Na família Cerqueira, metade do tempo útil de vida é passado à mesa. Se não for à mesa é de pé, mas de croquete numa mão e Alvarinho na outra.
Somos pessoas de convívio, de mesa cheia, de broa, de azeite, de vinho verde. Mas também pessoas de cozido à portuguesa, arroz de cabidela e carne assada na brasa.
Ser vegetariano no Alto Minho é o mesmo que ser fã de praia e viver na Guarda. E é por isso que, desde que deixei de comer carne, o meu prato é sempre diferente do que o do resto da mesa e se a ideia é comer fora, safo-me com couves e batatas. O que vindo daquelas terras, até que fico bem servida.
Já vi muitos revirar de olhos, ouvi muitos suspiros críticos, muitos "mas tu agora não comes nada", e muitas questões relacionadas com a inevitável fraqueza que se apodera de alguém assim que decide reduzir o consumo de proteína animal. Aos revirar de olhos, reviro de volta. Aos que dizem que não como nada, dou a provar os meu pratos bem mais ricos em cor e vitaminas. Aos que duvidam das forças dos vegetarianos, respondo com uma subida ao Machu Picchu.
Mas no meio dos Cerqueiras, há um mais carnívoro do que os outros: o meu irmão. Aquele que vai a Espanha para comer chuleton que enche uma travessa e tem como Top três de refeições preferidas massa à bolonhesa, arroz de cabidela ou um bom bife da vazia.
Criticou sempre a minha decisão de deixar de comer carne e incorporou durante anos uma espécie de Donald Trump, cético quanto à relação entre os puns das vacas e o futuro do planeta.
Nunca o obriguei a deixar de comer, nem lhe impingi os meus pratos. Estavam sempre lá para ele provar se quisesse, o que nunca aconteceu. Até que chegou 2020.
Não sei se foi a mudança de década, o mercúrio retrógrado ou simplesmente a tomada de consciência, mas a verdade é que acordo um dia com esta mensagem: "Quais são os documentários sobre cenas vegan de que me falaste?"
Ainda associei a pergunta ao papa-Netflix e fiz as minhas sugestões: "What the Health", "Cowspiracy" e, ainda que algumas incongruências, o "The Game Changers". Dias depois, sim, a mensagem que nunca ele pensou escrever e muito menos eu ler: "Estou seriamente a pensar mudar a maneira como como".
O meu coração disparou. Esta mensagem vinda do carnívoro do meu irmão é o mesmo que ver Trump e Greta juntos num barco a caminho da Gronelândia para medir os níveis de degelo.
Nesse mesmo dia decidiu ir às compras e pediu-me, à distância de um telemóvel, que lhe desse indicações sobre o que comprar. "Fruta, posso?" "E legumes?". Sim, Zé Francisco, ainda não há brócolos nem uvas a sair da vaca. "Arroz, massa?" Venham elas. "Cogumelos? É que eu adoro cogumelos!". Força.
Lista feita, vem a questão em forma de mito comum. "Vou deixar para aí 100€ no supermercado, não?" Garanti-lhe que gasto muito menos no supermercado do que qualquer pessoa do clã Cerqueira e ele acreditou. "Confirma-se", escreveu-me meia hora depois, com um talão do Pingo Doce que nem cabia na fotografia tal era o tamanho, mas que no final ditava um total de 32,18€.
Ali estavam ervilhas, grão, couve flor, cenoura, espinafres, cenoura, salsa, batata doce, tomate, maçãs, peras, cogumelos, leite, iogurtes, beterrabas, arroz, massa, barritas de cereais e aveia. Não havia comidas estranhas, superalimentos nem produtos do outro lado do mundo.
Nem todos os vegetarianos são saudáveis, é certo, mas o que não é certamente saudável era aquele chuleton a ocupar meia travessa, acompanhado de batatas fritas.
Claro que não deixou de comer carne, nem era isso que eu esperava. Reduzir o consumo é a chave e não querer fazer os impossíveis também. Ouvi-lo dizer que "couve flor assada é mesmo saboroso" ou que "couves cozidas afinal são boas" é uma vitória maior do que ver alguém tornar-se vegan. É que falamos aqui de uma pessoa que nem no hambúrguer do McDonalds comia a alface, ok?
Continua a comer os seus bifes, mas menos vezes. Continua a comer batatas fritas, mas já as substitui por verdes. Continua a vir visitar-me a Lisboa, mas agora já o posso levar a comer ao The Green Affair. "Aquelas guiozas de vegetais que serviram de entrada ontem eram mesmo boas, não eram?".
Faith in humanity restored. Emoji de vitória.