Na segunda-feira, 19 de julho, a cantora Blaya recorreu às redes sociais para anunciar o nascimento do seu segundo filho, Theo. Ao contrário da sua anterior gravidez, o parto de Theo aconteceu em casa da artista, com o auxílio de uma doula e uma enfermeira especializada. Na partilha sobre o momento, Blaya falou do parto como algo difícil, mas mágico, e que ao contrário do que aconteceu no parto da filha mais velha, que decorreu em ambiente hospitalar, acabou por se libertar das emoções, chorar e viver o momento de forma completamente diferente.

No último ano, 63% dos partos em casa tiveram assistência médica. Ordem condena prática
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E diferente é realmente a palavra chave para distinguir partos no domicílio, vulgo em casa, e os feitos em ambiente hospitalar, sendo que as diferenças vão muito além dos equipamentos disponíveis ou das quatro paredes em que uma mulher dá à luz. "Não podemos olhar para um parto no hospital e pensar como é que aquilo teria acontecido em casa. Não dá para fazer este paralelo, as realidades são completamente distintas", diz à MAGG Marília Pereira, enfermeira especialista em saúde materna e obstetrícia (ou enfermeira parteira), que depois de 19 anos a trabalhar em hospitais, dedicou-se aos partos em casa nos últimos três anos.

"A intenção de um parto ao domicílio não é levar o hospital para casa, até porque não temos os mesmos recursos. E muitas das situações que, num hospital, levariam à necessidade de ter um parto instrumentado, por exemplo, não chegam a acontecer em casa. Quando um parto começa de forma artificial, com uma indução, as contrações podem ser muito dolorosas, mais próximas. Por outro lado, a epidural também atrasa a dilatação, o que aumenta a duração do trabalho de parto. Nada disto acontece num parto em casa", salienta Marília Pereira.

"Em casa, há liberdade de movimentos — que também pode acontecer no hospital —, há o conforto do que é familiar, de ter as pessoas escolhidas pela mãe para acompanhar o momento", salienta a enfermeira especialista.

O que leva à escolha de um parto em casa?

Na opinião de Marília Pereira, o que leva uma mulher a escolher este tipo de partos é o ambiente e o conforto, mas não só. "É estar num ambiente em que os seus ideais são respeitados, onde sabe o que acontece a nível de intervenções, é ter uma palavra a dizer", salienta a enfermeira parteira, que assume que há grávidas que veem os partos no domicílio como uma forma de fugir à violência obstétrica, algo cada vez mais falado e associado aos hospitais.

"Ainda no outro dia, na minha página [Marília tem uma página de Instagram, O Bebé Sabe, dedicada à maternidade], alguém me respondeu justamente que o parto em casa é a melhor forma de controlar tudo", recorda Marília.

marilia pereira
Marília Pereira é enfermeira parteira.

Dúvidas houvesse, é importante separar águas e entender que muito do que se passa num hospital não acontece em casa. "Estes partos decorrem com o mínimo de intervenção possível", explica a enfermeira, que salienta que não existem fármacos para alívio da dor (epidural) ou para acelerar o trabalho de parto, muito menos o uso de instrumentos como fórceps, ventosas ou recurso a cesarianas, bem como também não é feita uma intubação ao bebé. "Aliás, tudo isso são motivos para transferência hospitalar", salienta Marília Pereira.

Por outro lado, os partos em casa permitem tempo e uma dedicação personalizada à grávida. "Não estamos a pensar em acelerar a coisa, que temos de vagar o quarto porque há grávidas na urgência à espera de vaga. Em casa, há condições e estratégias para o trabalho de parto decorrer de uma forma natural, usamos a força da gravidade, permite-se à grávida encontrar a posição em que está mais confortável", descreve Marília Pereira, que assume que os profissionais estão 100% dedicados à grávida, algo impossível de acontecer em ambiente hospitalar.

No entanto, a enfermeira parteira salienta que há critérios que exige para realizar estes partos (que podem custar entre 1.500€ a 3.000€, consoante o acompanhamento antes, durante e após o parto). "Para começar, tem de ser uma gravidez de baixo risco, algo que avaliamos ao longo da gestação, dado que este risco não é estanque. Pela mesma razão, não aceito grávidas com mais de 32 semanas, dado que é crucial que eu conheça o bebé ainda na barriga da mãe, para que possa acompanhar a grávida na vigilância da gestação — é isso que me permite estar mais atenta a desvios da normalidade num parto", reforça a enfermeira parteira.

