A expressão "imunidade de grupo" parece ter ganho mais relevância agora que à nossa volta tudo gira em torno da COVID-19. Imunidade é algo que nos soa bem, ainda que muitas vezes não saibamos o que quer dizer ou o que é preciso para a obter. Mas basta recuar no tempo para perceber melhor: sarampo, varíola, tosse convulsa, rubéola, meningite. São todas doenças conhecidas, nem que seja por pertencerem ao Programa Nacional de Vacinação (PNV).
São precisamente as vacinas que permitiram controlar a transmissão destas doenças infecciosas. Não porque todas as pessoas estão vacinadas, mas porque o facto de um conjunto robusto estar vacinado, permite proteger outras pessoas mais vulneráveis. Quanto à COVID-19, a tão procurada imunidade de grupo pode ainda demorar a chegar, tanto quanto a vacina que permitirá combater o vírus.
"Para a COVID-19, para chegarmos ao nível da imunidade de grupo, ainda é um processo lento. Não consigo fazer uma estimativa, porque como também tenho algumas dúvidas para o valor necessário efetivo, não me parece que seja prudente estarmos a pensar dessa forma relativamente à imunidade de grupo", refere Bernardo Gomes, médico de saúde pública.
Sendo a imunidade de grupo um fator relevante para travar o vírus, fomos então tentar perceber de que forma esta pode ajudar no combate à COVID-19. Levantámos 7 questões ao médico de saúde púbico, que finalmente pode ver esclarecidas.
1. Afinal, o que é a imunidade de grupo?
A COVID-19 é apenas um dos exemplos de doenças infecciosas que são transmitidas de pessoa a pessoa. Nos casos já conhecidos, alguns radicados, é assim que a imunidade de grupo atua: "Se houver um conjunto de pessoas na comunidade em geral que está ou vacinada ou imune a essa doença, o que acontece é que na importação de um caso novo, vindo de fora, a probabilidade de esse indivíduo contactar com alguém suscetível (não vacinado ou imune) é baixa o suficiente para que não haja continuidade de transmissão na comunidade", explica o médico de saúde pública.
Na prática, a imunidade de grupo é como se fosse uma espécie de defesa coletiva contra a infeção, tal como o nome indica. Para entender melhor, o médico Bernardo Gomes dá um exemplo.
"É como se fosse um tabuleiro de xadrez. A peça aterra, mas depois não progride mais do que uma ou duas casas. Fica limitada no tempo e no espaço", uma vez que a imunidade de grupo é assegurada por uma proporção de indivíduos vacinados e/ou imunes suficiente que ao estar em contacto com uma doença infecciosa, faz com que essa não seja capaz de se propagar de forma sustentada na comunidade.
2. Qual a importância da imunidade de grupo?
Proteger é palavra chave no que diz respeito à imunidade de grupo. Isto porque, o facto de um conjunto de indivíduos estar vacinado permite proteger outras pessoas no meio da comunidade que são particularmente vulneráveis, e que podem não estar vacinadas, evitando assim danos na saúde causados por uma infeção.
Um exemplo disso mesmo aconteceu com o sarampo, a doença mais infecciosa que se conhece de pessoa a pessoa. O facto de muitas pessoas já estarem vacinadas contra esta patologia, fez com que nós, como sociedade, consigamos proteger indivíduos mais suscetíveis. "Portanto, a imunidade de grupo tem uma importância bastante marcada para doentes com alguma gravidade".
3. A imunidade só se consegue se estivermos expostos ao vírus. Mito ou verdade?
Esta é talvez umas das questões que mais baralham a comunidade: então se a imunidade de grupo só se consegue através da exposição ao vírus, porque é que o isolamento tem sido a medida tomada na generalidade dos países e por um período de tempo tão longo?
A resposta é simples: evitar o caos. "Há indivíduos que acabam por defender que uma das hipóteses era que muita gente exposta conseguíssemos ter a tal imunidade ao vírus. Só que a verdade é que partir para uma estratégia dessas, de exposição em massa, ia levar à perda de inúmeras vidas", esclarece o médico de saúde pública Bernardo Gomes.
Além disso, o isolamento social não só tem permitido aos profissionais de saúde e investigadores terem tempo para perceber melhor esta doença, até agora completamente desconhecida, como tem evitado sobrecarregar as unidades de saúde — ainda que, como se tem visto, a lotação seja uma luta continua.
"E não é só a questão de sobrecarregarmos em relação à COVID-19. Se os serviços ficam sobrecarregados, tudo o resto que precisa de tratamento também fica pior servido", refere o médico. Em causa estão tratamentos cirúrgicos ou doenças oncológicas, que em tempo de pandemia têm ficado para segundo plano.
Parece então que não se trata de um mito, mas ainda que para já a imunidade de grupo pela exposição ao vírus seja a única hipótese de imunidade, tendo em conta que não há vacina, esta deixa de ser uma estratégia viável quando analisado o impacto na sociedade.
"É saudável pensar que é preferível tentarmos evitar cenários de ondas descontroladas. Sobretudo, evitar que cheguemos ao inverno e apanhemos este vírus [COVID-19] e a influenza (gripe) ao mesmo tempo. Acho que é este cenário que toda a gente quer evitar", conclui o médico Bernardo Gomes.
