O filme de animação "Soul" introduz o primeiro personagem principal negro da Pixar. Chama-se Joe Gardner, um professor de música cujo sonho é seguir uma carreira no universo do jazz. Na versão original do filme, que se estreou a 25 de dezembro na Disney+, esta figura é interpretada por Jamie Foxx. No resto do elenco, há coerência entre quem dá a voz e a pele da personagem que interpreta.
Em Portugal foi diferente. Joe é interpretado por Jorge Mourato, juntando-se ainda ao elenco Pedro Pernas, José Nobre, Pedro Leitão, Mónica Garcez, todos atores brancos a darem a voz a personagens negras. O casting, a cargo dos Estúdios da Matinha e da Disney, tem gerado muita controvérsia, trazendo para o debate uma discussão que está longe de ser nova, mas que continua a ser atual: a falta de representatividade em Portugal, a desigualdade de oportunidades, o défice de inclusão. O racismo estrutural.
"Somos muitos. Somos mesmo muitos e com experiência na área", garante à MAGG Marco Mendonça, um dos artistas que se manifestou nas redes sociais sobre escolha do elenco para a dobragem deste filme.
Soraia Tavares é cantora, atriz e faz dobragens. É a voz da famosa leoa Nala, do filme "Rei Leão", encarnando também a personagem Marshall, da "Patrulha Pata". "Sou das poucas pessoas de pele negra que faz parte do circuito das dobragens em Portugal, um circuito que é muito pequeno e restrito", conta. "Há uma falta de representatividade muito grande".
A artista, que fez recentemente parte do elenco da peça "Chicago", frisa o facto de o intuito do filme da Pixar passar, precisamente, por celebrar e pôr em prática a inclusão e representatividade, objetivo esse que foi defraudado em Portugal. "A equipa que fez o filme tinha um objetivo. É um trabalho sobre representatividade. É o primeiro filme com um afro-americano que fala sobre jazz e que se chama 'Soul'".
Cleo Tavares vê na escolha dos atores o reflexo claro e óbvio "de uma sociedade que parece ainda não perceber a sua diversidade, pluralidade e a importância da representatividade". A atriz, que integrou o elenco do filme "Diamantino", lança questões: "Se em quase todos os países houve a preocupação de chamar atores negros para dar voz aos protagonistas porque é que em Portugal não existiu este cuidado? Para onde queremos caminhar enquanto sociedade?".
Na opinião de Marco Mendonça, que integrou recentemente a aclamada peça “Catarina e a beleza de matar fascistas”, de Tiago Rodrigues, produzida pelo Teatro D. Maria II, a seleção em causa representa, no seu todo, um ato de desconsideração: desconsideração face aos aos artistas que viram vedada a oportunidade de participação em "Soul", desconsideração à própria história do filme, "que retrata uma comunidade negra" e "que é sobre a cultura negra do jazz."
Não crê que tenha havido má intenção por parte do estúdio ou da equipa envolvida no casting, mas considera que o acontecimento se prende com uma "enorme falta de atenção", que acaba por ser "um sintoma grave do racismo estrutural".
Esta história "merece, sem dúvida, ser contada por artistas negros", reforça, referindo que a ausência de alternativas não é uma justificação possível. "Não é por falta de profissionais na área. Eles existem e eles têm o direito de contar esta história."
Marco Mendonça desvaloriza a especificidade da voz de quem tem pele negra ou branca, considerando que esse é um tema "subjetivo". "O que merece discussão é a participação efetiva de artistas negros. O que interessa é que possam ter a oportunidade de contar histórias como esta."
"Ser ator em Portugal já é difícil, ser ator negro é duas, três, quatro, cinco vezes mais difícil"
Mauro Herminio também é ator, tendo, entre muitos outros trabalhos, integrado recentemente o elenco da peça "Invocação ao Meu Corpo", de Guilherme Gomes. Como Marco Mendonça, não cresceu consciente dos desafios inerentes ao facto de ser um artista não branco. Nos dois casos, foi na chegada à faculdade que isso se começou a tornar evidente.
Estavam em clara minoria. "Eu venho de um meio privilegiado e, por isso, houve poucas coisas que me foram claras logo de início. Mas quando decidi estudar teatro, percebi o que é que estava à minha volta. Que ia ser complicado depender de alguém, que não de mim mesmo", diz.
A conversa leva-nos aos chavões enraizados no meio artístico, às ideias pré-concebidas do que é uma pessoa negra na sociedade portuguesa: "O meu trabalho tem sido limitado à pouca variedade de personagens que tenho tido a oportunidade de interpretar."
"Estão sempre ligados às nossas personagens. São quase sempre papéis secundários, negativos e marginalizados da sociedade. Não existe profundidade, complexidade humana nas personagens."
