. Essa mudança de personagens tem sido um bocadinho difícil mas, infelizmente, tem que ver com o facto de estarmos a viver este momento da pandemia. Não há grande volta a dar, já é uma sorte conseguirmos estar a filmar.
Sente que, no último ano e meio, não só devido à série "White Lines" mas também ao facto de ter participado nos diretos do Bruno Nogueira, "Como é que o Bicho Mexe", o público português se voltou a apaixonar por si?
Adorava saber dizer-lhe isso, mas não sei! Com o “White Lines” senti uma grande diferença mas, lá está, mas sinto de uma maneira muito distante, através das redes sociais. Porque o "White Lines" começou duas semanas depois de ter começado a pandemia. Desde esse boom de que fala, do Bruno Nogueira, do "White Lines", eu não estive ainda com pessoas (risos)! É uma coisa que eu sinto muito quando vou tocar como DJ, o tipo de pessoas que às vezes estão tem que ver com aquilo que estou a fazer. Agora não tenho tocado, portanto não faço ideia.
Esta internacionalização através de uma série portuguesa, que vai passar em diversos países, pode ser uma forma de trazer aos governantes uma nova visão, de trazer maior investimento para esta área?
Os governantes mexem-se sempre mais quando há sucesso lá fora. Por um lado, isso pode acontecer. Por outro, nós já tivemos tantos sucessos de cultura lá fora! O cinema português tem constantemente provado que é extraordinário. Ganha prémios, está presente em todos os festivais. Não há razão para que o Estado já não se tivesse chegado à frente com mais dinheiro, com mais investimento na cultura portuguesa. Há um lado que, confesso, já não tenho muita esperança.
Nem por ser uma plataforma mais comercial?
Acho que vai trazer outro tipo de benefícios, mas os benefícios que virão são também comerciais. Ou seja, se nós tivermos um sucesso como "La Casa de Papel", isso vai trazer-nos mais séries como "La Casa de Papel". O que é bom, e pode ser que tenha uma repercussão no cinema de autor. Mas acho que, na verdade, o papel do Estado não devia estar dependente de sucessos e, se estivesse, nós já demos mais do que provas de sermos bem sucedidos.