Dentro das casas das família portuguesas não há grandes segredos: espera-se um bacalhau (com ou sem broa) e um polvo para os que não gostam do tradicional prato cozido com batatas da Consoada, uma mesa exclusiva para as sobremesas (que se arrastam até ao Ano Novo) e, no fim, a toalha cheia de nódoas do vinho tinto que regou isto tudo. E os chefs? Comerão eles pratos mais elaborados? O almoço do dia 25 de dezembro será dividido em momentos, com reduções de molhos e adição de umas folhas para decorar?
Fomos saber as tradições de alguns dos mais conhecidos chefs portugueses e chegámos a uma conclusão: na casa de cada um prevalece a tradição e, acima de tudo, o gosto de cozinhar para a família.
Ainda assim, alguns revelam gostos particulares nesta altura do ano: o chef Hugo Brito, do restaurante Boi Cavalo, em Lisboa, gosta de "voltar ao papel de filho e tirar as mãos do volante do almoço", deixando a tarefa de trinchar o peru para os pais. Já a chef transmontana Justa Nobre, do restaurante O Nobre, não prescinde no Natal do seu foie gras acompanhado de um vinho de colheita tardia.
Curioso com os restantes chefs? Avance e prepare-se para ficar com apetite.
Chef Justa Nobre
Marido, filho, netos, irmãos, cunhados e sobrinhos. Juntam-se todos em redor de uma mesa cheia de iguarias preparadas por toda a família. Este Natal será passado em casa de uma das duas irmãs da chef Justa Nobre, que também trabalha na restauração, e não foi preciso pensar muito na ementa. "De entradas, temos salpicão, alheiras, sempre produtos de Trás-os-Montes. E sempre um bom queijo da Serra. Muito tradicional", diz a chef transmontana, de Vale de Prados, Macedo de Cavaleiros.
Contudo, há uma entrada que foge à regra. "Tenho sempre um foie gras. Adoro. Isso é o meu luxo", revela. "Com o meu foie gras no dia 24, gosto de beber uma colheita tardia. E só bebem [referindo-se à família] um bocadinho. Acabo o resto noutro dia". Já nos pratos principais, há bacalhau, polvo e sempre um galo caseiro. "Por causa dos meus netos, que não gostam nem de polvo nem de bacalhau". Já no dia 25 ao almoço, é sempre cabrito e este ano haverá também peru recheado por haver mais jovens à mesa. Mas para os adultos, a tradição portuguesa e familiar nunca falha. "Adoramos comer cabrito com champanhe."
Quanto a sobremesas, os tradicionais sonhos e aletria com amêndoa estão presentes, bem como umas rabanadas especiais. "Faço umas rabanadas espetaculares, recheadas com doce de castanha. É em homenagem à minha terra e à castanha", revela a chef Justa Nobre. Em alguns anos, há ainda doces inesperados. "Às vezes há um amigo ou outro oferece uma coisa diferente e eu fico toda contente. Porque uma pessoa cozinha tanto e faz tanta coisa, que às vezes quer apanhar uma coisa diferente".
Quando o almoço de Natal era em casa da chef (assim foi durante mais de 40 anos), por volta das 18h colocava fim à festa. "Ponho toda a gente na rua para ficar só eu e o meu marido a descansar, porque no outro dia é dia de trabalho. Logo de manhãzinha".
Chef Kiko
Quando adultos e criançada se juntam, o resultado é "um dia atribulado, com muita agitação". Assim é a ceia de Natal do chef Kiko — responsável pelos restaurantes O Talho, A Cevicheria, O Poke e O Boteco —, e para facilitar, nos últimos cinco anos, a ementa mudou. "Em vez de bacalhau e outros pratos mais rebuscados, os pequeninos comem sempre croquetes com arroz. É uma coisa um bocado estranha", brinca.
"Claro que os maiores seguem a tradição. À chegada, sempre muitos frutos secos, queijos. Depois sopa. Começamos sempre com o típico caldo verde e depois temos um ritual para o bacalhau cozido", diz, e continua a descrever. "O bacalhau vai para a mesa, com cenouras, couves e ovos cozidos e é servido com dentes de alho crus para toda a gente e azeite. Colocamos um dente de alho no centro do prato, juntamos azeite e um ovo cozido. Esmigalhamos. Fazemos quase ali uma pasta. Depois, juntamos o bacalhau e vamos comer essa pasta misturada com as couves e a cenoura". A acompanhar, "um bom espumante e copo de vinho tinto nunca podem faltar".
Nas sobremesas faz-se um pijaminha com as tradicionais rabanadas, o arroz doce e a aletria e ainda com outra menos típica no Natal. "O toucinho do céu, que é um clássico da minha mãe", revela o chef.
