Eva, Carla, Graziela e Liliana não cabem na ideia pré concebida e cheia de julgamentos que as mulheres que não têm filhos não gostam de crianças. Entre sobrinhos, filhos de amigos e até enteados, todas assumem gostar dos mais novos e adoram passar tempo de qualidade com eles.
E é justamente esse fator que é comum a estas quatro histórias — tempo. Tempo que querem para si e para as suas carreiras, tempo que não acham ser de qualidade ou suficiente para avançar para o projeto filhos, o segundo elemento em comum ao quarteto: estas mulheres não querem ser mães.
Vivemos numa era mais aberta, liberal, onde todas as orientações sexuais são (ou deveriam ser) bem-vindas, onde falamos cada vez mais de racismo, xenofobia, machismo. Somos os primeiros a partilhar nas nossas redes sociais a indignação por mais uma história de assédio sexual tornada pública mas, enquanto sociedade, continuamos a franzir o sobrolho às mulheres que, conscientemente, assumem sem medos que não querem ser mães — e basta vermos qualquer caixa de comentários na internet para perceber que a nossa sociedade, ainda muito patriarcal, não está preparada para isto.
Temos tendência a encaixar estas mulheres numa caixa, sendo muito rápidos a colocar um rótulo ou uma ideia que as tenha levado a tomar essa decisão — algo que não fazemos com os homens. "Um homem que não quer ter filhos é alguém que investiu na carreira, é independente e focado no trabalho. A mulher, se diz o mesmo, é porque não arranjou ninguém e vai ficar para tia", diz Eva Magro, 31 anos, uma das mulheres com quem a MAGG falou, e que assume que não quer ser mãe.
Tanto Eva Magro como Carla, Graziela e Liliana não duvidam que, para quem quer e está preparado para isso, ser mãe será uma das melhores experiências da vida. Mas é tão simples quanto isso, por mais que possa chocar a ideia enraizada na sociedade que as mulheres só serão completas com um filho: este quarteto simplesmente não o quer fazer. Conheça as suas histórias.
"Hoje em dia, já não me calo"
Apesar de, atualmente, Eva Magro ter a certeza que os filhos não estão nos seus planos, nem sempre foi assim. "Quando era mais criança, muito pequenina, tinha aquela ideia de que ia ter muitos filhos. Tinha muitos bonecos, fazia de conta que era a mãe, e além disso, também cresci numa casa cheia, com duas irmãs", conta a tradutora de 31 anos à MAGG.
Foi a seguir à fase da adolescência, por volta dos 19 anos, que Eva percebeu o que é que a ideia que sempre teve, de ter uma família muito grande, com vários filhos, realmente acarretava. "Comecei a perceber que, se calhar, não era um objetivo para a minha vida. Tinha amigas muito certas disso, que queriam muito, e eu não me via assim, não me via a ser mãe, de todo. Mantive essa opinião até hoje e estou certa que a vou manter para sempre."
Eva Magro não tem dúvidas quanto à decisão que tomou, e tem exemplos positivos ao seu redor de mulheres que tomaram a mesma decisão. "Tenho uma tia com quase 70 anos que nunca foi mãe por opção, e acho que sempre olhei para ela como tendo uma vida de sonho. Tem a casa só para ela, tempo para ter férias, está com os sobrinhos quando quer e lhe apetece. Sempre foi a tia fixe e eu quero isso também, quero ser a tia fixe."
A tradutora deixa de lado a ideia de que só quem não gosta de crianças é que não quer ser mãe. "Adoro miúdos, adoro os meus sobrinhos de paixão, mas não quero crianças 24 horas por dia ao meu encargo. Quero estar com elas quando posso e quando tenho disponibilidade", diz Eva, que assume que não precisa de um filho para se sentir completa.
"Estou muito feliz com a minha vida, super completa com o meu parceiro, e mesmo quando não estava num relacionamento, estava feliz sozinha. Sinto-me realizada com a vida que tenho agora. Se tivesse filhos, a minha vida ia mudar e muito. Ia perder horas de sono, o meu corpo ia mudar, as minhas rotinas também — e eu adoro a minha vida como está. Sei que, obviamente, os filhos trazem muita felicidade e muitas coisas boas a quem os quer ter, mas a mim não me iam trazer essa felicidade. Felicidade é o que tenho agora. Ter filhos é uma decisão que nos muda a vida de cabeça para baixo, para sempre. E eu não quero fazer isso porque gosto da minha vida tal e qual como ela é."