No caso de Marília Pereira, enfermeira especialista em saúde materna, os seus conhecimentos permitem-lhe fazer a vigilância da gravidez sem necessidade de acompanhamento de um obstetra ou do médico de família. "Como enfermeiros especialistas, temos capacidades para fazer a vigilância de uma gravidez de baixo risco e podemos fazer as consultas de vigilância. Há quem duplique com o médico obstetra, quem deixe as consultas no médico assistente a partir do momento em que começam a ser acompanhadas pelo enfermeiro que vai fazer o parto, e até há situações de parceria, em que o obstetra faz uma consulta, o enfermeiro a seguinte", diz a profissional.

É no decorrer deste acompanhamento que podem surgir fatores que impossibilitem o parto em casa, como a evolução para uma gravidez de risco, uma indicação de cesariana, um maior risco de pré-eclâmpsia ou alguma malformação fetal. Da mesma forma, se a grávida já teve duas cesarianas anteriores, também não pode optar por um parto em casa, de acordo com a prática de Marília Pereira, que acrescenta ainda outros fatores.

"Para mim, estar longe do hospital é um impeditivo a realizar esse acompanhamento e o parto, bem como os pais não estarem de acordo. Logo na primeira consulta, conheço os dois pais e é importante que ambos estejam cientes e de acordo com esta opção. E é claro que a possibilidade de uma transferência para o hospital, o chamado plano B, se for necessário, tem de estar sempre em cima da mesa e ser falado logo desde o início. Se não há condições para continuar em casa, temos de ir para o hospital, porque esperar pode significar perigo para mãe e bebé. Ninguém quer falar de riscos, mas existem, tal como nos hospitais, e eu tento minimizá-los ao máximo."

"Os partos em casa representam um risco acrescido e não deveriam acontecer"

Fernando Cirurgião, diretor do serviço de obstetrícia e ginecologia do Hospital São Francisco Xavier, é taxativo na resposta, tendo em conta o panorama atual nacional dos partos ao domicílio (onde as diferenças são gigantes em relação ao que se passa no Reino Unido, por exemplo, onde este tipo de partos até estão previstos no serviço nacional de saúde britânico). "Os partos em casa representam um risco acrescido e não deveriam acontecer", diz o especialista à MAGG.

Fernando Cirurgião, ginecologista e obstetra na Clínica de Santo António
Fernando Cirurgião, ginecologista e obstetra créditos: artur_by-artur-com

"Mesmo estando a falar de gravidezes de baixo risco, um terço deste tipo de partos continua a requerer cuidados médicos. E ouvir comentários como 'estamos a dez minutos do hospital', no meu entender, não é aceitável. Não posso compactuar com uma situação destas, anuir e dizer que sim, é próximo. Porque toda esta situação representa um risco acrescido", explica Fernando Cirurgião, que salienta que há cuidados médicos que têm de ser imediatos para mãe e bebé, caso exista essa necessidade, muitas vezes imprevisível.

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No caso da mãe, o especialista explica há hemorragias que podem precisar de ser controladas, por exemplo, e falando do recém-nascido, a questão do estar aos tais dez minuto de distância do hospital ganha ainda mais importância.

"O índice de Apgar são parâmetros de avaliação do bem-estar do bebé, medidos ao primeiro minuto de vida, ao quinto e ao décimo. E se a avaliação ao primeiro minuto não estiver bem, estamos a dez minutos de estar muito pior. No hospital, temos igualmente enfermeiros especialistas que fazem partos sem grande intervenção médica, que chamamos de partos ajudados, que mesmo com toda a sua experiência — tal e qual como os profissionais que fazem partos em casa têm as suas competências e experiência, claro — acabam por chamar um neonatologista, um pediatra, um intensivista quando o bebé nasce para verificar uma avaliação. E a primeira coisa que esse profissional pergunta é há quantos segundos o bebé nasceu. Não minuto, segundos. É disso que estamos a falar", explica Fernando Cirurgião.

