O PAN e o Bloco de Esquerda (BE) apresentaram esta segunda-feira, 12 de julho, dois projetos de lei que visam criar uma espécie de código de conduta nos estabelecimentos de ensino com o objetivo de que alunos e funcionários possam escolher as casas de banho e balneários em função do género com o qual se identificam.
A medida tem como objetivo promover a igualdade de género nas escolas, ultrapassando as inconformidades com a Lei Fundamental apontadas pelo Tribunal Constitucional à lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, avançou esta segunda-feira o "Jornal de Notícias". O diploma em questão foi aprovado com os votos favoráveis do PAN, PS e BE mas, devido a uma fiscalização sucessiva a pedido de 85 deputados, em particular aos números 1 e 3 do artigo 12.º, o Tribunal Constitucional acabou por apontar inconformidades à lei, considerando que a mesma não poderia ser regulamentada pelo Governo, mas apenas pelo Parlamento, escreve o mesmo jornal.
A inconstitucionalidade da lei n.º38/2018 criou para o BE, segundo o "JN", uma "situação intolerável, enquanto geradora de lesões ao bem-estar e ao desenvolvimento saudável dos/as estudantes" e deve ser, por isso, "com urgência colmatada".
Para Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, o propósito da medida não podia ser mais positivo, mas sente que, neste caso, como em muitos outros, só resultará se as instituições de ensino estiverem efetivamente preparadas para isso. "Aquilo que uma vez mais me interrogo é onde é que está, neste momento, um trabalho feito no currículo das escolas em termos de inteligência emocional e de trabalhar a identidade e o respeito pela diferença (não só junto dos alunos, mas também dos docentes e de toda a comunidade educativa)", diz em entrevista à MAGG.
"Já tendo trabalhado em escolas, e continuando perto das comunidades educativas, sinto que professores e auxiliares continuam sem recursos para que, eles próprios, possam ter competências emocionais e sociais para dotar os seus alunos e as suas crianças de capacidades que possam abrir caminho para que isto não seja simplesmente mais uma medida implementada por um decreto de lei, mas que seja uma mudança de paradigmas", continua, defendendo que a escola é, sem dúvida, o local ideal para implementar estas medidas, mas com a devida preparação.
"O contexto escolar é aquele por onde se deve começar"
Catarina Graça, licenciada em Psicologia Clínica e Psicoterapeuta na Clínica da Mente, partilha da mesma opinião."O contexto escolar é aquele por onde se deve começar — e o educacional —, e onde deveria realmente começar a aparecer esse tipo de iniciativas. Se houver uma educação orientada no sentido de respeitar o próximo, independentemente da sua orientação sexual ou da identidade de género, à partida, isso poderá vir a tornar-se numa medida normativa e uma coisa que é possível respeitar sem haver comentários nem gozos pela pontualidade com que estes casos vão acontecendo", explica à MAGG.
Apesar de considerar que "há ainda uma visão muito estereotipada" deste tipo de assuntos, a psicóloga defende que se "tem de começar por algum lado" e que educar as crianças e jovens para a igualdade de género é um trabalho que deve também ser feito em casa para evitar que as minorias sofram com certos preconceitos.
"[A escolha da casa de banho] é uma coisa que para a maioria das pessoas pode ser banal, mas para esses adolescentes que não se identificam com o seu género, é motivo de sofrimento. Todos devem ter liberdade de o fazer em sintonia com aquilo que realmente os faz sentir bem. É uma coisa que pertence aos outros e não a nós e não tem de nos fazer confusão. Só nos pode fazer confusão o facto da pessoa ser proibida de fazer aquilo", realça Catarina Graça. Para a psicoterapeuta, formar o pessoal docente e não docente para a implementação deste nova medida pode ser uma das soluções, mas considera que "na prática, quanto mais naturalmente se falar nisto, mais fácil vai ser".
Esta é uma discussão que já vem de agosto de 2019, altura em que foi publicado um despacho que estipula que "as escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade".