Apesar de ser uma mulher jovem, a tradutora não hesita em afirmar que a ideia de não ter filhos está mesmo assente na sua cabeça e que não é apenas uma fase, algo que já ouviu dezenas de vezes. "Sempre que dizia que não queria ser mãe, ouvia que era só uma fase, que essa ideia me ia passar, que era porque ainda não tinha encontrado a pessoa certa. Mas eu encontrei a pessoa certa, e continuo a não querer ter filhos", relata.
Mas se antes Eva ouvia estes comentários e deixava passar, a realidade agora é outra. "Hoje em dia, já não me calo, e as pessoas têm de perceber que estão a agir de forma errada com esses comentários e essas questões. Agora, sempre que me dizem que é só uma fase, tento fazer ver a minha perspetiva. Digo muitas vezes: 'Quando me disseste que querias ser mãe, eu não te disse que é só uma fase, que vai passar, que um dia vais acordar e já não vais querer ter filhos, pois não? Mas é o que me fazem a mim'."
"Um homem que não quer ter filhos é alguém que investiu na carreira, é independente e focado no trabalho. A mulher, se diz o mesmo, é porque não arranjou ninguém e vai ficar para tia"
Para a tradutora, que está numa relação estável há cerca de três anos, é vital que ambos os elementos do casal tenham a mesma visão em relação a temas cruciais como ter ou não ter filhos, e revela que, no seu caso, a conversa acabou por surgir naturalmente. "Estávamos com a mãe dele, que fez um comentário qualquer sobre o netinho que viria a ter, e pensei logo que tínhamos de falar sobre o tema. Fiquei muito aliviada quando conversámos e o meu namorado me disse que também não tinha esse objetivo de vida."
Eva Magro também realça que, de outra forma, um relacionamento pode ter obstáculos. "É importante estar com alguém que tenha a mesma opinião do que nós. Porque se um não quer ter filhos e o outro quer muito, mais cedo ou mais tarde, a relação não vai para a frente", diz a tradutora.
Apesar de não sentir a pressão de ser mãe por parte de amigos ,e ter ideia que mesmo as pessoas mais velhas da sua família já estão mais confortáveis com a decisão que tomou, Eva não hesita em afirmar que a sociedade ainda julga muito quem não quer ter filhos, principalmente as mulheres. "Um homem que não quer ter filhos é alguém que investiu na carreira, é independente e focado no trabalho. A mulher, se diz o mesmo, é porque não arranjou ninguém e vai ficar para tia. Há muito mais preconceito com as mulheres."
Confortável com a sua decisão, Eva assume que a entristece ouvir certos comentários, que fazem antever que há muitas pessoas que têm filhos pressionadas. "Vejo muitos casos à minha volta de pessoas que avançaram ou porque o parceiro queria muito, ou porque os pais pressionaram, ou porque a sociedade assim o dita. Que não têm o mínimo jeito ou paciência para os miúdos, que são pessoas frustradas e que olham para mim e para o meu namorado e dizem coisas como 'vocês é que têm sorte, isto dá mesmo muito trabalho'. E isso deixa-me triste, porque nós fizemos a nossa própria sorte, tomámos uma decisão, e essas pessoas poderiam ter feito o mesmo se, no fundo, não queriam ser pais. Já não estamos no século XV, ninguém obriga ninguém a ter filhos."
"Não acredito que esta sociedade possa proporcionar a uma criança tudo aquilo que ela precisa"
Ao contrário de Eva Magro, que só começou a perceber que não queria mesmo ser mãe já enquanto jovem adulta, Carla Santos nunca teve esse projeto no seu horizonte. "Nunca ambicionei constituir família. Sempre tracei como meta de vida dedicar-me ao meu trabalho, sem ter uma família que pesasse de alguma forma nas minhas escolhas, por mais cruel que isto possa parecer", diz a consultora de comunicação de 42 anos à MAGG.
Apesar de gostar imenso de crianças, e de admitir que os mais pequenos adoram estar na sua companhia, Carla afirma que a sua decisão de não ser mãe passou sempre pela necessidade de não se sentir presa a nada nem a ninguém, mas também por não acreditar que vivamos numa sociedade feita a pensar nos mais novos.
