Falar no D'Artacão, o cão espadachim que vai para França com o objetivo de se tornar num dos moscãoteiros do rei, é, para Vasco Palmeirim, recordar momentos "muito felizes" da sua vida. "Remete-me para uma altura em que não havia grandes escolhas no que toca a opções televisivas, uma vez que só tínhamos dois canais disponíveis", diz à MAGG.
E ainda que, com as lentes de 2021 postas, tal realidade pareça difícil de compreender (até porque o streaming tem um peso cada vez mais forte no mercado), "na altura, chegava e sobrava", diz o ator que empresta a voz à personagem principal no filme "D'Artacão e os Três Moscãoteiros", que chega esta quinta-feira, 29 de julho, às salas de cinema portuguesas. "Aquilo que a televisão dava, era aquilo que nós consumíamos e o D'Artacão parava tudo. Foi o nosso herói enquanto miúdos. Lembro-me de ser muito miúdo e, durante a Feira do Artesanato do Estoril, perceber que era possível mandar estampar camisolas com o D'Artacão", refere.
Durante anos, tal como conta, aquela foi a sua camisola preferida.
Há, portanto, uma ligação emocional entre Palmeirim e a personagem. E embora a série tenha passado na televisão portuguesa em 1983, na RTP, e depois em 1995, na TVI, "nunca foi embora". Ficou na memória coletiva de quem lhe acompanhou as peripécias e de quem o foi conhecendo pela primeira vez quando passou, mais tarde, noutros canais (no Disney Channel, entre 2004 e 2009, ou no Canal Panda em 1996 e, mais tarde, entre 2010 e 2011).
"À medida que fui fazendo este filme, percebi isso mesmo: o D'Artacão nunca foi embora. A prova disso é o facto de algumas das canções dos desenhos animados da altura hoje parecerem datadas. Mas à medida que ouvimos esta, começamos a cantar. E é muito bom que, apesar de nunca ter ido embora, agora se volte a pegar nestas personagens para que estas aventuras cheguem também aos mais novos", diz.
Ainda que Vasco Palmeirim não seja estranho a esta coisa de emprestar a voz a personagens de animação (tendo passado por filmes como "Emoji", ou "Os Marretas"), neste projeto a responsabilidade era outra. Enquanto profissional que tenta dar o máximo de si a qualquer projeto em que aceite o grau de dedicação "não varia". É sempre o mesmo. Mas aqui "há uma carga diferente", admite.
"Talvez quem vá ao cinema, veja o D'Artacão de uma forma diferente de quem vê, por exemplo, um filme com o Shrek. O universo do D'Artacão é quase como que uma instituição. As pessoas lembram-se dele, conhecem a importância. Não foi só importante para mim, mas para centenas de pessoas", e essa noção de importância fez-se manifestar logo nas primeiras publicações de promoção ao filme.
"Quando o [Nuno] Markl publicou, no seu Instagram, que eu e ele íamos ser as vozes do D'Artacão e do Pom [o melhor amigo do cão espadachim], as mensagens dividiam-se entre 'parabéns' e 'vocês têm consciência do quão importante isso é?'. Não me esqueci disso. Este não é só mais um desenho animado, não é só mais um filme. É muito importante. Parou o País, pôs os miúdos a cantar, a mascararem-se no Carnaval e o facto de este filme existir é prova dessa importância", refere.
"D'Artacão, D'Artacão, correndo grandes perigos". A canção que ainda sabemos cantar
Prova de que a personagem resistiu a passagem do tempo, aquele que talvez será o maior juiz de qualquer produção audiovisual, é o facto de nem a canção nos ser estranha. Apesar de habituado ao uso da voz para a criação de canções, — humorísticas, é certo — para a Rádio Comercial, não sabe a resposta à pergunta para um milhão de euros: "Afinal, como é que se cria uma letra, uma melodia, uma receita que sobreviva durante anos e nunca pareça datada?".
"Não sei responder, mas aquela canção tem qualquer coisa. Não sei se foi porque a aprendemos quando éramos miúdos e desde então não a esquecemos, ou se é porque nos faz lembrar da série, do que nela acontecia, e do que nos fazia sentir. Tal como o hino nacional, não me lembro de aprender a canção do D'Artacão", mas garante que a sabe na íntegra e não sente necessidade de recorrer a cábulas.
Reforçando o facto de a canção ter um "poder emocional fortíssimo", Palmeirim atribui o sucesso da melodia e da letra para aquele que é "o poder da música". "A canção leva-te para a década de 80, em que eras mais novo, feliz, e sem preocupações. Em que, se calhar, bebias leite com chocolate diretamente do pacote. Eram tempos diferentes e a canção transporta-nos para aí. Se calhar o poder está aí, em poder voltar a ser um miúdo de cinco anos", diz.
Tozé Brito, autor da letra da canção de abertura da série (e de outras que fizeram parte da produção), não fala numa receita para o sucesso, mas em "fórmulas que se usam quando o objetivo é que alguma canção seja imediatamente reconhecida", tal como explica à MAGG.
"Melodicamente, há riffs [uma progressão de acordes ou notas musicais] que se criam e que repetimos várias vezes para que fiquem imediatamente na cabeça", diz, exemplificando com os primeiros segundos da canção de abertura da série. A sua participação na produção original foi a de reescrever as letras, "porque as canções chegavam já muitíssimo bem feitas".
