Sábado. Quase 11 mil novos casos de contágio. 166 mortes por covid-19. Filas de ambulâncias à porta de hospitais. Doentes transferidos do sul para o norte, do norte para o sul. Profissionais de saúde desesperados. No Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, fala-se em cenário de "catástrofe". O País à beira da rutura, no início de um confinamento que todos tememos que não vá ser suficiente.
O momento perfeito para um hiato na realidade e para ler um desabafo de Ruben Rua. Depois de uma tarde a apresentar o formato "Em Família", um dos vários programas de companhia que ocuparam a antena da TV generalista neste primeiro sábado do Segundo Grande Confinamento, Ruben Rua sentiu a necessidade de se libertar. Ruben diz que é atacado de "forma desinformada, gratuita e ignorante" e que as redes sociais criaram a "mágica liberdade do self media". "Tão livre que é tantas vezes má e hedionda."
Isto é quase académico. Como deixei a alma mater (que, descobri neste post, é a mesma de Ruben Rua) há quase 15 anos e parei na era dos mass media, tive de ir ao Google atualizar-me e ler umas teses sobre o tema.
Continuemos.
"Nos últimos meses muito se tem falado do meu regresso à TVI. Um regresso meritório para muitos, um crescimento horizontal para outros", continua Ruben.
Ok, vamos por pontos.
Tenho sérias dúvidas que TODA a comunicação social portuguesa esteja interessada em Ruben Rua e no seu regresso à TVI. Tenho sérias dúvidas que, nas redações do "Expresso", "Público", "Diário de Notícias", "Jornal de Notícias", "Observador", TSF, "O Jogo", "Record", "A Bola", "Diário do Minho", "O Mirante", "Tribuna do Alentejo", o tema seja prioridade. Mas posso estar enganada. Esperem, vou fazer uma pesquisa.
Confirma-se. Não é.
E o que raio é um "crescimento horizontal"? Acho que tenho de ir ao Google outra vez. "Uma estratégia de crescimento horizontal significa expandir produtos / serviços a novos mercados. Isto pode ser feito através do desenvolvimento de um novo mercado ou da penetração num mercado já existente". Portanto, o regresso de Ruben Rua à TVI pode ser meritório E horizontal, certo? Estou confusa.
Continuemos.
"Há quem ache que posso vir a ser um grande apresentador, há quem considere que tudo o que tenho até ao dia hoje é uma consequência de ser o “namorado” da Cristina."
Esperem aí. "Namorado"? Mas já não tínhamos estabelecido que não eram namorados e o assunto tinha ficado arrumado? Vamos continuar. "A dança do barco [referência a um vídeo publicado nas redes sociais, durante umas férias conjuntas] supera o meu ímpar trajecto na moda, o meu curso de Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, e até, o meu trajeto televisivo construído nos últimos 5 anos, alguns deles quando a Cristina se encontrava numa outra estação televisiva."
Supera? Se o Ruben diz, tudo bem. Mas o problema é que não vejo mais ninguém a dizer isso. Porque, na realidade, já ninguém se lembrava da tal dança no barco não fosse Ruben Rua ter ido agora desenterrar o assunto. Porque é que o fez, e sobretudo porque é que o tal vídeo, com certeza publicado com a sua autorização, fez mossa, não percebemos.
"A Cristina deu-me a oportunidade e eu serei sempre grato por isso. Cabe-me a mim agarra-la ou não. É assim em todas as profissões. Alguém nos dá uma oportunidade e nós depois revelamos capacidade ou não."
Tudo certo.
"Leio muitos comentários que não são opinativos. São destilações de ódio, muitas vezes encomendadas, escondidas em perfis falsos". É justo e o tema já foi (e bem) abordado por Cristina Ferreira no livro "Pra Cima de Puta". Mas convém não misturar alhos com bugalhos, como Ruben Rua faz a seguir.
"Leio muitas notícias que me magoam, que não são dignas de uma publicação jornalística... publicações estas que tratei sempre com respeito e profissionalismo durante todo o meu percurso."
E pronto, é aqui que a porca torce o rabo.
Ruben Rua recorre à cada vez mais recorrente prática de atacar a comunicação social como um todo quando as publicações visadas são apenas duas ou três (e, honestamente, nem sei se tantas, porque não estou assim tão atenta nem me vou dar ao trabalho de criar um Google Alerts para Ruben Rua).
Mas não é o único. É uma estratégia muito usada por várias celebridades portuguesas. Utilizam as suas plataformas digitais ou e / ou presenças em programas de entretenimento para denegrir o jornalismo e os jornalistas, demitindo-se de especificar publicações, diretores e administradores (que são, na verdade, quem decide títulos, capas e manchetes). O efeito disto é uma desconfiança cada vez maior do público em relação à comunicação social, independentemente da área em questão.
E, como não têm de se chatear diretamente com ninguém, mantêm-se a salvo de potenciais aborrecimentos com quem realmente importa. Porque ao fim do dia, quem se lixa é o mexilhão (onde se lê 'mexilhão', leia-se o comum jornalista que tem de ir a conferências de imprensa, entrevistas e eventos e ouvir os queixumes, queixinhas, insultos e acusações das figuras públicas. E não é só no meio dos famosos, acontece em todas as áreas).
Hoje é domingo. Enquanto tomo o pequeno-almoço, vejo na SIC Notícias a repetição de uma entrevista de Barack Obama à BBC, a propósito de "Uma Terra Prometida", o seu livro de memórias sobre os oito anos enquanto presidente dos EUA. O jornalista pergunta-lhe se ele acha que foi uma das primeiras "vítimas" desta nova era da desinformação, a propósito da teoria do birtherism (teoria da conspiração sobre o seu local de nascimento), que teve como um dos principais acicatadores Donald Trump.
Obama diz que sim, fala sobre todas as teorias da conspiração que, nos últimos anos, nasceram e ganharam tração graças às redes sociais e a figuras-chave que as legitimaram como factos, desde o Qanon ao fantasma de um socialismo fictício a pairar sobre a América (a prova de que o Macarthismo está bem vivo e em franca expansão).
E a verdade é que a verdade corre o risco de desaparecer e reduzir-se apenas e só à opinião. Tudo é relativo e vale a verdade de quem conseguir convencer e persuadir o outro. Mesmo sem provas, mesmo com argumentos falsos. O jornalismo é a primeira vítima. Depois, seguir-se-ão outras. E, por fim, a liberdade. Esta semana vimos sinais alarmantes, com a quase indiferença da opinião pública em relação à vigilância policial a dois jornalistas, um ato ilegal mas que muitos, se calhar, até aplaudiram, tal é o ódio que têm à comunicação social e à liberdade de imprensa.
Dito tudo isto, Ruben Rua sempre foi uma simpatia em todas as vezes que me cruzei com ele. Sempre cordial e bem educado. O porquê deste desabafo a destempo, num cansativo (e, convenhamos, pouco original) ataque à comunicação social, só ele saberá.
O que estamos a ver.
A hilariante série "Derry Girls", já disponível na Netflix
O que queremos comer.
Uma bifana de porco alentejano do Reco Reco
Um artigo para ler.
A entrevista do escritor Don DeLillo ao "Público", a propósito do lançamento do seu novo livro, "O Silêncio".