Atravessamos o longo corredor, entramos na luminosa sala e reparamos de imediato: uma fotografia de um menino com um cravo vermelho na mão. Estamos em casa de Isabel do Carmo, uma mulher de perfil denso. Serena e de sorriso fácil, enquanto estudante do curso de Medicina, fez parte das greves estudantis que se insurgiram contra o Estado Novo. A sua luta prossegue: foi fundadora e dirigente das Brigadas Revolucionárias, nos anos 70, aquelas que viriam a dar origem ao Partido Revolucionário do Proletariado.

Em paralelo, e até aos dias de hoje, foi construindo uma extensa e reputada carreira como médica endocrinologista. É fundadora da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, da Sociedade Portuguesa de Diabetologia e fundadora da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade, tendo também sido coordenadora do Estudo de Prevalência da Anorexia Nervosa nos Distritos de Lisboa e Setúbal. Foi responsável da coordenação do Hospital de Santa Maria/Centros de Saúde Lisboa, tendo também sido a diretora do Serviço de Endocrinologia do mesmo hospital, aquele em que começou a sua carreira como médica assistente.

Com tudo isto, não é de admirar que a longa lista de obras que tem vindo a assinar tanto nos contem a sua história como resistente, como partilhem o conhecimento científico que tem vindo a acumular ao longo da vida. A liberdade e a ciência.
"Alimentação — Mitos e Factos", editado pela Oficina do Livro, é o seu novo livro. De forma descomplicada, mas bem sustentada por estudos científicos fiéis, desconstrói várias das narrativas que se têm vindo a instalar no universo da alimentação saudável, como as guerras contra o glúten, a lactose, os hidratos de carbono, compostos e nutrientes aos quais se abriu fogo, apesar de estudos reais — extensos, verificados e comprovados ao longo do tempo — já nos terem mostrado que, não, o pão não faz mal, que o leite não faz mal e que os cereais mais comuns da alimentação cumprem uma função importante.

livros

A teia que nos traz até aqui é ampla e com uma boa dose de perversão. Os grandes grupos comerciais querem faturar e a desinformação, mascarada de conhecimento científico, cai nas malhas da Internet, na televisão, nas prateleiras dos tops de vendas. Nestes universos, empregam-se termos como "desintoxicação", "energia" ou "paleolítico" que ganham estatuto de chavões, a partir do momento em que se ignoram os reais significados contidos nestas palavras, que fazem parte do jargão da precisa área das ciências.

Acreditamos, porque queremos ser deuses, queremos viver para sempre. Mas o resultado pode muito bem ser outro, sobretudo se falarmos em jovens: uma obsessão pela comida, pelas calorias, pelas quantidades de macros e de micros que se consomem, calculados e pesadas diariamente. É a fobia ao alimento.

Estes foram alguns dos temas sobre os quais falámos. Leia a conversa completa.

Diz logo no início do livro que o excesso de peso em adultos duplicou no espaço de dez anos, entre 2006 e 2016. Que fatores associa a este aumento, tendo especialmente em conta, que em 2006 levávamos um estilo de vida tão sedentário como o atual?
Tem que ver com a alimentação. No inquérito que foi feito e publicado em 2016 vemos que quase metade da população portuguesa não come vegetais e fruta suficientes, o que é terrível. E 10% tem insegurança alimentar, ou seja, todos os dias tem que reunir condições para ver se consegue obter alimentos. E os alimentos mais baratos de obter são os hipercalóricos.

A metade dos portugueses que não come fruta e vegetais também pode ter dificuldades financeiras em obter estes produtos. Apenas 10% fazem o chamado padrão mediterrâneo. Uma parte dos motivos é com certeza dificuldades de aquisição de alimentos bons, que são vegetais, fruta e peixe, que são os que têm os preços mais elevados. Há, por outro lado, um consumo muito grande de refrigerantes e de doces.

Os alimentos que nos fazem melhor são os menos acessíveis.

Os alimentos que nos fazem melhor são os mais caros.

