"Sentia que estava no corpo errado e odiava olhar para o espelho". É assim que quase todas as pessoas que se assumem como transexuais se sentem desde o momento em que percebem que não se identificam com o género com o qual nasceram. Foi precisamente com esta frase que este domingo, 12 de setembro, um dos concorrentes da nova edição do "Big Brother" se apresentou ao País.
"Sou transexual e estou aqui para abrir mentalidades", disse Lourenço Barcelos, 24 anos, no vídeo de apresentação. Apesar de considerar que teve uma infância "boa", o jovem não esconde que foi "cheia de preconceito". Em 2018, ganhou coragem e iniciou o processo de transição.
Esta é a segunda vez que um reality show português recebe um concorrente que se assume como transexual. O primeiro a querer mudar mentalidades e explicar ao mundo do que se trata, afinal, a questão de uma pessoa não se identificar com o género com o qual nasceu, foi Lourenço Ódin, concorrente da "Casa dos Segredos 4", em 2013. No caso de Loureço Ódin, foi com apenas seis anos que começou a notar que alguma coisa de diferente se passava com o seu corpo. "Na altura, ainda era muita criança e não dava para perceber nada muito concreto. Sabia que alguma coisa estava errada e que me sentia diferente de outras meninas e não reagia, de todo, como elas", explica em entrevista à MAGG.
Os anos foram passando, mas Lourenço continuou a sentir que não pertencia ao corpo com o qual tinha nascido. Aos 21 anos, decidiu emigrar. Partiu para o Luxemburgo e foi lá que começou à procura de respostas. "Na altura, não se falava em transexualidade nem aqui nem em lado nenhum. Fui o primeiro caso no Luxemburgo, ou seja, os médicos não sabiam o que se passava", assume. Depois de vários anos de pesquisa, aos 26 começou o processo de mudança de sexo, tendo sido primeiro acompanhado por psicólogos. O início dos tratamentos hormonais deu-se também nesse país.
Com vontade de regressar, mas sem saber como a situação era abordada em Portugal, foi só quando, através de um programa de televisão, conheceu o cirurgião João Décio Ferreira, que decidiu entrar em contacto com o especialista e expor todas as dúvidas. "Nessa altura, ele explicou-me como se faziam as coisas em Portugal e foi aí que viu também as minhas análises e percebeu que os valores estavam errados e que lá [no Luxemburgo] me estavam a dar uma dose muito mais alta do que aquela que devia tomar de hormonas mensais."
"Embora não queiram falar nisso, a realidade é que o público tem uma lista de espera enorme"
Já em Portugal, voltou a iniciar as consultas com psicólogos e foi também cá que começou a fazer as cirurgias, sendo acompanhado no setor privado. "Quem estava no público a fazer estas cirurgias é o médico que agora está no privado, o Dr. Décio. A mudança aconteceu já antes de eu ser operado, e nessa altura o público parou. Embora não queiram falar nisso, a realidade é que o público tem uma lista de espera enorme, o que faz com que este tipo de operações não sejam feitas", conta Lourenço Ódin.
Em entrevista à MAGG, o cirurgião João Décio Ferreira, que fez um percurso na cirurgia plástica no Hospital de Santa Maria, explica que já se reformou do serviço público há mais de 10 anos, mas continua a trabalhar como cirurgião no privado — confirmando que a técnica que usa para operar é bastante diferente daquela que é utilizada atualmente no serviço público (com a qual não concorda, devido às sequelas que deixa).
"Até 1995 não eram permitidas essas cirurgias [de mudança de sexo] porque havia uma alínea do código deontológico da Ordem que não permitia que se fizesse cirurgias de mudança de sexo, mas a partir de 1995 foi acrescentada uma alínea que permitia essa cirurgia em transexuais com diagnóstico feito."
Ao longo do últimos anos, conta que já recebeu pessoas que o procuram porque não querem esperar mais para fazer a mudança e outras que procuram "corrigir coisas que não ficaram bem", não só de Portugal como também de outros países. "Eu já era para ter parado e costumo dizer que já dei 12 anos da minha reforma", assume, referindo que não sabe como ficará a situação em Portugal quando deixar de trabalhar. "Poderia haver mais médicos a fazer, mas acontece que não foi facilitada essa situação há uns anos", diz.