Chef Marlene Vieira
A chef Marlene Vieira, o rosto por detrás dos espaços Food Corner, no Mercado da Ribeira, e o Zunzum Gastrobar, em Santa Apolónia, passa o Natal em casa, com a sua família e a do marido, o chef João Sá, do restaurante SÁLA. "O nosso Natal é com toda a gente na cozinha. Todos estão a fazer alguma coisa. Uns põem a mesa, outros estão a atrapalhar. Mas isso faz parte. O Natal é barulho, é confusão. Não há aquela coisa organizada que há nos restaurantes", brinca.
Chegam a ser cerca de 20 pessoas, pouca gente para quem está habituado a servir salas cheias. Por isso mesmo, o bacalhau fica à responsabilidade dos chefs Marlene e João. "É por causa do ponto do bacalhau e temos noção de quando é que tem de ficar tudo pronto ao mesmo tempo, para as coisas estarem quentes", explica à MAGG.
Além do bacalhau com todos, há bacalhau com broa, versão menos tradicional para o chef João Sá, que não gosta de bacalhau com batatas. Na Consoada há também polvo, desta vez para agradar ao sogro de Marlene Vieira. "A família dele é de uma terra da zona de Viseu e gosta de filetes de polvo. Tentamos agradar a todos".
Para completar a mesa, cada membro da família leva os seus preferidos, tanto de entradas como de sobremesas, e sobre as primeiras, os queijos ficam mais uma vez para os chefs Marlene Vieira e João Sá. "Gostamos muito de queijos e temos mais noção do que é realmente bom. Por estarmos habituados, somos nós que escolhemos", afirma a chef.
Quanto às sobremesas, é a chef Marlene Vieira que faz as rabanadas, o pão de ló, o molotof e ainda a aletria, em conjunto com a mãe. Sobre cozinhar no Natal, tal como no dia a dia, diz que fá-lo com o maior gosto. "Não me chateia nada. Quero ter a certeza de que as coisas estão bem feitas", brinca. "Principalmente, gostamos de cozinhar para muita gente e para a família temos ainda mais prazer. Na verdade, foi como começámos: a cozinhar para a família e depois para a restauração."
Chef Vitor Sobral
Há 53 anos que é assim: o chef Vitor Sobral e os pais juntam-se em Melides, onde fica a casa dos pais, para dupla celebração. É que a 24 de dezembro é véspera de Natal e também o aniversário da mãe do chef responsável pela Tasca da Esquina, Peixaria da Esquina, Dom Roger e OTRO restaurante.
Ainda assim, a ementa é de Natal, sempre com caras de bacalhau para entrada e bacalhau no prato principal da Consoada, e no dia seguinte, a mesa é tomada por carne. "Pode ser uma galinha do campo, um cabrito ou um lombo de porco assado", diz o chef, que trata sempre dos pratos salgados do Natal, normalmente a acompanhar com vinho branco e tinto, após um espumante antes da refeição.
Quanto a sobremesas, "nunca mais acabam", afirma. "A minha mãe é uma doceira fantástica. Há tudo: sonhos, rabanadas, pudim de ovos, suspiros com pinhões (que eu sou louco). Há filhoses. Há bolo rei".
Tal como a colega Marlene Vieira, com quem partilha o painel de jurados do programa da RTP1, MasterChef Portugal, Vitor Sobral gosta de cozinhar nesta época. "Adoro cozinhar para as pessoas de quem eu gosto", diz.
Chef Hugo Brito
Responsável pelo restaurante Boi Cavalo, em Lisboa, o chef Hugo Brito sai da cidade em direção à casa dos pais, perto de Nisa, para passar o Natal. Descreve-o como "nada misterioso nem sofisticado", mas a verdade é que na preparação de cada prato, há um detalhe.
"No jantar de dia 24 comemos bacalhau — de cura amarela da Islândia, e sou eu quem o compro e cozinho —, com azeite das oliveiras que temos na nossa casa perto de Nisa", conta. Ao ingrediente principal juntam-se as couves, as batatas e o nabo, cujo ponto de cozedura não tem um consenso. "Há duas escolas de pensamento: a minha, da minha irmã e da minha mãe, que gostamos das couves e nabo mais al dente, e a do meu pai, que gosta de tudo mais bem cozido. Ele perde", brinca.
O almoço do dia de Natal conta com o tradicional peru, que os pais do chef Hugo Brito começam a marinar cerca de três dias antes. "A parte trinchar o peru tenho que confessar que não dou grande ajuda — eles dizem que complico demasiado — e, para ser sincero, sabe-me bem voltar ao papel de filho, tirar as mãos do volante do almoço", diz. A acompanhar, há castanhas e cogumelos, ervilhas e cenouras, salada e batatas dauphine (uma mistura de puré de batatas e massa de choux). "Só fazemos nesta altura e todos os anos a minha mãe diz que nunca mais faz porque dão imenso trabalho".