No entanto, Marília Pereira reforça que os enfermeiros parteiros que acompanham partos em casa, e que devem trabalhar em duplas conforme a recomendação do colégio da especialidade, têm os conhecimentos e ferramentas necessárias para prestar auxílio não só à mãe, mas também ao recém-nascido.

"Temos todas as competências para prestar apoio a ambos, e também ferramentas, como oxigénio, soros e coisas que nos permitam atuar em caso de hemorragia da mãe enquanto esperamos por ajuda. Ao recém-nascido, também fazemos a primeira avaliação, despistamos situações inicias e temos como reanimar o bebé, mais uma vez, enquanto esperamos por ajuda", esclarece a enfermeira parteira.

No entanto, também Irina Ramilo, médica obstetra e ginecologista, também conhecida devido à sua página A Ginecologista da Melhor Amiga, acredita que tal não é suficiente. "Não é um enfermeiro especialista que dá apoio a um bebé que nasce mal, tem de ser a neonatologia. Se algo acontece, se o bebé precisa de ser entubado, não há esse apoio. Da mesma forma, se a mãe tem uma atonia uterina [quando o útero não contrai como deveria], uma hemorragia, é preciso apoio rapidamente. E se não está uma ambulância à porta, se não se chega ao hospital rapidamente? O pior pode mesmo acontecer, e há um risco de morte."

A obstetra acrescenta que os riscos não são compreendidos na totalidade, mas existem. "Quando as pessoas estão grávidas querem, obviamente, que corra tudo bem, e ninguém pensa que o bebé pode morrer. Mas pode. Sei de um caso em que aconteceu um parto em casa no meio do nada, o INEM teve de prestar apoio ao bebé mas não conseguiu chegar lá rapidamente, e o bebé acabou por morrer", salienta Irina Ramilo à MAGG.

"É difícil para mim dizer que aceito um parto em casa, porque não aceito", continua a especialista, que reforça que não é totalmente contra os partos ao domicílio, desde que estes sucedam com todas as condições de segurança, algo que não acontece em Portugal no momento atual. "Até podem existir, mas com muito mais apoio. E a questão da ambulância à porta, principalmente nos tempos de pandemia que vivemos, onde é que existem ambulâncias disponíveis para isto?.No contexto atual, um parto em casa é um risco acrescido."

Partos em casa são uma fuga ao hospital?

Tanto Marília Pereira, enfermeira especialista que se dedica a partos em casa desde 2018, como Fernando Cirurgião e Irina Ramilo, médicos obstetras, estão de acordo numa questão: os partos ao domicílio aumentaram no último ano.

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"Sempre houve muita procura, mas sim, acredito que tenham aumentado. Acho que a pandemia, por exemplo, fez com que muitos casais que nunca sequer tivessem pensado num parto em casa tenham feito esta escolha. Mas, honestamente, o fugir do hospital devido à COVID-19 não me parece o melhor motivo para escolher este tipo de partos", salienta Marília Pereira.

Também Irina Ramilo como Fernando Cirurgião confirmam à MAGG que notaram um aumento dos partos em casa, mas o especialista responsável pelo serviço de ginecologia e obstetrícia do São Francisco Xavier não isola a pandemia como a única razão para muitas grávidas fugirem dos hospitais.

irina ramilo
Irina Ramilo é médica ginecologista e obstetra

"É verdade que notámos isso, inclusivamente mulheres a preferirem ter os bebés no privado por medo de um maior risco de contágio nos hospitais públicos, mas acho que este recurso aos partos em casa não se deve apenas a isso, mas também a uma grande desinformação sobre o que é a prática clínica atual", aponta Fernando Cirurgião.

Na opinião do médico, muitas pessoas ainda ligam as práticas hospitalares de hoje em dia ao passado, e têm uma ideia errada do que se passa na realidade, na grande maioria dos casos. "Tenho pais que me abordam com a ideia de fazer o contacto pele a pele, o cortar do cordão umbilical só passado algum tempo ou quando parar de pulsar, ou mesmo a amamentação na primeira hora de vida como se fossem pouco comuns ou pedidos especiais, quando já são práticas comuns hospitalares", refere Fernando Cirurgião, que acredita que muitos cursos pré-parto podiam ser mais claros na transmissão de que estas práticas também acontecem em hospitais.