De acordo com o antigo concorrente da "Casa dos Segredos", os custos relacionados com a mudança de género no setor privado encontram-se muito mais baixos do que os que eram praticados no início. "Quando foi o meu processo todo, eu paguei cerca de 50 mil euros, mas neste momento além de terem reduzido o número de operações (porque eu fiz 20 e elas agora estão mais ou menos nas 13), o valor ronda os 25 mil euros", diz, acrescentando que no serviço nacional de saúde "as pessoas têm de esperar indefinidamente". "No privado é também uma questão muito delicada porque o Dr. Décio, que foi o que me operou, é o único em Portugal que faz a faloplastia com esta técnica, no entanto não está a aceitar novos casos. Está só a acabar os que já começou porque se vai reformar."
Quem também o diz é Isaac e Ary, dois homens transgénero que, em 2019, decidiram criar a plataforma T Guys — um espaço de partilha que pretende dar informação e formação sobre temas pertinentes para a comunidade LGBTQI+ com maior incidência em assuntos relativos com as questões de género. De acordo com os jovens, além de se verificar um grande atraso na realização deste tipo de operações, "a URGUS [Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual] fica muito aquém das necessidades das pessoas transgénero porque não é um serviço próprio só para isso, é um serviço que tem por base a reconstrução de uma genitália".
Além disso, frisam ainda que "mesmo no serviço público, há uma coisa da qual nós não nos podemos esquecer: uma pessoa que não possa ficar parada sem trabalhar durante um determinado período de tempo, porque como em qualquer cirurgia há coisas que podem correr mal, uma pessoa que não possa meter uma baixa ou ficar parada é uma pessoa que não tem condições monetárias para o fazer (mesmo no público)", diz Isaac em entrevista à MAGG. "Nem tudo aquilo que é gratuito é acessível a todos", acrescenta.
Como forma de proteger a genitália de cada um, Isaac e Ary defendem que se dê primazia à utilização da palavra "transgénero", ao invés da palavra "transexual" e explicam que, apesar de não estar errado usar a palavra "transexual", esta tem caído em desuso.
Ser transexual é diferente de ser transgénero?
"Nós, T Guys, tentamos não usar porque remete precisamente para a questão da genitália e nós, pessoas trans, estamos muito cansados do facto de a nossa genitália ser sempre alvo de conversa", explicam. Além disso defendem que "o que faz uma pessoa trans não são as cirurgias, é a sua identidade de género."
"Antigamente, dizia-se que a pessoa transgénero é uma pessoa que não tinha as operações todas feitas e que uma pessoa transexual é uma pessoa que tem as operações todas feitas. Mas a verdade é que temos aqui duas grandes problemáticas: primeiro estamo-nos a referir concretamente à genitália da pessoa e a segunda questão é que nem todas as pessoas trans querem, entre muitas aspas, todas as cirurgias, no sentido em que um homem trans não tem obrigatoriamente de fazer uma faloplastia, da mesma maneira que uma mulher trans não tem de fazer uma vaginoplastia. Além disso, aquilo que é mais recorrente são as pessoas trans que não têm a capacidade de as fazer nem no privado nem no público porque ser grátis não quer dizer que seja acessível a todos."
Rui Ferreira Carvalho, psiquiatria e sexólogo clínico no Hospital de Santa Maria, acompanha diariamente crianças e jovens adultos nesta situação, e defende também a utilização da palavra transgénero. "Essa é uma diferença que cada vez mais se tem esbatido na comunicação científica. Eu, por exemplo, dificilmente utilizo o termo transexual", frisa em entrevista à MAGG.
"O que antigamente se defendia é que o termo transgénero estava mais ligado às questões identitárias e transexual seria mais se já existisse algum tipo de alteração endocrinológica, hormonal ou alguma cirurgia, mas fazer essa distinção cada vez faz menos sentido porque temos muitos jovens trans que não são binários e que não fazem as intervenções endocrinológica ou cirúrgicas", continua.
Esta é também uma questão que ainda divide a comunidade médica. O cirurgião Décio Ferreira, por exemplo, defende que só faz sentido ser usada a expressão "transexual" uma vez que a palavra "transgénero" abarca muitas outras características e não só quem sofre de "disforia de género". "Um transexual é um transgénero, mas é o único que sofre da disforia de género", explica.
Contudo, Rui Ferreira Carvalho defende que "hoje em dia, com a visão cada vez mais integrada com o ativismo e com as próprias visões das pessoas trans, cada vez mais se tem deixado cair a distinção entre quem já fez operações e quem não fez." Do ponto de vista psiquiátrico, explica que "o que se fala é de disforia de género e, por isso, aplica-se os termos cisgénero (congruente com o sexo biológico e género atribuído à nascença) e transgénero (em que este é distinto)". Ainda assim, na sua opinião, o mais importante é o termo utilizado ir ao encontro da vontade da própria pessoa.