4. A imunidade de grupo pode substituir a vacina ou vice-versa?
Neste momento todos os esforços estão focados na vacina. A própria ministra da Saúde, Marta Temido, considera que “até se encontrar uma cura ou uma vacina, não se pode imaginar o regresso à normalidade“, disse numa entrevista ao podcast “Ao Ponto”, do jornal brasileiro "Globo".
O problema é que essa vacina tarda em chegar, as previsões só trazem mais incertezas: umas apontam para uma vacina pronta no fim deste ano, outras dizem que só chega no verão de 2021 e até há quem coloque a hipótese de esta vacina nunca chegar — questão recentemente colocada pela "CNN".
Para combater o vírus, o ideal seria então ter, o mais breve possível, a vacina no sentido de introduzir essa resposta imunitária sem estar sob o risco de ser contagiado pelo vírus. Contudo, enquanto essa não aparece, a imunidade de grupo é, como já referido, a única hipótese de resistir ao vírus.
"Neste momento, tenho algumas dúvidas quanto à durabilidade da imunidade por exposição ao vírus. Há muita gente que esteve exposta ao vírus e que nem sequer teve sintomas. E está, até prova em contrário, imune", refere o médico de saúde pública. Em suma, significa que a imunidade de grupo não substituiu a vacina ou vice-versa: ambas completam-se.
5. A imunidade consegue-se de igual forma em qualquer pessoa?
Não faltam provas de que a COVID-19 manifesta-se de forma diferente em cada indivíduo. Basta olharmos para os inúmeros casos de infetados que ora conseguem recuperar em casa, ora têm com doenças doenças respiratórias e necessitam de cuidados hospitalares para recuperar, ora as que testam positivo para a COVID-19, mas nunca tiveram qualquer um dos sintomas.
Da mesma forma funciona a imunidade. Não se alcança de forma igual, nem se manifesta de forma igual: "Há sempre indivíduos que têm um perfil genético que faz com que tenham imunidade um bocadinho diferente", refere o médico Bernardo Gomes. Sabe-se, no entanto, que esta será essencial para pessoas mais velhas, ou pessoas com problemas pulmonares ou cardíacos de raiz, diabéticos ou hipertensos.
"Ter alguns indivíduos-chave vacinados e imunizados, e a manutenção de um conjunto de indivíduos de maior risco de infetarem e de se infetarem, dá-nos um conjunto de cerdas que não passam necessariamente pela imunidade de grupo estrita, naquela dimensão teórica, calculada por uma fórmula matemática", diz o médico Bernardo Gomes.
Fórmula essa que tem indicado que cerca de 60% a 70% dos indivíduos deviam estar imunizados: "Devemos falar sobre isso, mas não é um fator único de defesa", continua o especialista. Contudo, reconhece que há ainda muitos aspetos relativamente à imunidade que a comunidade médica ainda desconhece.
"A única coisa que posso avançar é que, em comparação com outros vírus da mesma família, podemos esperar que a imunidade ainda persista durante muitos meses", refere, levantando a possibilidade de no futuro ser necessário outro tipo de exposição para que as pessoas que já tiveram contacto com o vírus, tenham uma imunidade prolongada.
6. A comunidade jovem vai ter de depender da imunidade de grupo, uma vez que a vacina será prioridade para idosos e grupos de risco?
A vacina, mesmo quando produzida em massa, não será de imediato alargada a toda comunidade. As primeiras doses deverão ser dadas a pessoas mais vulneráveis ao vírus. Entre elas estão os idosos, que fazem parte dos grupos de risco, que serão possivelmente um dos primeiros.
Seguidamente devem estar os indivíduos que têm contacto com muitas pessoas — é o caso de médicos, enfermeiros, bombeiros, ou quaisquer outros profissionais que estão na linha da frente de combate à COVID-19. Em que situação ficam então os jovens, não considerados um grupo de risco?
"Relativamente aos mais jovens, face àquilo que nós sabemos, para já não seriam um grupos prioritário", esclarece o médico Bernardo Gomes. Neste caso, a imunidade de grupo pode então valer-lhes proteção conta a COVID-19.
7. Se os cuidados de higiene e etiqueta respiratória forem descurados, a imunidade perde-se?
A vida está a começar a voltar à normalidade, ainda que muito a medo e com todos os cuidados de proteção. Sabemos como lavar as mãos, que devemos usar máscara em espaços fechados, mas a questão que se coloca é: até quando? Até quando é que estas medidas são necessárias e até quando é que vamos resistir a voltar a ter os mesmos (poucos) hábitos de higiene de antigamente.
Isto porque, mesmo com imunidade, a segurança não está garantida: "Se mantivermos distanciamento físico, higiene das mãos, a etiqueta respiratória que tanto nos falhou e tanto falta em alturas de gripe, na prática estamos também a tentar avariar a máquina de propagação do vírus", refere o médico de saúde pública.
A imunidade de grupo deve, por isso, ser um pensamento, mas não deve ser considerada uma salvação, porque o sistema de transmissão pode ser recuperado de muitas formas — voltar aos hábitos antigos é uma delas.
"Ao mantermos esses hábitos, ao começarmos a ter algumas pessoas imunes ou, assim que tivermos uma vacina e as pessoas imunizadas, conseguimos começar a controlar a dinâmica da infeção na comunidade", conclui o médico Bernardo Gomes.