Porquê?
Porque quem manda nos preços é a agro-industria. Portanto, não há diretivas nacionais nem internacionais para baixar os preços dos alimentos que fazem melhor à saúde. De palavra há grandes orientações, mas diretivas não existem para isso ser possível. Pelo contrário, o padrão que existe ao nível europeu é o de se comprar aquilo que é o mais barato. E é assim que vamos ao supermercado e encontramos maçãs da África do Sul ou de Israel em vez de encontrarmos maçãs produzidas aqui em Portugal. Não há uma política para tornar os alimentos saudáveis mais baratos e acessíveis. Aquilo que existe é comercial. Esta evolução dá-se em todo o mundo. Mesmo nos países pobres, as pessoas saem directamente da desnutrição para a obesidade, porque o mais barato é o que faz pior.

Os refrigerantes, por exemplo, passaram a ser taxados. Deveriam criar-se incentivos deste género para as comidas saudáveis?
Claro que sim. A medida dos refrigerantes foi boa, sendo que há países em que houve estudos em que se verificaram os efeitos positivos desta taxação. Mas há outras políticas públicas que deviam ser tomadas e não são. Por exemplo: entro numa escola pública com os meus netos e vejo que estão lá máquinas de venda automática com doces. Eles querem logo ir para as máquinas. As crianças não têm culpa. Adoram, como todos nós adoramos alimentos hipercalóricos.

Como é que surge esta preocupação crescente com a alimentação saudável?
A alimentação saudável passou a ser uma preocupação muito grande, ao mesmo tempo que a alimentação se foi tornando cada vez menos saudável. Embora depois da Segunda Guerra Mundial tenha havido uma sucessiva baixa de preços (o que foi bom para o acesso aos alimentos), esse declínio dos valores foi acompanhado de comida que é mais barata e mais calórica, com muita gordura, sobretudo. E, portanto, a certa altura, foi estudado que esse tipo de comida é má para a saúde.

E isto remete-nos para duas grandes preocupações que nós temos: a de vivermos muito, de sermos eternos, e a questão do aspeto do corpo, muito importante, sobretudo para as mulheres. E isso faz com que a questão da alimentação saudável seja, de facto, um foco cada vez maior. Só que aquilo que aparece publicado umas vezes é bom, outras vezes é mau. Umas vezes é baseado sobre verdadeira investigação científica e outras vezes vem de boatos e de modas. 

Para os leigos da ciência é mais fácil encontrar boa ou má informação?
É mais fácil encontrar má informação. Em termos de alimentação, são raras as publicações que baseiam aquilo que publicam nas revistas científicas como a Science ou a Nature, que quando publicam publicam certo. E, portanto, a publicação que aparece baseada em fontes credíveis é menor facce à que aparece porque apareceu nas redes sociais ou por causa dos lobbies. Subverte-se muitas vezes o conteúdo científico verdadeiro.

Resta ao leigo o "pensamento crítico", como diz no livro. 
Quando fazemos uma coisa que diz respeito ao nosso corpo temos de nos perguntar porquê. Se eu tiver uma amigdalite, que é provocada por bactéria, vou tomar um antibiótico porque sei que os antibióticos foram investigados no sentido de matar bactérias. Sei porque é que vou tomar aquilo. Mas se me disserem bebe este chá ou toma aquele suplemento alimentar porque estás cansada e precisas de energia, eu tenho as minhas dúvidas. Duvido que aqueles produtos possam eliminar o meu cansaço. Quer dizer, talvez até eliminem, mas é porque têm cafeína ou guaraná.

isabel do carmo

Compara as fake news e as não verdades científicas à teoria da terra plana. 
É extraordinário que ainda haja pessoas que acreditam que a terra é plana, com congressos e tudo. E os grupos que organizam esses congressos e que defendem esta teoria publicam umas coisas, mascaradas de científicas e com termos científicos que "provam" aquilo que defendem. Isto transformou um bocadinho as narrativas: os bruxos eram bruxos e só falavam do imaginário. Até comprei um livro para ler nas férias do Matoso sobre o imaginário da Idade Média, altura em que as pessoas tinham de acreditar nestas coisas para sobreviverem àquele ambiente terrível. Nesta época, bastava acreditar, nada se tinha de mostrar cientificamente. Mas, agora, com a ciência e o desenvolvimento da ciência, mesmo quem quer provar coisas absurdas como esta usa a linguagem da ciência, as pseudo-provas. É uma evolução curiosa.