"Não acredito que esta sociedade possa proporcionar a uma criança tudo aquilo que ela precisa. Ter um filho implica dedicar toda a atenção a uma criança, dar-lhe tudo o que é preciso, ter tempo e disponibilidade para ela. Na minha ótica, os pais têm de estar presentes e disponíveis. Ter um filho para o pôr e ir buscar ao infantário, dar banho, dar de comer, pôr a dormir e eu ser apenas a pessoa que anda de um lado para o outro com ele, não me faz sentido. Eu tenho de ter qualidade de vida para dar um filho, sempre foi esse o meu lema e o que me levou à minha decisão", salienta a consultora de comunicação.
A ideia de os pais não terem tempo para os filhos é algo que Carla tem bem presente na memória, e recorda um episódio da sua adolescência que a marcou. "Com cerca de 15, 16 anos, tive aqueles trabalhos de verão a tomar conta de crianças e cheguei a acompanhar uma família numas férias no Algarve. Eu tomava conta de três miúdos pequeninos, íamos para a praia e os pais ficavam num toldo, e eu noutro com as crianças. Independentemente de eles estarem bem ou a fazer um berreiro de todo o tamanho mesmo ali ao lado, os pais continuavam na boa com os amigos. E acho que foi aí que me deu um clique. Como é que aquelas pessoas estavam de férias e nem sequer passavam tempo com os filhos? Isso não é nada. Acho que foi aí que percebi que não queria isso para a minha vida."
No entanto, aos 42 anos, e numa relação estável há já alguns anos, Carla não põe completamente de lado a hipótese de, no futuro, a sua parceira gerar uma criança.
"Eu não quero mesmo gerar um filho, está completamente fora de hipótese, não vou passar por uma gravidez. A verdade é que todo o processo de gestação, de ter uma criança a crescer dentro de mim, sempre foi algo que me fez muita confusão. Agora não sinto que devo privar a minha parceira de o fazer — aliás, já se encontra em fase de tratamentos de fertilidade na Maternidade Alfredo da Costa —, e nesta altura da minha vida, já acredito que possa ter mais tempo, disponibilidade e condições financeiras para dar a uma criança tudo aquilo que ela precisa."
"Acho muito difícil uma mulher ter um trabalho a tempo inteiro e ter filhos"
Outra ideia preconceituosa que existe é a de que as mulheres que não têm filhos ou que afirmam essa intenção o fazem por não ter achado a pessoa ideal. Algo que Graziela Cunha da Silva desmonta completamente. Num relacionamento com o mesmo companheiro desde os 14 anos, e casada desde desde os 19, a esteticista de 29 anos não se imagina a ser mãe, nem o marido a ser pai.
"Ter filhos implica tempo de qualidade para lhes dedicar, algo que eu não tenho"
"Não digo nunca de uma forma absolutamente definitiva apenas porque isso é uma palavra forte e referente a muito tempo. Mas a verdade é que é uma ideia que tenho agora e imagino-me a nunca ter crianças", refere Graziela, que tem presente várias razões para não avançar para o projeto filhos.
Do estado do mundo ao tempo que as mães têm para dedicar aos miúdos, a esteticista sente que não teria condições para ter filhos e continuar a trabalhar ao mesmo tempo. "O mercado de trabalho não dá tempo para as pessoas terem e passarem tempo com os filhos. Quanto muito há mais tempo no primeiro ano de vida da criança, mas, a seguir a isso, acho muito difícil uma mulher ter um trabalho a tempo inteiro e ter filhos."
Com um trabalho que lhe preenche os dias e a agenda, Graziela Cunha da Silva sente que já tem pouco tempo atualmente para si, algo que só iria piorar com um filho. "Eu já sei o pouco tempo útil que tenho agora, e se eu tivesse filhos, não ia mudar muito. Na minha ótica, ter filhos implica tempo de qualidade para lhes dedicar, algo que eu não tenho."
No entanto, a esteticista não culpa apenas o fator tempo. "A verdade é que a minha vida não tem espaço para crianças, nem eu tenho vontade de ser mãe. Além de que, e apesar de saber que pode parecer uma afirmação radical, com o estado do mundo como está, não me faz qualquer sentido pôr mais uma criança neste planeta. É assim que eu vejo as coisas", remata Graziela.