De acordo com a deputada do BE, Fabíola Cardoso, o projeto de lei entregue esta segunda-feira tem como base o "quadro normativo que estava montado" com o despacho do Governo de julho de 2019, mas introduz "pequenas diferenças cirúrgicas", disse em declarações à Agência Lusa, citada pelo "Público".
Entre as alterações, o projeto do BE prevê um "alargamento da aplicação deste regime a todo o pessoal das escolas, ao pessoal docente e não docente", além dos alunos, e "a possibilidade do estabelecimento de parcerias com as associações LGBT+ principalmente nas áreas da formação e de ações de sensibilização e de informação nas escolas", referiu a deputada citada pelo mesmo jornal.
Para Filipa Jardim da Silva, é principalmente por estas mudanças que se tem de começar. "Na minha perspetiva, as escolas têm de ser um espaço em que (mais do que haver decretos de lei a determinar seja o que for), através de disciplinas e currículos, se lute pelas necessidades atuais do ponto de vista de competências emocionais e pessoais."
Segundo a psicóloga, na base de uma sociedade que se respeita mutuamente, é preciso que haja um trabalho prévio de sensibilização. Informar, atualizar os conteúdos curriculares e introduzir atividades lúdicas e pedagógicas — desde o pré-escolar ao ensino superior, que, de uma forma consistente, vão incluindo premissas de respeito pela diferença e pelo próximo — são fatores essenciais a colocar em prática, tanto entre alunos, como de alunos para professores ou funcionários e vice-versa.
"Eu percebo, concordo e acho que o propósito da medida é positivo. Contudo, parece-me que algumas medidas podem ser positivas, mas podem-se perder se forem aplicadas num meio que não está preparado." Para Filipa Jardim da Silva, não há dúvida de que as escolas são "um espaço privilegiado para que as crianças possam, todas elas, independentemente das suas características, aprender a relacionar-se com outras crianças que são diferentes delas", mas para isso há que deixar de comparar as crianças.
"Se continuamos, por exemplo, a ter numa escola quadros de mérito que privilegiam uns e desrespeitam outros — e continuam a ter um paradigma de comparação numa escola em que dizem que há algo que é certo e algo que é errado — então é importante que se compreenda que, nesse meio, uma medida positiva como esta, de respeitar a autodeterminação da identidade de género, pode não ter o impacto positivo que nós queremos."
Filipa Jardim da Silva dá também o exemplo de muitos infantários e escolas do primeiro ciclo que não respeitam ainda que nem todas as crianças conseguem deixar a fralda com a mesma idade, ou que nem todas as crianças aprendem a ler e escrever corretamente ao mesmo ritmo. "Quando essa comparação é feita como se a criança tivesse um problema, vemos que ainda estamos num meio muito hostil e muito pouco preparado para o respeito pela diferença."
Segundo a psicóloga, a proposta do BE e PAN é boa, mas é preciso ter cuidados para que não seja promotora de bullying. "Acho que quando se fala de leis, temos de ter sempre em atenção que boas medidas precisam de bons planos de implementação. Na minha humilde perspetiva, enquanto profissional de saúde, parece-me que todos os partidos que têm esta capacidade de propor mudanças à lei se devem recordar de que qualquer fim precisa de um bom plano de implementação e, portanto, esta é também uma posposta que precisa de um plano bem definido", afirma, recordado que se a prioridade for dada à maior formação dos professores e auxiliares — "para que os próprios possam regular melhor as suas emoções e ter mais informação sobre o que são estas questão da identidade de género" — ,aí as escolas estarão mais preparadas.
Na opinião de Catariana Graça, esta é a altura mais do que indicada para a mudança do paradigma de gerações. "Se isto começar a fazer parte do dia a dia das crianças com 10/12 anos, quando elas forem mais velhas também vão transmitir isso aos seus filhos e assim sucessivamente. Tem de começar por algum lado, com alguma geração, e acho que agora temos mais do que ferramentas para isso. Às vezes, só não se mudam mentalidades por certas coisas que a sociedade ainda incute e podia não incutir", remata.