"Em termos de acompanhamento em consulta, focada claro na saúde mental, para mim o mais importante é saber como é que a própria pessoa se identifica. Se temos pessoas que se identificam mais com o termo transexual, uso esse termo com essa pessoa, mas, na minha visão, fazer essa distinção entre quem já fez intervenções cirúrgicas ou quem não fez, para a própria saúde mental da pessoa, não é muito relevante", explica
"As pessoas não têm também de demonstrar publicamente se já fizeram as intervenções cirúrgicas ou não. Fazer essa distinção faz com que só quando as pessoas tivessem intervenções é que seriam transexuais e antes disso seria só transgénero e, na minha ótica, isso não faz sentido", acrescenta.
Através das histórias de Isaac, Ary, e Lourenço, percebemos que o processo de transição de género é muito mais complexo do que poderemos imaginar, demorado e, muitas vezes, pouco organizado no serviço nacional de saúde. Mas, afinal, como é lidar com o facto de se querer fazer as operações até ao fim, mas depois não conseguir?
"É uma situação muito complicada. Eu, por exemplo, não tenho dinheiro para o privado e o público para mim não é uma opção porque acho que o serviço fica muito aquém daquilo que necessito para o meu corpo", afirma Isaac, ressalvando que uma faloplastia, por exemplo, é uma cirurgia muito complexa que implica mais do que uma intervenção cirúrgica.
"Acompanho centenas de miúdos por mensagens e sei que alguns estão em situações muito críticas"
No caso de Lourenço Ódin houve possibilidades monetárias para concluir todas as operações no setor privado, mas ele próprio garante que tem conhecimento de que na maioria dos casos isso não acontece. "Simplesmente não estão a avançar com o processo. Apesar de já ter exposto a minha história há oito anos, ainda hoje acompanho centenas de miúdos por mensagens, diariamente, e sei que alguns estão em situações muito críticas de depressões porque não conseguem avançar [com as operações] e não conseguem ter o dinheiro para ir para o privado sequer", conta.
À MAGG, Lourenço diz que, além da falta que faz o serviço público realizar essas operações, falta também formar mais médicos no País para lidar com este tipo de cirurgias. "Na minha opinião, e na de vários médicos, devia ter sido feita uma formação com quem sabe, neste caso o dr. Décio. Ele foi reconhecido com uma medalha de ouro na Alemanha, mas Portugal não reconhece nada e o que aconteceu foi que pegámos numa equipa do público de Coimbra e levamo-los para a Bélgica para aprender as técnicas com as quais ninguém quer ser operado."
Tratando-se de um processo "extremamente agressivo", tanto física como psicologicamente, e com operações "muito dolorosas", Lourenço refere que quanto mais condições forem dadas às pessoas, melhor. "Eu na segunda operação quis desistir, não quer dizer que fosse parar por ali, mas quis fazer uma pausa naquele momento. Foi a minha mãe que me incentivou a não parar". Felizmente sempre contou com o apoio da família e em termos profissionais nunca sentiu discriminação porque esteve emigrado. "Talvez na minha adolescência não existisse tanta discriminação como há agora porque as pessoas nem sequer falavam nisso."
Esta é uma situação que também preocupa o cirurgião João Décio Ferreira que, neste momento, está só a terminar as intervenções cirúrgicas dos pacientes que já tem. "A percentagem de suicídios das pessoas com disforia de género é diferente da percentagem de suicídio do resto da população, mas essa questão verifica-se mais antes de se começar com o processo de diagnóstico porque quando começam o processo são acompanhados por psicólogos e psiquiatras e isso não se verifica. Mas agora começa a surgir outra vez essa questão na fase em que já há diagnóstico e é suposto arrancar com a fase cirúrgica e não veem a possibilidade de andar para a frente", explica o especialista.
Também Rui Ferreira Carvalho diz que o que acaba por acontecer com os jovens e jovens adultos que segue é que, por este ser um processo muito longo, sofrem consequências ligadas à saúde mental. "É muito importante acompanhar este processo longo de forma a que possamos diminuir o risco de depressões, intenção suicida ou comportamentos auto-lesivos: que às vezes até são o primeiro sinal de que algo não está bem", diz.
De acordo com o psiquiatra, já aconteceu também casos de identidade de género serem só detetados em ambiente clínico já depois deste tipo de comportamentos. "O facto de eu ter esta abertura e disponibilidade para abordar esta temática faz com que acabem depois por revelar que existia uma disforia de género ou não congruência de género por detrás."
