O rosto é o de Ana Moreira, mas a dor e o sofrimento que lhe aceleram o envelhecimento no ecrã pertencem a Isabel. Em "Sombra", o filme realizado e escrito por Bruno Gascon que chega esta quinta-feira, 14 de outubro, aos cinemas, a atriz dá vida a uma mulher obrigada a travar duas lutas diferentes: o desaparecimento repentino do filho e a incompetência da polícia cuja incapacidade de dar resposta às exigências de um caso destes faz diminuir as probabilidades de que a criança seja encontrada.
Após o convite direto para o projeto, estendido pelo realizador Bruno Gascon e pela produtora Joana Domingues, da Caracol Studios, Ana Moreira percebeu exatamente que tipo de personagem tinha em mãos.
"Eu e o Bruno tivemos algumas reuniões, através das quais ele me foi explicando o guião, a personagem e me foi falando sobre as razões que o motivavam a fazer este filme", conta-nos a atriz por telefone. Com "Sombra" prestes a chegar às salas de cinema portuguesas, depois de ter sido duplamente premiado no Festival de Cinema de Barcelona, a atriz acredita que estas conversas terão servido para a preparar para a dureza da história a que ia dar corpo.
"Era um guião complicado com uma história densa e emocionalmente exigente. Percebi que iria implicar uma enorme viagem ao longo da rodagem do filme", que é estendido no tempo, já que aborda cerca de 15 anos de história.
E esta história remete-nos para o caso de Rui Pedro, a criança que, em 1998, desapareceu da região de Lousada, onde vivia com o pais, e até hoje nunca mais foi vista. "Terminada a primeira leitura do guião, falámos do caso da Filomena Teixeira [a mãe de Rui Pedro], que foi o mais mediático, e que ainda hoje habita na nossa memória coletiva. De alguma maneira, fazemos parte de uma geração que ainda tem muitas lembranças sobre o que foi saíndo na imprensa sobre o caso."
Mas embora haja uma sensação de perda no filme, motivado pelo rapto de uma criança, podia ser qualquer outro tipo de perda numa história que se apresenta como transversal e de fácil identificação em qualquer parte do mundo.
"Embora o filme esteja geograficamente contextualizado em Portugal e com uma história que nos é muito conhecida, é uma produção que se quer abrir ao mundo e que é identificável em qualquer parte", reforça a atriz.
"Enquanto não houver provas do contrário, é impossível acreditarem que os filhos nunca vão ser encontrados"
Filomena Teixeira, com quem Ana Moreira se encontrou, "teve a generosidade de falar da sua história, que é tão cruel e tão violenta", mas diz-nos a atriz que foi "extremamente importante para a construção desta personagem". "Senti que conheci uma mulher muito especial, que nunca desistiu, continua a batalhar, e que tem nela a esperança de voltar a ver o filho. Nunca a senti uma mulher negativa ou muito triste. É uma presença muito agradável de se ter, mas que tem uma história muito dura de vida."
Mas a história de Filomena foi apenas uma das muitas que Ana Moreira teve oportunidade de ler ou ouvir. Os encontros com mães de crianças desaparecidas fez parte do processo de construção da sua personagem já que, sem elas, "não seria possível conhecer-lhes a intimidade e a esperança de encontrarem os filhos à medida que vivem, diariamente, com a ausência".
"Para estas mães, há sempre uma luz ao fundo do túnel. Há sempre uma esperança. Enquanto não houver provas do contrário, é impossível acreditarem que os filhos morreram ou que nunca vão ser encontrados." É como se a vida tivesse continuado, menos para elas. "São vidas em suspenso, habituadas à noção de ausência, e sem o contacto que tive com elas teria sido muito difícil para mim, enquanto atriz, perceber a dimensão da dor, mas também a esperança que carregam no olhar", refere Ana Moreira.
O facto de ser um projeto que se estende no tempo e que passa por vários períodos tem outra exigência. Teve de haver um "grande trabalho de caracterização para marcar, no envelhecimento da personagem, toda a angústia face ao que lhe vai acontecendo", explica a atriz. Mas também obriga a uma abordagem "mais interior" e com maior atenção às sensibilidades da intérprete.