"Não percebo porque é que as pessoas querem que as outras tenham filhos. É para validá-las, para satisfazer o quê nelas?"
Apesar de ter fortes motivos para explicar o porquê de não querer ter filhos, Liliana Neves salienta que, acima de tudo, acredita que o ser ou não ser mãe é uma questão biológica. "Eu nunca senti esse chamamento, essa vontade de ter filhos. Se sentisse, acho que toda a parte lógica iria borda fora, porque a vontade acabaria por falar mais alto. No meu caso, nunca quis, nem quero, ser mãe", conta à MAGG a marketeer digital de 36 anos.
Na ótica de Liliana Neves, há muitas pessoas que não pensam bem e de forma consciente na decisão que estão a tomar quando constituem família. "Acho que a maior parte das pessoas, tendo discernimento ou não, não pensa nas consequências reais de ter filhos, na responsabilidade vitalícia que isso representa. Se ficarem com menos dinheiro, se não conseguirem dar tantas oportunidades aos miúdos, se acontecer algo de saúde, se por algum motivo deixarem de conseguir dar tanto conforto aos filhos, a responsabilidade é dos pais, porque foram eles que os decidiram ter."
Assim, a marketeer digital assume que não tem vontade de ter filhos pois dispensa essa responsabilidade. "Não quero ter a vida de outra pessoa nas mãos, sendo que isto funciona para filhos, marido, pai, o que for, é assim que eu penso", salienta Liliana, que também assume que é importantíssimo existir um alinhamento de objetivos em comum para um casal.
Há oito anos numa relação e casada desde 2016, Liliana Neves afirma que o seu relacionamento com o marido não funcionaria tão bem caso este quisesse ter mais filhos — isto porque já tem dois de uma anterior relação. "Penso que a nossa relação teria mais obstáculos, e se calhar nem funcionaria, se ele quisesse ser pai novamente. Tive um relacionamento anterior em que não estávamos alinhados a respeito deste tema e as coisas acabaram por não ir para a frente, sempre foi uma condicionante na nossa relação, e eu tinha essa pressão."
Apesar de ser madrasta de duas crianças, Liliana rejeita o papel de mãe. "Os filhos do meu marido têm mãe e não sou eu. Não a quero substituir, nem quero ser mãe. Ouço muito essa conversa do 'ah, tens dois enteados, é a mesma coisa que ter filhos'. Não, não é. Sou uma madrasta fixe, mas sou muito mais uma amiga que outra coisa."
Quanto à pressão da sociedade para as mulheres terem filhos, a marketeer digital assume que existe e considera-a mais um problema de civismo. "Há uma ignorância gigantesca no que toca a este tema, é mesmo uma falha de formação cívica. Eu nunca na vida ia chegar ao pé de alguém e perguntar 'então e filhos?'. Primeiro porque não faço ideia do que se passa com aquela pessoa, do que a levou a esse ponto, e também porque não percebo porque é que as pessoas querem que as outras tenham filhos. É para validá-las, para satisfazer o quê nelas? Não consigo mesmo perceber esse lado da sociedade."
"Grande parte das mulheres tem filhos por pressão da sociedade. O que eu vejo mais são mães infelizes, honestamente"
Muito bem resolvida com a sua decisão, e ciente de que "cada um leva a vida como quer", Liliana Neves sabe perfeitamente o que funciona para si — e filhos não fazem parte dos planos. "Há sempre pessoas que acham estranho e esquisito como é que um casal não quer ter filhos, até algumas pessoas de família. Mas honestamente também acho que é muito uma questão de projeção, as pessoas têm tendência a projetar nos outros aquilo que querem ou gostavam de ter."
Liliana vai ainda mais longe e é taxativa a afirmar que acredita que a pressão externa leva muitas mulheres a terem filhos sem realmente os quererem. "Grande parte das mulheres tem filhos por pressão da sociedade. O que eu vejo mais são mães infelizes, honestamente. Vejo queixas, seja do parceiro ou dos filhos, que não têm tempo, disponibilidade. Vejo muitos pais e mães descontentes com a sua decisão de ter filhos e, apesar de não o dizerem, mostram todos os sintomas disso", conclui.