Nas sobremesas, o cenário que todos conhecemos. "Desde que me lembro, a minha mãe, depois do jantar de dia 24, cobre a mesa da sala de jantar com uma profusão de doces: rabanadas, filhós, sonhos de abóbora, arroz doce, um bolo rei da Confeitaria Nacional (que ninguém come), e uma lampreia de ovos, que é comida quase na íntegra pela minha irmã, que tem um fígado de ferro. Essa mesa fica posta durante uns dias, em que acho que a base da alimentação do meu pai passa a ser arroz doce".
O pai não deixa sobrar arroz doce e o chef Hugo Brito, bem como o filho, acabam com o peru, que aproveitam para fazer sandes, às quais juntam as restantes sobras.
Chef Bertílio Gomes
Diz-se que o bacalhau da coimbrense Lugrade é O Melhor Bacalhau do Mundo e é esse mesmo que o chef Bertílio Gomes, da Taberna Albricoque, escolhe para a consoada, acompanhado de couve e azeite Virgem Extra. "Sou que demolho e cozinho o bacalhau", conta o chef.
Também no almoço de Natal é seguida a tradição gastronómica portuguesa. "Costuma ser cabrito assado com batatas no forno, que também sou eu a tomar conta". O chef só tem descanso no que toca às sobremesas, que ficam a cargo da mulher.
"Faz umas azevias de grão excelentes, as melhores que comi! Também faz um belo arroz doce e merengues com doce de ovos", continua. Mas para cumprir à risca com a tradição, tem de haver mais sobremesas na mesa e para isso a sogra do chef Bertílio Gomes dá uma ajuda. "É perita em sonhos e filhoses e também faz um bolo de nozes muito bom."
Chef Filipa Gomes
O Natal de Filipa Gomes é passado normalmente em casa dos pais, uma casa de cozinheiros. Filipa trata de levar para as entradas — pão de cerveja preta —, já o pai trata do cabrito assado no forno, "que ele faz como ninguém", afirma a chef do 24Kitchen. Quanto ao bacalhau, muitas vezes é feito a quatro mãos — pai e filha — mas há algum tempo que o típico bacalhau com todos saiu da ementa para dar lugar a pratos diferentes. "Tanto pode ser um bacalhau gratinado, bacalhau com broa, risotto de bacalhau ou até bacalhau à Brás", conta.
Nas sobremesas, entra a mãe, que faz o arroz doce, e a sogra, responsável pela sericaia (neste caso trazida de uma pastelaria tradicional de Elvas).
E a parte final das refeições de Natal não fica por aqui. Filipa Gomes faz questão de ter sempre salada de frutas e uma sobremesa diferente. "Red velvet, torta de limão e maracujá, bolo de gengibre e especiarias, pavlova… ou aquele Grand Gateaux que partilhei no meu Instagram e que é sempre um sucesso", diz.
Chef Fábio Bernardino
Família é a palavra que melhor define os Natais do chef dos diretos diários no Instagram. "Desde os meus avós, pais e irmãos, tínhamos sempre a casa cheia. Boa comida à volta da mesa era coisa que nunca faltava", conta à MAGG o chef Fábio Bernardino. O ritual repete-se este ano e a tradição também: o bacalhau cozido, com couve e uns toques que fazem a diferença. "Nunca esquecer um bom azeite Virgem Extra aromatizado com alho e alecrim que faz a diferença a este prato. Cá em casa, nunca falha".
O Bolo Rei também está sempre presente e não é nas sobremesas. "Como entrada, pode parecer mais 'estranho', mas gosto muito de fazer a minha receita de bolo rei salgado", diz o chef e revela o segredo. "Não é nada mais que uma massa de Bolo Rei que em vez dos frutos cristalizados leva enchidos, frutos secos, legumes, um bom queijinho e é moldado da mesma maneira, apenas ficamos com uma opção salgada" e cuja receita já foi partilhada.
Nas sobremesas da Consoada, nunca pode faltar arroz doce e uma saudável "guerra" do melhor. "Com a inspiração da minha avó das Beiras, tínhamos sempre a 'guerra' do arroz doce com e sem ovos. Nas beiras um arroz doce não leva ovos, mas fica igualmente cremoso". Além deste, há habitualmente sonhos, fatias douradas, azevias e coscorões.
Já no dia 25 ao almoço, o cabrito assado no forno é o rei da festa. "Aqui é onde surge a inspiração africana que vem do lado da família da minha mãe. O tempero do nosso cabrito leva sempre um bom toque de picante, neste caso gindungo". Para fechar, um Bolo Rainha "com uma massa bem fofinha, numa fermentação a baixa temperatura".
Com tanta variedade de comida e barriga para tão pouco, nos dias seguintes impera o aproveitamento das sobras e ao chef não faltam ideias. "A roupa velha com as sobras de bacalhau ou um arroz de forno com as sobras do cabrito são dois pratos que nunca faltam". O chef tem várias receitas partilhadas, basta seguir uma delas ou a originalidade.