Os papeis são frequentemente os mesmos: gangsters, criminosos, objetos de adultério, empregadas domésticas. "Os estereótipos estão muito enraizados na forma como os artistas negros são contratados para interpretar papéis", diz Marco Mendonça. "Estão sempre ligados às nossas personagens. São quase sempre papéis secundários, negativos e marginalizados da sociedade. Não existe profundidade, complexidade humana nas personagens."
Além da representatividade, é preciso também que sejam escritas mais histórias de pessoas negras. "É um aspeto que no cinema, no teatro, na televisão está muito em falta", diz. "Quando somos convidados para um papel, temos de ter sempre a consciência de que nunca vamos interpretar um papel muito importante." É por isso que, "ser ator em Portugal já é difícil, mas ser um ator negro em Portugal é duas, três, quatro, cinco vezes pior."
Há muitos obstáculos. "A primeira dificuldade que os artistas negros encontram é o facto de serem negros, pois este é um fator que nos distancia das oportunidades, do crescimento e da mobilidade social", diz Cleo Tavares. "Já todos nós sabemos que existe uma quantidade enorme de artistas negros em Portugal. Porque é que não os vemos nas grandes produções e porque é que, quando estão, se encontram na sua grande maioria sozinhos ou em papéis estereotipados? Ainda existem muitos estigmas relativamente ao corpo não branco."
"Quantas pessoas é que tens como exclusivas de um canal que sejam de outra etnia que não branca?"
"Com a falta de representatividade, o que temos é um grupo artístico elitista a fazer coisas para eles só", considera Mauro Hermínio. O ator diz-nos ainda que ter cor de pele negra é também ser menos comercial em Portugal. Pedimos que nos dê um exemplo e ele lança a questão: "Quantas pessoas é que tens como exclusivas de um canal que sejam de outra etnia que não branca?".
Apesar das exigências da sociedade em torno da igualdade, Mauro Herminio considera que as ações para que esse fim seja atingido são superficiais. Não produzem efeito. "As ações tem de ser tomadas por dentro. As estruturas têm de ter representatividade, para que reflitam aquilo que está à volta delas. Estamos muito atrasados em Portugal."
"Se não nos convidam para fazer este filme, para entrarmos nesta historia tão especial, vão convidar-nos para quê?"
No caso específico do universo das dobragens, Soraia Tavares fala na importância de os diretores de atores procurarem vozes diferentes, considerando o contexto dos filmes. E concorda que seja necessário reformular o sistema por dentro: "Vamos ter de obrigar as estruturas a admitirem mais pessoas de etnias e raças diferentes. E isso é triste porque nos tira mérito. Mas é a única forma de conseguirmos percorrer anos e anos de atraso."
Marco Mendonça vai no mesmo sentido e é a favor de que seja "estabelecido pelas entidades audiovisuais e de produção um critério" capaz de garantir a inclusão. Até porque a sua ausência, é uma forma de perpetuar o racismo estrutural. É um a forma de exclusão. "Muitos de nós nem chegam a tentar porque já têm uma certa consciência de que para não será possível. Nunca se viram representados."
Para o ator, que integrou também o elenco das novelas da SIC "Alma e Coração" e "Amor Maior", é preciso reivindicar: "Temos a obrigação e responsabilidade de nos queixarmos perante as autoridades que têm o poder de escolha, de contratarão e de produção de elencos", diz.
É preciso fazer muito mais e muito mais constantemente, diz Cleo Tavares. "Não podemos continuar a ignorar que não existe um problema raiz nesta sociedade, que começou há mais de 500 anos. Também é necessário e urgente que se comece a educar e a debater estas questões de uma forma séria e abrangente no nosso meio social e não somente quando existe este tipo de problemas. Não pode ser ocasional.
Marco Mendonça admite que começa a ser cansativo terminar estas manifestações públicas com uma palavra de esperança: "A esperança que continua cá vai sendo condenada. Se não nos convidam para fazer este filme, para entrarmos nesta historia tão especial, vão convidar-nos para quê?", questiona. Fala sobre a ideia do futuro, do "para a próxima podem fazer as coisas bem feitas". Mas não deixa de pensar: "Esta oportunidade que já passou teria sido uma boa oportunidade para fazer melhor."
"Nós também queríamos ter tido a oportunidade de dizer que fazer este filme foi das coisas mais bonitas que fizemos, principalmente por estar ligado a nós", acrescenta, numa alusão aos comentários feitos pelos atores que dobraram a produção da Pixar.
Numa nota enviada por email, a Disney reconhece que "há trabalho a fazer" e compromete-se a "diversificar talentos": "Esforçamo-nos por ser inclusivos nos nossos castings, contudo reconhecemos que há trabalho a fazer e estamos comprometidos em diversificar os talentos nas nossas dobragens, independentemente da geografia onde atuamos."