Da mesma forma, o diretor clínico do serviço de ginecologia e obstetrícia do São Francisco Xavier explica que há práticas que já não são assim tão comuns nos hospitais, e que quando são efetuadas, não são feitas de forma intempestiva.

"As próprias episiotomias já não são prática comum, e acontecem apenas quando é previsível que há a possibilidade de existir uma lesão em direção ao ânus, muitas vezes irreversível. E se virmos que isso pode acontecer, então avançamos de forma ponderada, seja para esta intervenção ou para qualquer outra que seja o mais adequado para a mãe e bebé. Existem também outras intervenções que só fazemos se forem necessárias, seja ter de optar por manobras nas pernas da mãe ou até colocar pressão por cima do púbis para facilitar o desencadeamento do ombro do bebé — quando os bebés são demasiado grandes, e têm a largura de ombros maior do que a cabeça. Mas isso são tudo situações imprevisíveis. Agimos sempre de acordo com o que representar menos riscos, e se um facilitar do parto permite um nascimento mais seguro, vamos fazê-lo."

Irina Ramilo partilha da ideia de que os hospitais estão a ser vistos como um extremo, quase como um bicho papão onde os pedidos das mulheres não são levados em conta. "Tentamos sempre fazer tudo como as pessoas querem. Não faz é sentido ter uma grávida sempre desconfiada, com a ideia de que a vou agredir."

Enfermeira fala de resistência dos hospitais aos partos em casa. Obstetras compreendem as reticências

Uma das diretrizes vitais da prática de Marília Pereira para fazer partos em casa é que as grávidas entendam que, se existir necessidade, a ida para o hospital tem de ser uma opção e acontecer sem qualquer objeção. No entanto, a enfermeira especialista relata que a chegada de uma grávida que tentou um parto no domicílio às instituições de saúde nem sempre acontece de forma  tranquila.

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"Infelizmente, por vezes temos algumas dificuldades na ligação e na relação com o hospital. Os partos em casa não são ilegais, não estou a fazer nada às escondidas, e se a grávida precisa de ir para o hospital, eu vou com ela e transfiro o processo. Mas há muita resistência, e um olhar depreciativo, quase como se dissessem 'ah, agora tiveste que vir para o hospital'. E isso não pode ser. Temos de olhar para a situação de um prisma diferente. Ok, aconteceu algo, não se podia continuar em casa, vamos continuar os cuidados no hospital, sem represálias ou resistência. Temos todos de trabalhar em equipa, até porque criticar o parto em casa não vai fazer com que as pessoas parem de ter bebés em casa. Ao trabalharmos todos juntos, mais a grávida e a família vão beneficiar disso."

No entanto, e embora deixe claro que nunca um hospital se recusaria a prestar cuidados a uma grávida que tenha tentado o parto em casa, Fernando Cirurgião compreende as reticências dos colegas. "Quando recebemos uma grávida numa situação em que algo já se complicou, às vezes até em estado de exaustão materna, não sabemos o que se passou antes, há todo um processo que desconhecemos para trás, e isso representa um risco acrescido. Não sabemos o estado da mãe, do bebé. Vamos confiar que foram medidos batimentos cardíacos, não foram? Não temos acesso a nada, é um total desconhecido, e isso é muito perigoso. Mesmo quando um trabalho de parto está a decorrer em contexto hospitalar, há surpresas e infortúnios que acontecem nas nossas barbas, como se costuma dizer, quanto mais em casa. Não é que a grávida não seja recebida no hospital, mas há um medo do desconhecido que provoca as reticências."

Da mesma forma, Fernando Cirugião também condena colegas médicos que acompanham partos em casa à distância, e cujas indicações não respeitam as diretrizes hospitalares.

"Sabemos que há determinados tempos que devem ser respeitados, como horas que deve demorar um trabalho de parto depois de uma rutura de bolsa, o tempo que o período expulsivo deve demorar, a expulsão da placenta, etc. E depois sabemos de casos em que há obstetras a apoiar os partos em casa na retaguarda, e a dar indicações que não respeitam esse tempos. É algo que condeno muito, bem como o próprio colégio da especialidade. Existem grávidas a chegar em exaustão materna aos hospitais depois de tentativas de partos em casa durante três dias com apoio de obstetras. E aí estamos a facilitar o risco", conclui o médico especialista.