Aprender o jargão científico para promover teorias não científicas requer algum esforço.
Claro que sim. Esses da terra plana devem ter uma elaboração interessante para conseguirem defender uma coisa destas.

Aquela redondez das ancas e das coxas é saudável. É saudável porque retém os ácidos gordos que estão a circular no sangue.

No mundo da nutrição, o que é que equivale à teoria da terra plana?
Os últimos mitos. Não são tão fortes como a terra plana, mas são mitos. Chamar regime paleolítico a um regime com carne, mel e verduras é estar a chamar paleo ao que não é paleo. Os paleolíticos comiam mamutes, lebres, apanhavam ervas que agora detestaríamos comer. Chamar-lhe paleolítico é uma fantasia. Não faz mal à saúde, mas o nome em si é uma fantasia. Depois, há intolerância ao glúten que foi introduzida e que,, do ponto de vista comercial, faz correr milhões. A verdade é que as pessoas que têm intolerância ao glúten são uma pequena porção da população — e isso é possível e facilmente demonstrado do ponto de vista de laboratório. A intolerância à lactose é outro mito como o do glúten: há de facto pessoas que, como uma análise num laboratório, demonstram intolerância à lactose, e depois há todas as outras que não têm intolerância nenhuma.

Mas há quem, mesmo não sendo intolerante, relate sentir os efeitos da lactose e glúten depois de ingeri-los. Por exemplo: ficam inchadas com pão. 
Se nós lermos a bula de um medicamento, temos os sintomas todos. Nos regimes que estabeleço digo sempre às pessoas para comerem o pão de mistura, porque ele não incha — ele enche: enche mais no estômago, nos intestinos, que, se tiverem mais fibras,  ficam a trabalhar mais tempo (e as bactérias que lá estão gostam). A pessoa come aquele pão e fica cheia, porque o pão ocupa espaço. Mas é bom que ocupe espaço. Fica com mais saciedade, mais satisfeito, exatamente porque está cheio.

As pessoas querem sentir-se sempre mais delgadas e nunca cheias.
É verdade. É curioso em relação ao corpo das mulheres — nunca, mas nunca, oiço essas observações de um homem. Nas mulheres há muito isso de querer sentir-se vazia, sem barriga, de sentir um vazio neste lugar. Há um poema do Alexandre O'Neil, que era surrealista, que era a Balada da Ameixa. Nessa altura não havia estas coisas novas, só havia as ameixas. As mulheres comiam ameixas secas para os intestinos despejarem rapidamente e ele goza com isso no poema.

É normal termos a barriga inchada?
Se a pessoa tiver obstipação, não. As pessoas devem ter regularidade intestinal, porque a obstipação não é boa, nem normal. Mas ter os chamados gases, toda a gente tem. Mas como não sabemos o que é que os outros têm, tendemos a achar que os nossos são demais. Se a for um caso de cólon irritável, em há de facto alimentos com que ter cuidado. Mas aquilo a que as pessoas chamam inchado é o aumento do volume do abdómen, que pode ser perfeitamente normal a certas horas do dia, em certas circunstâncias e não ser constituído por nenhuma substância que o faça inchar.

Rejeitamos as reacções naturais do nosso corpo?
Exatamente. Queremos ser deuses, queremos ser deuses que não existem, aqueles que estão representados nos quadros, nos anjos, as belezas que não existem.

Dizer que não devemos beber leite porque o ser humano é o único mamífero a continuar a beber leite em adulto é francamente um mau argumento, é um argumento ligeiro.

E agora nas revistas. O Photoshop também endeusa.
O Photoshop começou há muito tempo. O Photoshop transformou as pessoas em pessoas irreais, que não existem.

Isto é particularmente duro para o género feminino. Costuma chamar a atenção das suas pacientes para o facto de que o corpo é o corpo e que ele tem de trabalhar?
Chamo sempre. E tenho mesmos uns postais da altura do Renascimento, altura em que as mulheres eram mais abundantes, no consultório. Umas reproduções no consultório do Botticelli, que lhes mostro. Mas geralmente elas não aceitem: "Ah isso era antigamente, agora já não é assim".