Nesse exercício, o da rescrição, a estratégia era outra. Após a passagem do espanhol para o português, vinha a parte da interpretação e de ver o que funcionava e combinava com o ritmo.
"Mesmo que traduzidas, muitas vezes as letras não encaixavam na canção. As pessoas só se lembram do tema de abertura, mas, no total, havia 12. Essa foi a minha maior dificuldade: encontrar todas as pessoas que pudessem cantar estas canções. A de abertura era fácil, porque era cantada em grupo", recorda.
Os escolhidos para ir para estúdio, recorda o compositor, foram pessoas como "a Fá, das Doce, a Adelaide Ferreira, o Armando Gama, a Dina". Tudo pessoas "conhecidas da música portuguesa" que Tozé Brito respeitava e admirava.
"Divertimo-nos muito no estúdio e aquilo não era trabalho. Não era mesmo", ainda que o processo de escrita das canções pudesse ser intenso. No total, a escrita de 12 temas tinha como prazo final apenas um mês. Durante esse tempo, cabia também ao compositor pensar em que pessoas as poderiam interpretar.
"Não era um trabalho louco e absurdo, mas também não era fácil, porque às vezes encravava-se", explica. As letras originais, recorda, eram "complicadíssimas" e, uma vez traduzidas, "tinham de ser enquadradas na melodia, que não podia ser remexida, respeitando a tónica e pondo as rimas nos sítios certos". "Havia umas mais fáceis e outras mais difíceis, mas era sempre um mês intenso. Era um trabalho que me dava um gozo enorme, por isso quase não sentia essa tensão", explica.
De cada vez que se fala de D'Artacão, Tozé de Brito sorri porque o remete para a década de 80, onde foi muito feliz.
"Havia séries com particularidades diferentes. Se a 'Heidi' e 'Marco' por vezes tentavam puxar à lágrima, na do D'Artacão não havia nada disso. Era tudo muito feliz e divertido", e isso também se refletia na sua forma de estar em estúdio com todos os que colaboraram na interpretação das canções.
O regresso das três vozes originais da série
Deste novo filme fazem também parte figuras como Maria Emília Correia, Francisco Pestana e Isabel Ribas que, na dobragem para português da série original, foram a Rainha-Mãe, o pai de D'Artacão e Julieta, respetivamente.
Mais do que voltar a emprestar as suas vozes a estas personagens, é regressar a um universo em que foram muito felizes. "Tenho um carinho muito especial pelo D'Artacão porque foi através da série que me estreei nas dobragens. Era um grande desafio porque, como não tinha uma personagem principal, dava voz a algumas das personagens secundárias que iam surgindo [além da do pai do protagonista]. Todos os dias fazia vozes diferentes e isso foi a prova de fogo", diz.
E ainda que, na altura, há mais de 38 anos, a ideia da dobragem fosse nova, com o tempo apanhou-lhe "as técnicas e as habilidades" necessárias para, apenas com a voz, preencher toda uma figura animada.
"Porque é mesmo uma questão de técnica", admite. E a atriz Maria Emília Correia concorda: "É preciso uma grande acutilância visual e auditiva e há quem esteja mais direcionado para esse tom do que outras. No meu caso, já tinha feito dobragem de algumas produções. O trabalho era duro, difícil e nada facilitado — o que mudou muito com a chegada das novas tecnologias —, mas do que mais me lembro é do bom ambiente que rodeava a entourage. O clima de diversão que marcou a produção", e que, sabemos, assenta no ADN da figura de D'Artacão.
A Isabel Ribas, que também se estreou a dobragem da série original, também lhe vêm à cabeça "as memórias afetivas daquele tempo".
"A Julieta foi a primeira personagem à séria quando tinha apenas 20 e poucos anos. Foi uma grande experiência porque tive oportunidade de estar com grandes atores que conhecia da televisão e dos palcos, como o João Loureço, o João Perry, o António Feio... Era fascinante ouvi-los a conversar e tive a sorte de fazer a Julieta", diz. E foi mesmo sorte.
É que, tal como recorda, na altura em que as gravações arrancaram, era agosto "e as atrizes mais experientes estavam de férias". "Aceitei e a, partir daí, passei a fazer mais dobragens." Por partilhar da tese inicial de Vasco Palmeirim, a de que o D'Artacão nunca saiu do imaginário de quem lhe acompanhou as aventuras, não estranhou este regresso para um novo filme.
"Não estranhei porque a personagem foi sendo passada de geração em geração e as pessoas sentem-se fascinada por aquele universo. Uma das minhas amigas tem uma cadela cujo nome é Julieta. Não é por acaso", diz Ribas. "É um clássico", acrescenta Francisco Pestana enquanto Maria Emília Correia tenta explicar o sucesso em poucas palavras: "É um registo animado do romance clássico e universal. Por isso, é normal que as pessoas se entusiasmem com a história", explica a atriz.
Neste novo filme, passado em França do século XVII e baseado na história de Alexandre Dumas, a premissa é semelhante à da série ao acompanhar D'Artacão, um habilidoso espadachim que, apesar de pequeno de tamanho, tem um coração enorme e nunca desiste quando confrontando com obstáculos. No centro da ação está a viagem do espadachim até Paris, com o objetivo de concretizar o seu sonho de infância e ser capaz de integrar o corpo de Moscãoteiros do rei.
Em termos visuais, estará mais atualizado, é certo. Mas o espírito, esse, mantém-se o mesmo.