O desafio talvez não seja novo. A carreira de Ana Moreira tem vindo a ser pautada por aquilo que, nas suas palavras, descreve como a interpretação de "mulheres fortes, complexas e com um lado mais negro, porque são essas as mais desafiantes" e os guiões que lhe chegam dão conta disso mesmo. "Não me têm calhado personagens mais glamorosas, talvez por um acaso, ou porque os realizadores e argumentistas acham que tenho mais perfil para fazer uma coisa em vez de outra", diz.
Sobre se é fácil despir a pele destas personagens após as filmagens, Ana Moreira prefere outra tese. "Não é uma questão de ser fácil ou não. É mesmo necessário praticar o desapego, para que possa haver renovação e o ator consiga passar para outra personagem."
Mas há qualquer coisa destas figuras, meramente fictícias, e que a certa altura parecem ganhar vida própria, que fica.
"De alguma maneira, não se fica igual. Há qualquer coisa que acontece, mas trabalho este desapego. Não é esquecer-me das personagens, porque elas continuam cá, até porque fui eu que as criei. Mas se não te livras delas, pode ser perigoso. Pode não ser saudável para um intérprete e ator", diz.
A importância do respeito e a ausência do luto
A ideia para este "Sombra", feito em parceria com a Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas, diz-nos o realizador e argumentista Bruno Gascon, estava arrumada na gaveta há algum tempo. Foi quando surgiu a oportunidade de falar com famílias de crianças desaparecidas que o próprio sentiu ter as ferramentas necessárias para "completar e terminar a escrita do guião".
"Tinha uma história na cabeça e um guião pré-feito que, à medida que fui falando com estas famílias, foi sendo gradualmente alterado", conta Bruno Gascon à MAGG. Levar a cabo este projeto, continua, fez-se acompanhar de algum receio. "É um tema muito sensível e tinha muito receio, porque queria fazer isto com todo o respeito possível e com a aprovação dessas famílias."
Esse respeito implicava "não contar nada que implicasse estas famílias não se sentirem representadas ou que embelezasse uma realidade que não foi nem é embelezada". Até porque quando há um tema destes em cima da mesa, "há uma tentação para a exploração" que o realizador tentou "evitar ao máximo".
"Não queria, de forma alguma, explorar a dor e o sofrimento destas famílias, mas sim contar como é viver assim, sempre à espera. Elas aceitaram falar comigo e sabem que o filme existe."
Em retrospetiva, e analisando o traço comum a todos os relatos que foi ouvindo em primeira mão, Bruno Gascon aponta a ausência de um desfecho. "Quando uma pessoa morre, há um processo de luto que permite dar um fecho. O que une todas estas mães e todas estas famílias é o facto de nenhuma delas saber o que aconteceu. Todo o vazio e sofrimento decorrem precisamente daí. Há muitas perguntas e pouquíssimas respostas", refere.
Ainda que a história de "Sombra" trace um paralelismo muito forte com o desaparecimento de Rui Pedro, o filme representa todas as crianças desaparecidas e todas as mães que, perpetuamente à espera, "vivem e vão sobrevivendo".
"Houve uma pessoa que me disse que viveu durante vários anos com o filho e que, não era por ele ter desaparecido que o iria esquecer. Estas pessoas vão vivendo e sobrevivendo porque não há outra forma. Vivem agarradas a essa esperança, mas sem nunca esquecer o que aconteceu. Nesse sentido, a realidade ultrapassa sempre a ficção."
As famílias com quem Bruno Gascon privou já tiveram a oportunidade de ver o filme antes da estreia em Portugal e, diz-nos o realizador e argumentista, as reações foram positivas. "Isso era o mais importante para mim, porque não queria desrespeitar estas pessoas. Disseram-me que era um filme cru, mas que era real, e que se sentiam representadas."
Foi esse propósito. "Representá-las", reforça.
"Sombra" estreia-se esta quinta-feira, 14 de outubro, nas salas de cinema portuguesas.
Além de Ana Moreira, o elenco é também composto por nomes como Miguel Borges, Vítor Norte, Tomás Alves, Joana Ribeiro, Ana Cristina de Oliveira, Ana Bustorff e Lúcia Moniz.