Há gorduras no corpo importantes?
Aquela redondez das ancas e das coxas é saudável. É saudável porque retém os ácidos gordos que estão a circular no sangue. Aquela gordura puxa-os e retém-nos. É bom que eles fiquem ali e não andem a passear no sangue.

Porquê?
Se os ácidos gordos andarem a circular com excesso no sangue, a dada altura aderem à superfície das artérias, como a ferrugem dos canos da água — aderem à parede, a parede inflama-se e ao longo dos anos isto pode diminuir a passagem do sangue, que é o que dá origem aos enfartes do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais. Portanto, é bom que a gordura não seja excessiva no sangue, sobretudo as que têm uma densidade mais baixa, que aderem mais facilmente à parede das artérias. As mulheres com as suas ancas e coxas puxam essa gordura e fixam-na ali. Mas depois chamam-lhe celulite, bochechinhas, e outras coisas assim. E não gostam. Muitas vezes é excessivo e é compreensível que não gostem. Mas antes ali do que noutras partes do corpo.

Há o lado dos corpos irreais, mas também começam a surgir nas revistas imagens de pessoas com excesso de peso, incluindo em publicações ligadas à moda e beleza.
Acho que isso foi uma coisa boa. As pessoas com obesidade são muito estigmatizadas, mas mesmo muito. Quando fazia consulta no Hospital de Santa Maria via as grandes obesidades e a maior parte destas pessoas eram assim desde sempre, desde a infância, desde bebés. É uma vida inteira a serem estigmatizadas.

É fácil no ambiente, no meio social, fazerem-se referências ao excesso de peso. Deixam-se marcas muito grandes. As pessoas depois deprimem-se. A depressão em pessoas com obesidade é superior à população em geral. Está comprovado. Portanto, é bom que tenha surgido este movimento, que é sobretudo dos Estados Unidos da América, para expôr as pessoas com obesidade ao público para dizer: "Estamos aqui, somos nós, existimos".

Há quem defenda que, da mesma maneira que não podemos promover corpos anoréxicos, não podemos promover corpos obesos, porque também não são saudáveis.
Isso também é verdade. Mas a promoção dos corpos obesos é muito menor do que os corpos super magros. Neste caso, estamos a dizer: "Estas pessoas existem".

No livro fala no "healthism", nesta questão de querermos demasiado ser saudáveis. Pode esta tendência da alimentação saudável contribuir para o aumento das doenças do foro alimentar?
Em Portugal não temos estudos de prevalência, mas no Japão, onde isto tem sido estudado, aumentou imenso. E aumentou não só a anorexia nervosa e a bulimia, como outros tipos de comportamento que não obedecem exatamente àquelas definições, mas que são verdadeiras perturbações do comportamento alimentar porque se tornam obsessões: obsessões com a comida, com o efeito da comida, quase que uma fobia sobre algum tipo de comida. Aparece sobretudo na adolescência e na juventude e faz com que depois a família ande toda á volta disto, porque as compras e refeições em casa vão ser condicionadas por isto. Há aqui novas formas de alteração do comportamento alimentar, que se tornam patológicas e que não correspondem exatamente à anorexia e bulimia — embora pareça, também, que estas tenham aumentado.

Chamam a isto ortorexia.
Exato. A obsessão pela alimentação saudável.

Temos profissionais de nutrição que podem potenciar isto?
Nunca vi as pessoas que conheço formadas pela Escola de Nutrição do Porto, pelo Instituto Superior de Saúde, pelo Instituto Egas Moniz, tantos os professores, como os alunos, a estimularem este tipo de mitos e alimentação. São pessoas com uma formação muito boa, muito equilibrada e muito científica mesmo. Se há pessoas que se intitulam de nutricionistas e não o são, não estão inscritos na ordem? Sim, há. Depois, há os que frequentaram essas escolas, mas que por motivos comerciais, porque trabalham na área da farmacêutica ou em ginásios, facilitam um bocadinho esta questão das modas.

Há muitos nutricionistas da ordem que assinam livros sobre planos detox, dietas de muitos dias.
É verdade. Essa história das dietas detox é um disparate.

