Em março, o mundo assistiu aos profissionais de saúde em Itália a relatarem o caos nos hospitais, sobretudo naqueles que se localizam na região norte do País, a mais afetada pelo vírus SARS-CoV-2. Com um número de doentes superior à dos recursos humanos e materiais disponíveis, foi necessário fazer escolhas: quem vive e quem morre?
O exemplo italiano vai ao encontro dos principios aplicados na Medicina de Catástrofe, dizem Ana Isabel Pedro, especialista em Medicina Interna e Intensivista no Hospital de Cascais, e Jorge Nunes, diretor da unidade de Cuidados Intensivos do Hospital dos Lusíadas, em Lisboa.
A expressão consta no parecer emitido pelo Conselho Ético da Ordem dos Médicos no início desta semana, que inclui recomendações relativas aos serviços de medicina intensiva, nomeadamente à atuação dos médicos em situações em que o número de doentes supere o número de recursos, mais concretamente, no que se refere a camas e ventiladores.
"Ao esgotar os meus recursos num doente com pouca probabilidade de sobreviver, posso estar a condenar outro doente que tenha uma maior probabilidade de sobreviver."
A hipótese de sobrevivência é o grande critério, diz o parecer: "Não se trata de tomar decisões de valor, mas de reservar os recursos que podem tornar-se extremamente escassos para aqueles que têm maior probabilidade de sobrevivência após o tratamento", pode ler-se.
O princípio passa por salvar mais vidas e mais anos de vida: "Deverá ser privilegiando o prognóstico vital seguindo o princípio da proporcionalidade. Salvar mais vidas e mais anos de vida é consistente, tanto com perspetivas éticas utilitárias que enfatizam os resultados baseados no bem comum, quanto, com visões não-utilitárias, que prevalecem nos médicos portugueses, que enfatizam o valor único de cada vida humana."
É disto que se trata a Medicina de Catástrofe: “Aplica-se sempre em situações em que os recursos [humanos e materiais] não são suficientes para dar resposta às solicitações [número de doentes]", diz à MAGG Jorge Nunes. Tal como Ana Isabel Pedroso, explica que este tipo de atuação é aplicado, sobretudo, em ambiente extra-hospitalar, ou seja, fora das unidades de saúde, em situações de desastres naturais, acidentes de viação, contextos de guerra ou crises humanitárias.
“É um conceito que vem da medicina militar e de guerra em que perante um grande número de vítimas é preciso de perceber quem é que tem mais hipóteses de sobreviver", explica o diretor dos Cuidados Intensivos, que já passou pelo hospital de São José e que mantém atividade de emergência hospitalar no São Francisco Xavier.
A triagem é fundamental: "As equipas médicas têm de ter uma capacidade de triagem muito eficaz. Triagem é palavra-chave: perante várias pessoas que não estão bem é preciso distinguir as que têm maior probabilidade de sobrevivência e começar por aí. Quanto maior for a probabilidade de sobreviver, mais vou investir naquele doente. Na medicina normal vamos a todos. Aqui é preciso tomar decisões", explica Ana Pedroso.
"Não é a lógica do primeiro na fila", salienta Jorge Nunes. "Tem de haver uma rápida observação e tem de se aplicar um conceito de triagem em níveis. São 4 níveis: pretos têm fraca probabilidade de sobrevivência, os vermelhos têm de ter acção imediata, mas têm probabilidade de sobreviver, os amarelos e verdes, são os doentes de menor gravidade."
No caso do COVID-19, a atuação é intra-hospitalar. Novamente, trata-se de decidir: "Quem é que vou ou não vou ventilar?", diz Ana Pedroso. Jorge Nunes frisa que a lógica tem que ver sempre com o maior benefício em termos de saúde para os doentes. "Ao esgotar os meus recursos num doente com pouca probabilidade de sobreviver, posso estar a condenar outro doente que tenha uma maior probabilidade de sobreviver."
"É um trabalho de equipa. Medicina de Catástrofe não se faz sozinho"
Jorge Nunes garante que há método nos princípios da Medicina Catástrofe. "Não é a medicina do salve-se quem puder", diz. "Um leigo que está a ver fora pode ter uma noção anárquica, porque vê pessoas de um lado para o outro, alguma gritaria, muito provavelmente. Mas perspetiva de quem está dentro é diferente. As decisões que estão a ser tomadas pela equipa têm fundamento, com principal destaque para a triagem."
Há características fundamentais que não podem faltar a um especialista: "É alguém que tem de ser estruturado, tem de saber fazer triagem e tem de ter comunicação eficaz", diz Ana Pedroso. Sobre este último ponto, Jorge Nunes acrescenta: "A mensagem tem de ser sempre curtas, direta e clara." A internista e intensivista destaca ainda outro ponto essencial: "E é um trabalho de equipa. Medicina de Catástrofe não se faz sozinho."
"Tem de haver algum sangue frio, porque se tomam situações de vida ou de morte", acrescenta Jorge Nunes. "É como aquela expressão utilizada pelos médicos ingleses: 'Play the God' ('brincar de deus'), que é uma coisa muito difícil, mas que é necessária nestes casos."
O funcionamento de um hospital muda. "Dá-se o cancelamento da atividade programada, de modo a que se consigam alocar recursos numa área que é percebida como menos essencial", diz o médicos dos Lusíadas. É tirar de um lado para pôr no outro, método que foi usado pelas autoridades de saúde no primeiro confinamento de março e que, nesta segunda fase, se está a evitar. "Claro que isto é a teoria do cobertor curto. O cobertor estica pouco", acrescenta, numa alusão à tal falta de recursos, Jorge Nunes.
Ana Isabel Pedroso diz que em Portugal, sobretudo no que se refere às unidades de saúde mais no sul do País, ainda não estamos no ponto da Medicina de Catástrofe, mas admite que já vem a ser feita uma adaptação ao cenário. Aponta, no entanto, alguns exemplos mais a norte do país, onde acredita que este tipo de medicina já está a ser posto em prática, nomeadamente no Hospital de Penafiel, que já deu sinais de rutura, com muitos doentes a serem transferidos para outras unidades. A Ordem dos Médicos já veio, inclusivamente, dizer que, caso não haja controlo da doença na comunidade, "não há hospital que resista".
João Gouveia, presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, alertou na sexta-feira, 6 de novembro, para o perigo de rutura: “Com quatro mil casos de COVID-19 por dia, e sabendo que cerca de 2,5% precisam da medicina intensiva, vamos ter 100 doentes críticos. Em 10 a 12 dias teremos mil doentes e os cuidados intensivos entrarão em colapso”, disse ao "Expresso". "Só aguentamos cerca de 500 doentes COVID críticos ao mesmo tempo."
As contas são simples: existe um total de 900 camas de unidades de cuidados intensivos (para doentes COVID e não COVID), das quais 391 pessoas estão a ser utilizadas para tratar doentes infetados pelo novo coroanavírus, segundos os últimos dados disponibilizados pela Direcção-Geral da Saúde. Sobram 509.
"Com todos os serviços a funcionar, a situação só é governável para os cuidados intensivos com cerca de duas mil infeções ao dia”, disse também. E os números não dão tréguas: esta quinta-feira, 12 de novembro, foram registados mais 78 mortes e mais 5.839 novos casos, mais 904 do que no dia anterior.
Jorge Nunes lembra aquilo que, considera, devia estar a ser incessantemente repetido à população para se evitar o aumento dos números que contribui para o desequilíbrio entre a capacidade dos hospitais e o número de doentes, levando o colapso dos hospitais: "Manter a distância social, usar máscaras e lavar as mãos."