Saúde de pessoas trans "tem de ser abordada nas faculdades"
Na opinião de Rui, há poucos profissionais capacitados para lidar com este tipo de situações. "Falando da minha experiência pessoal, foi necessário obter formação extracurricular para abordar estes tópicos. Na parte da sexologia, estes tópicos eram apenas abordados numa aula de endocrinologia e, na altura, ainda com uma visão muito patologizante. Foi daí também que surgiu a minha necessidade de obter formação externa quer na Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, quer na Sociedade Europeia de Medicina Sexual e tive também formação na Associação Europeia de Profissionais de Saúde para cuidados trans que também me motiva agora a procurar dar essa formação a outros jovens médicos em formação."
Muito mais do que as cirurgias relacionadas com a mudança de género, Isaac e Ary falam também da falta que faz a saúde trans ser mais estudada, logo em ambiente académico. "Nós não podemos continuar a ser só um guia e manual de boas práticas que aparece no hospital. A nossa saúde tem de ser abordada nas faculdades para que estes estudantes cresçam e aprendam logo a lidar com a nossa saúde."
Como exemplo dão várias "situações complicadas" que ocorrem durante o processo de vacinação contra a COVID-19. "Os profissionais de saúde não estavam informados em relação a que vacina é que é que pessoas trans, por exemplo, como eu que faço testosterona, poderiam tomar, porque as guias estavam feitas só a pensar em pessoas cis", diz Ary.
Apesar de serem cada vez mais os que procuram saber o que faz com que uma pessoa seja transgénero, por que processo tem de passar, são também muitos os que, na opinião de Lourenço, Ary e Isaac, assumem querer ficar na ignorância e não tentar perceber mais estas pessoas. Mas, apesar de se falar cada vez mais do assunto, o que falta para que esse "falar" tenha um impacto verdadeiramente positivo?
Em 2013, Lourenço Ódin entrou no reality show para mudar mentalidades relativamente a este assunto, agora assistimos à entrada de mais um concorrente com o mesmo objetivo. Apesar de assumir que a história de Lourenço Barcelos terá uma visibilidade diferente, Lourenço Ódin considera que "as pessoas ainda continuam muito aquém daquilo que poderiam saber sobre o assunto". "Vai dar uma visibilidade diferente e vão falar muito do tema neste momento, mas depois esquecem. Acho que não lhe vão dar a oportunidade para explicar bem as coisas."
A participação de pessoas trans em reality shows melhora a representatividade?
Na opinião de Isaac, a participação de qualquer pessoa trans nestes programas não traz o assunto para cima da mesa de uma forma positiva. "Não pela participação das pessoas em si e pelo que elas dizem (até porque a representatividade nunca deixa de ser representatividade e todos nós tentamos representar a nossa comunidade o melhor possível), mas porque quem comenta os programas, desde os media às pessoas que são convidadas, são pessoas que não têm a mínima informação e formação para comentar este tipo de assuntos."
Além disso, o jovem considera que as questões de produção que os concorrentes não conseguem controlar influenciam muito o desfecho da história. "Ele [Lourenço Barcelos] até pode estar lá três horas a explicar tudo, mas se a televisão não der o devido tempo de antena, isso não vai servir para passar a mensagem. Daí a minha resposta ser 'não, este tipo de programas não melhora a representatividade'."
Ary partilha da mesma opinião: "Eu acho que é sempre bom as pessoas poderem ter um modelo e sei que até hoje o Lourenço Ódin, por exemplo, continua a ser visto por muitas pessoas trans como um modelo. Nesse sentido, acho que é importante, mas acaba por ajudar mais as pessoas dentro da comunidade a perceberem-se melhor. No caso da sociedade, o resultado acaba por não ser positivo devido aos aspetos que o Isaac mencionou. Acho que nos pedem um pouco para nos contentarmos com o facto de já haver um trans na televisão, mas isso não é suficiente porque os assuntos não são desenvolvidos ao certo."
Para Lourenço, falta haver nos meios de comunicação social a preocupação em falar com bons profissionais, e, acima de tudo, deixar que as coisas sejam bem explicadas. "Este é um tema que não se fala em tão pouco tempo. Já fui a muitas entrevistas de televisão e recusei outras tantas precisamente por esse motivo, porque me convidam para falar sobre esse assunto e depois só querem saber de coisas que não interessam a ninguém", afirma. "As pessoas hoje em dia ainda confundem homossexualidade com transexualidade, ou associam prostituição à transexualidade. Não mudam nesse aspeto e acho que se devia definir bem esses temas e explicar bem o caso e o tipo de operações que têm de ser feitas. Ao fim destes anos todos eu encontro muitos miúdos que não fazem ideia por onde começar, ou o que podem fazer."
