Estávamos em meados de fevereiro de 1980 quando Tommaso Buscetta, um dos membros mais importantes da máfia italiana, começava a duvidar da lealdade que vinculava todos os membros a um código de silêncio. Com 52 anos, partiu para o Brasil com o objetivo de fugir à segunda guerra da máfia liderada por Salvatore Riina — considerado o chefe de todos os chefes da Cosa Nostra até 2017, altura em que morreu vítima de cancro.

Dos dois conflitos que opuseram várias organizações criminosas, resultaram dezenas de mortes e o fim do secretismo do poder e influência da máfia na sociedade italiana. Mas ainda que estivesse longe, Tommaso Buscetta viu a sua família e amigos serem afetados pelos confrontos. Além do desaparecimento de dois dos seus oito filhos, o confronto levou-lhe ainda o irmão, o cunhado e quatro dos seus sobrinhos.

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Em outubro de 1983, foi preso em São Paulo, Brasil, para ser extraditado para Itália um ano depois. Desgraçado pela violência de Salvatore Riina, o líder mafioso que ficou conhecido por matar mulheres, crianças e inocentes só para distrair agentes da polícia, decidiu suicidar-se através da ingestão de comprimidos. Mas sobreviveu.

Quando voltou a acordar, Tommaso Buscetta tomou a decisão que viria a mudar por completo toda a história da máfia. Pediu uma reunião com Giovanni Falcone, o juiz que marcou toda a sua carreira por ser contra a influência da máfia, e tornou-se no primeiro "bufo" oficial, ou pentito (informador, em português), da polícia.

E ainda que, em 1977, Leonardo Vitale tenha entrado numa esquadra da polícia e confessado que era mafioso e que tinha estado envolvido numa série de homicídios, o seu testemunho não foi levado a sério. Na altura, a máfia era um tema pouco discutido e não havia provas da sua existência.

Pelo contrário, Buscetta cooperou ativamente com a polícia, integrou o programa de proteção de testemunhas e o seu testemunho derrubou 400 mafiosos. Na altura, e tal como escreve o jornal "The Irish TImes", o mafioso nunca procurou uma saída fácil e assumiu sempre os crimes que tinha cometido.

"Não sou um espião. Fui um mafioso e fiz muitas coisas erradas pelas quais estou preparado para pagar o preço à sociedade." Mas aquele que era, até então, um dos homens com mais poder dentro da Cosa Nostra a revoltar-se contra a organização, sabia do impacto que aquela decisão iria ter.

"Em primeiro lugar, eles vão tentar matar-me. Depois vai ser a tua vez e não vão descansar enquanto não tiverem sucesso", terá dito a Falcone. O mafioso, que ainda hoje é conhecido com o primeiro traidor, escapou ileso ao julgamento e viveu até meados de 2000, altura em que morreu aos 71 anos vítima de cancro.

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Mas Giovanni Falcone, o juiz que liderou o caso, morreu vítima de um atentado à bomba em maio de 1992. O criminoso arrependido, que até então tinha evitado revelar os nomes de políticos que tivessem ligações com a máfia, viu-se obrigado a mudar de estratégia.

Ainda que na altura dissesse que o tempo de revelar nomes dos mais poderosos não era oportuno, a morte de Falcone mostrou precisamente o contrário. Para minimizar o alcance da Cosa Nostra, era necessário debilitá-la. E isso passava por atingir quem a financiava e quem permitia que continuasse a agir à margem da lei.

Segundo o "The Irish Times", o primeiro grande nome foi revelado em 1993 e dizia respeito a Giulio Andreotti, o governante italiano que cumpriu sete mandatos faseados enquanto primeiro ministro e que terá beneficiado de inúmeros assassinatos levados a cabo pela máfia.

Quando, em julgamento, os advogados da defesa de Andreotti perguntaram a Buscetta se esta informação era baseada em especulação ou factos, o informador foi implacável: aquela verdade era baseada na vida real e no seu percurso enquanto mafioso de uma das organizações mais perigosas do mundo.

No entanto, o tribunal não reconheceu validade à acusação e as informações de Buscetta sobre o governante não chegaram para uma condenação.

A história de Tommaso Buscetta está repleta de violência, informações complexas e revelações surpreendentes que mudaram para sempre a forma de se olhar para a máfia italiana. Tanto o é que Marco Bellocchio, o realizador italiano de renome, decidiu adaptar a vida do criminoso arrependido para o cinema.

A nova grande produção do realizador chama-se "O Traidor" e foi um dos filmes a concorrer no Festival de Cinema de Cannes, em França, em maio deste ano. Cinco meses depois, chega agora às salas de cinema portuguesas a partir de quinta-feira, 24 de outubro.

Eurico de Barros, crítico e entusiasta de cinema, já teve oportunidade de ver o filme e recomenda-o no "Observador" por retratar a história de um homem a quem lhe repugnaram "os métodos violentos e arbitrários de Riina [chefe da Cosa Nostra], que não recuava ante mandar matar mulheres, crianças e parentes inocentes de membros da organização, o que ia contra o seu código de comportamento tradicional."

E continua: "Bellocchio recria com grande rigor e sentido dramático os interrogatórios e os julgamentos coletivos dos mafiosos, e 'O Traidor' contém ainda uma sequência inesquecível, a do atentado ao juiz Giovanni Falcone em 1992, para o qual os criminosos fizeram explodir um troço inteiro da autoestrada de Palermo, e que graças aos efeitos digitais vemos de dentro do carro em que aquele, a mulher e três guarda-costas da polícia seguiam."

No elenco de "O Traidor" fazem parte nomes como Pierfrancesco Favino, Luigi Lo Cascio, Fausto Russo Alesi e a brasileira Maria Fernanda Cândido.