Há oito meses, saíamos de casa de álcool gel em punho, para nele desinfetarmos as mãos a cada toque. Mudávamos de passeio na iminência de nos cruzarmos com alguém. Não visitávamos família ou amigos — não havia interações sociais. Os produtos de supermercado desinfetavam-se, a roupa da rua ia diretamente para a máquina de lavar. A vida fazia-se por casa, com o número de saídas limitado ao estritamente necessário, com sucessivos Estados de Emergência a ditarem novas regras, que mudaram radicalmente a forma de viver.
Duas estações depois, à medida que os números de COVID-19 voltam a disparar em Portugal (com quase três mil casos por dia, o número mais elevado desde o início da pandemia), cresce também a "Fadiga Pandémica" ("pandemic fatigue"), sentimento que foi já reconhecido pela comunidade científica de vários Estados Membro da Europa e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Foi, a 5 de outubro, tema de uma reunião levada a cabo por esta organização, que incluiu a presença de médicos de diferentes países, tendo como objetivo chegar a soluções para combater o novo problema do novo normal.
Apesar de o aumento de casos e da nova sensação seguirem no mesmo sentido crescente, são dois acontecimentos que entram em conflito, que se alimentam um do outro. É uma união contraproducente. No fundo, trata-se disto: depois de sucessivos Estados de Emergência, depois de alterações profundas nas estruturas da sociedade, depois de meses em constante estado de alerta, o medo deu lugar à apatia, da mesma forma que a força e o pragmatismo iniciais para combater o novo coronavírus deram lugar ao cansaço emocional. Tudo somado, reflete-se em menos empenho na aplicação das recomendações das entidades de saúde, aquelas que nos protegem individualmente e em comunidade.
É provável que esteja a sentir esta fadiga, até porque, de acordo com a OMS, as manifestações comportamentais deste sentimento, que figura uma nova ameaça à saúde global, passam pela sensação de desmotivação "quanto a seguir os comportamentos recomendados para se proteger e proteger outras pessoas do vírus." Esquece-se de desinfetar as mãos? De vez em quando já dá um abraço? Reúne-se em casa com amigos sem equipamento de protecção individual? Exato. É mesmo esse o resultado: ser menos exigente e cuidadoso quanto ao distanciamento social, à desinfeção das mãos, e à utilização de máscara, as três regras fundamentais que cada cidadão pode levar a cabo para conter a disseminação do novo coronavírus.
É o efeito do cansaço. “Desde que o vírus chegou à região europeia, há oito meses, os cidadãos fizeram enormes sacrifícios para conter a COVID-19", disse já Hans Henri Kluge, diretor regional da OMS na Europa. “Teve um custo extraordinário, que nos esgotou a todos, independentemente de onde vivemos ou do que fazemos. Nessas circunstâncias, é fácil e natural sentirmo-nos apáticos e desmotivados, sentir fadiga."
Como surge a Fadiga Pandémica?
Não surge da noite para o dia. A fadiga pandémica vai, gradualmente, aparecendo e crescendo, à medida que o carrossel emocional provocado pela COVID-19 se torna mais denso, contaminando todos as dimensões da vida. Está tudo ligado: "A fadiga pandêmica evolui gradualmente com o tempo e é afetada pelo ambiente cultural, social, estrutural e legislativo", diz a OMS.
Dina Guerreiro, psicóloga, garante-nos que a forma de sentir os efeitos do vírus é sempre dolorosa, mas muito distinta de pessoa para pessoa. Mas há um pensamento comum: "Doutora, estou muito preocupado, mas já me convenci que vamos ser todos infectados", ouve dizer, em consulta.
"As pessoas não estão felizes. Estão cansadas e precisam de certezas, apesar de hoje isso não ser possível."
Sobre o decréscimo dos cuidados, a especialista responsabiliza, em parte, as políticas públicas que, depois de sucessivos e exigentes estados de emergência, nos devolveram uma falsa sensação de normalidade, que veio a facilitar o desleixo. Mas, no que se refere à emoção reconhecida pela OMS, aponta a questão da incerteza e da frustração. "Mais complicado do que o vírus, é a incerteza do vírus", diz, notando que, no que toca à saúde mental, estão a disparar os casos de depressões e quadros ansiosos.
"As pessoas não estão felizes. Estão cansadas e precisam de certezas, apesar de hoje isso não ser possível. Os seres humanos têm um limite à frustração e esta fadiga pandémica representa este limite."
Depois, há a tal apatia. "Quando o ser humano passa por uma experiência prolongada, chega um ponto em que deixa de ter quase energia para o combate e manutenção da guarda face à situação de medo e de incerteza."
"Resta viver um dia de cada vez, viver os momentos que temos, porque o amanhã não sabemos"
Sem vacina ou medicação à vista, como é que combate esta sensação de fadiga? A comunidade científica já está em busca de soluções, tanto que a pedido dos Estados-Membros europeus, a OMS/Europa "desenvolveu um quadro de recomendações de políticas para orientar os governos no planeamento e implementação de estratégias nacionais e subnacionais para reforçar o apoio público às medidas de prevenção COVID-19."
Sem nada específico a apontar, concluiu-se que este quadro de recomendações deveria envolver quatro esferas principais:
- Compreender as pessoas, reunindo evidências para a criação de políticas, intervenções e comunicação direcionadas, personalizadas e eficazes;
- Envolver as pessoas como parte da solução;
- Ajudar as pessoas a reduzir o risco enquanto estão envolvidas em atividades que as fazem felizes;
- Reconhecer e tratar as dificuldades pelas quais as pessoas estão a passar, contemplando o "profundo impacto" que a pandemia tem nas suas vidas.
Dina Guerreiro dá o exemplo da estratégia que, desde o início da pandemia, foi adotada pela Finlândia. "Comunicou muito assertivamente com as diferentes populações. Fez conferências de imprensa direcionadas ao público-alvo, incluindo crianças."
Por outro lado, em Portugal, considera que, apesar dos esforços do Governo, faltou o apelo à compreensão e o envolvimento da população. "As pessoas não se sentem nem envolvidas, nem compreendidas."
No que se refere à orientação da OMS, relativa à redução do risco nas atividades que nos fazem felizes, a psicóloga considera que é uma tarefa difícil, porque "as atividades que fazem as pessoas felizes passam muitas vezes por relacionarem-se com o outro, que é um tipo de acção que sofreu grandes alterações."
Ainda assim, dá um exemplo, mostrando que as alternativas existem: ao invés de nos encontrarmos no café com um amigo, podemos sempre dar uma caminhada, assegurando a distância de segurança e a utilização da máscara. "Temos de apelar a todo o nosso poder de encaixe e tolerância à frustração, para conseguirmos reenquadrar as atividades que nos davam prazer."
A vida no longo prazo está suspensa. "Ninguém sabe com o que contar, ninguém consegue fazer planos", diz. Mas esta é a realidade atual. Temos de reconhecê-la, agir em conformidade e fazer um esforço para olhar para o presente, considera Dina Guerreiro. "Resta viver um dia de cada vez, viver os momentos que temos, porque o amanhã não sabemos. Temos de aprender a lidar com a incerteza e de ter a capacidade para aceitar como as coisas são, sem querermos que sejam como sempre foram."