Foi precisamente com o objetivo de ajudar quem se encontra mais perdido que Isaac e Ary deram início ao projeto T Guys. "O objetivo inicial era criarmos um canal como o que nós gostávamos de ter tido como apoio durante a nossa transição. Principalmente no início, quando não percebemos bem o que fazer e a quem recorrer. Mas, entretanto, o canal acabou por tomar uma dimensão bastante diferentes quando percebemos que ele estava a ser utilizado como ferramenta por profissionais de saúde, pelos estabelecimentos de ensino e era também objeto de consulta por parte de famílias e associações. Aí começámos a mudar a dinâmica de forma a tentar explicar a nossa realidade alertando para as coisas que ainda precisam de ser feitas." E, segundo os dois, há uma coisa que ainda precisa de ser feita.
"Portugal é um dos países que contempla uma boa lei em relação às pessoas trans, mas isso não se reflete nas mentalidades"
Apesar de consideraram que "Portugal é um dos países que contempla uma uma boa lei em relação às pessoas trans", consideram também que "isso não é o reflexo das mentalidades". "Nós achamos que a lei está à frente das mentalidades. No sentido em que temos uma boa facilidade de alteração dos nossos documentos, por exemplo", explica Ary, referindo que já não é preciso um documento médico específico para isso.
Trata-se da Lei n.º 38/2018 que estipula que "têm legitimidade para requerer o procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de nome próprio as pessoas de nacionalidade portuguesa, maiores de idade e que não se mostrem interditas ou inabilitadas por anomalia psíquica, cuja identidade de género não corresponda ao sexo atribuído à nascença", lê-se em Diário da República.
Para Isaac e Ary, falta ser também dada nas escolas mais atenção à educação sexual. Esse é, na opinião dos jovens, um fator crucial para que as pessoas passem a estar instruídas cada vez mais cedo. "Não só a nível dos assuntos trans, mas de tudo o que envolve a sexualidade e o corpo e aí, sim, claro que devia estar contemplado falar de assuntos como identidade de género, orientação sexual, entre outros."
De acordo com os T Guys, há já várias associações disponíveis não só para ajudar as pessoas trans, como os seus familiares e até o resto da sociedade a procurar respostas relativamente ao tema. A AMPLOS (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género) é um dos exemplos, seguindo-se a Transmissão — associação de pessoas trans e não-binárias — ou até a ILGA Portugal que presta, entre muitas outras coisas, apoio psicológico gratuito a quem não tem possibilidades monetárias para estas consultas no setor privado de saúde, referem.
"Tem sido feito um percurso no sentido de melhorar a disponibilidade e a abertura de mentalidades para refletir e integrar esta diversidade"
Ary e Isaac consideram que são cada vez mais as escolas que já se preocupam com a integração de crianças e jovens trans, mas há relatos de casos de sítios nos quais isso ainda não acontece. "É preciso que os próprios sistemas estejam disponíveis para acolher e albergar estas pessoas porque uma criança ou um adolescente que seja trans tem direito ao mesmo tipo de integração, inclusão e ensino como qualquer outra, mas, infelizmente, não é isso que acontece sempre."
O psiquiatra Rui Ferreira Carvalho mostra-se também esperançoso quanto ao futuro. Num contexto de primeiras consultas, refere que acompanha muitos jovens da faixa etária da adolescência com questões de género e também alguns jovens adultos que estão a fazer a transição e que estão em procura identitária. "Querem saber quem são e se existe alguma questão ligada à incongruência de género, ou seja, uma identidade de género que é distinta daquela que lhes for atribuída à nascença. Sinto que há uma grande necessidade de compreensão por parte dos sistemas que os rodeiam: escola, ambiente de trabalho, etc", que, como diz, por vezes, não é a melhor.
Ainda assim, sente que "tem sido feito um percurso no sentido de melhorar a disponibilidade e a abertura de mentalidades para refletir e integrar esta diversidade".
"Ainda existe um caminho a trilhar, mas a minha visão cada vez que consigo trabalhar do ponto de vista familiar, por exemplo, e ajudar neste percurso, tem sido de uma enorme força por parte destas famílias, destas pessoas, que me enche de grande esperança de que o futuro venha a ser progressivamente mais aceitante e melhor. O facto de se discutir estas questões do ponto de vista da comunicação social é também essencial porque dá visibilidade em oposição à invisibilidade, desconhecimento e fobia (o medo do que não conhecemos)", remata.