Cada vez que alguém escreve um comentário do tipo "ah e tal, só agora é que se lembram que foram abusadas? 'Tá bem tá!", devia levar um ligeiro choque eléctrico nas partes baixas e ser-lhe entregue um kit com um balde, esfregona e lixívia, para se dedicar a uma atividade mais útil do que escrever cloaca na Internet.

Mas a democracia é assim mesmo e, perante as recentes revelações sobre o humorista britânico Russell Brand, as redes sociais encheram-se de frases desse género, juntamente com as mais variadas teorias da conspiração, alicerçadas na teoria difundida pelo próprio Brand, que alega em sua defesa que está a ser vítima de uma cabala dos meios de comunicação social mainstream com o objetivo de o destruírem.

Russell Brand já se autodestruiu como artista há muito tempo, ocupando há alguns anos um lugar nas franjas do meio que outrora o acolheu. Deixou o humor (e parte da sanidade mental) de lado e tornou-se um alegado guru espiritual, conspiracionista, produtor de vídeos recheados de teorias alucinadas. A internet, claro, adora-o, o algoritmo empurra os seus conteúdos para a frente. Brand mistura tudo nos seus conteúdos, e fá-lo de forma perigosa. Wellness, meditação, ioga, entrevistas com gurus espirituais, retiros, adereços xamânicos, cangalhadas e vestimentas várias, uma imagética importada da espiritualidade oriental, tão saborosa ao palato ocidental, que serve de embrulho perfeito à divulgação de propaganda de extrema-direita. E, claro, a tentativa de reformular a sua imagem para algo mais adequado a estes tempos higienizados.

Numa investigação conjunta, o jornal "The Times" e o programa de investigação do Channel 4 "Dispactches" divulgaram no fim de semana passado reportagens com testemunhos anónimos de várias mulheres que dizem ter sido emocional e fisicamente abusadas por Russell Brand. Uma delas, com apenas 16 anos à altura dos abusos, terá tido uma relação consensual com o humorista quando este tinha 30 anos. Brand chamava-lhe "a criança". Os detalhes são arrepiantes, grotescos, mas não surpreendentes. Brand já tinha, desde que se tornou uma celebridade, um enfant terrible do humor, mostrado ao que vinha, com as suas piadas sobre violações, sobre sexo oral forçado, o seu comportamento debochado que, num certo tempo, numa certa cultura, se relativizava e desculpava porque boys will be boys.

O mundo do espetáculo, o culto da celebridade, tem este dom de produzir Russell Brands. E Portugal não é exceção. Não tenho a ingenuidade de achar que haja quem tenha coragem de se chegar à frente e denunciar este tipo de comportamentos, estes abusos que, vos garanto, existem, da política ao futebol, passando pela televisão e pela música. Nós também temos os nossos Russell Brands, homenzinhos ridículos, perturbados e de ego frágil, que usam e abusam das suas posições de poder para controlar, manipular, abusar, violar, muitas vezes com o beneplácito e até o incentivo de quem os rodeia (seja porque dependem destas pessoas, seja porque desvalorizam este tipo de comportamento).

E, voltando à questão inicial, porque é que as mulheres não denunciam logo? Porque é que, perante uma situação limite como um abuso sexual, ou mesmo algo não tão grave mas igualmente danoso como o assédio, a coação ou a manipulação, não falam publicamente? Por medo. Porque se num caso em que o abuso ou assédio ocorre entre anónimos já é penoso e lento o processo de investigação, imagine-se quando uma das pessoas, o abusador, tem dinheiro, poder e influência. O que pode David contra Golias, sobretudo se David for mulher e recair sobre si, a priori, a suspeita?

Porque é isso que é preconizado pela mentalidade vigente: ela estava a pedi-las. Ela mereceu. Ela devia ter reagido. Ela devia ter dito 'não'. Então porque é que se riu? Então porque é que aceitou? Foi violada e continuou com ele?

O abuso, seja ele emocional ou físico, destrói a autoestima. O processo de percepção do abuso não é linear. Há negação, há desvalorização, há muita culpa envolvida. Há o querer esquecer, seguir em frente, desculpabilizar o agressor. Tentar "curá-lo". Muitas vítimas nem sequer sabem que o são até pedirem ajuda e se aperceberem do dano que lhes foi causado.

A velocidade alucinante com que consumimos informação, os posts de Instagram, os vídeos de TikTok que, mesmo bem intencionados, resumem um acontecimento complexo a meia dúzia de frases, são inimigos da compreensão de casos como o de Russell Brand (e outros semelhantes). Tomamos posições como se estivéssemos a escolher uma equipa de futebol e, tal como aconteceu no caso Rubiales, a discussão acaba por se reduzir a uma suposta batalha das mulheres contra os homens.

E nada está mais longe da verdade.

E é por não ser verdade que precisamos, mais do que nunca, dos homens sensatos, dos bons homens, como nossos aliados. Precisamos que os homens que reconhecem em comportamentos gravíssimos como os de Russell Brand, menos graves mas igualmente machistas e patriarcais como os do presidente Marcelo Rebelo de Sousa e de Luis Rubiales, não se calem.

Que falem também, que usem as suas plataformas para explicar porque é que isto está errado. E que sejam eles, no trabalho, nas escolas, com os filhos e as filhas, agentes de mudança.