Porquê?
Não há alimentação para desintoxicar. É preciso ver o que é que é uma pessoa intoxicada: uma pessoa fica intoxicada do ponto de vista gastrointestinal quando ingere, por questões de contaminação, bactérias que lançam tóxinas no corpo, que depois geram gastroenterites e etc. Isso é uma intoxicação alimentar que tem de ser tratada com antibióticos, soro, hidratação, dependendo da gravidade. Depois, há as intoxicações por metais pesados, que têm de ser tratadas e que podem ser graves em relação ao fígado e aos rins. Aquilo a que as pessoas chamam de desintoxicação através de um combinado de vários ingredientes não é desintoxicação nenhuma. Nem há intoxicação, nem desintoxicação.

Dá-me muita energia' ou 'sinto-me logo com muita energia' ou estou com uma 'boa energia'. A par da intoxicação e desintoxicação, esta é outra palavra que é usada de uma forma completamente errada do ponto de vista científico.

Esta moda do detox é perigosa?
Não. Geralmente, são alimentos saudáveis, combinados de frutas e de vegetais que, sim senhor, as pessoas devem ingerir. Acho que nunca disse a ninguém para não tomar este sumos, desde que sejam as pessoas a comprar os ingredientes e a misturá-los. Hidratam-se, comem alimentos saudáveis, não comem gorduras e açúcares adicionados. O colesterol mau pode baixar um bocadinho, se a insulina estiver habitualmente alta, também pode baixar um bocadinho, portanto não há problema nenhum. Agora, quando são estes preparados, estas coisas comerciais detox, em que não sabemos o que é que está lá dentro, desconfio sempre, porque têm cafeína, guaraná e etc.

Qual é o perigo?
De estimular o coração. Nos países onde há queixas— porque são necessárias queixas para estes produtos comerciais serem investigados — aparecem milhares de casos. Desde que haja internamento hospitalar e queixa, a Food and Drug Administration pode investigar concluir que o produto tinha estimulantes.

Se os sumos forem feitos de raiz, então, não há mal nenhum. O problema é a palavra "detox"?
Exato. Usar a palavra detox é um exemplo de um termo pseudo-científico porque não intoxicamos ou desintoxicamos.

Que outras palavras identifica?
A palavra energia. "Dá-me muita energia" ou "sinto-me logo com muita energia" ou estou com uma "boa energia". A par da intoxicação e desintoxicação, esta é outra palavra que é usada de uma forma completamente errada do ponto de vista científico. A energia é qualquer coisa que se estuda do ponto de vista físico, que se expressa através da força muscular, através das ondas eletromagnéticas ou do ponto de vista calórico.

Se eu comer um grande prato de massa, fico efetivamente com muita energia.
Esse grande prato de massa faz um circuito: a massa é ingerida, a dada altura dá glicose, passa pelo fígado, essa glicose vai direito aos músculos e depois aí dá-se um processo bioquímico em que se transforma em energia. É fantástico isto: a matéria orgânica visível que se transforma em algo que não é visível. Quando eu faço um gesto com os meus braços, uso a energia dos meus músculos, que não é visível. Foi isso que o Einstein descobriu. Ele descobriu essa relação entre a energia e a massa.

Então quando eu tomo um suplemento energético, se não sinto energia, o que é que eu sinto?
Ânimo. Força vital. É a libido. É aquilo que o Freud descreveu como força de vida, vontade de viver.

isabel do carmo

Há pouco falou do leite. Houve muita gente a deixar de beber o leite, alegando que o ser humano é o único mamífero que bebe leite na vida adulta.
Esse é um argumento muito fraco, porque o ser humano é também o único ser vivo que, no último século, duplicou a esperança de vida, pelas suas próprias mãos. Os outros mamíferos não têm essa capacidade. Nós temos uma experiência de vida diferente dos outros mamíferos. Sobretudo, nas mulheres, temos a osteoporose que se pode instalar em metade da vida. E temos outras doenças, que só nós é que temos. Por outro lado, também somos o único mamífero que inventou a eletricidade, portanto passou a fazer ciclos de vida completamente diferentes, porque tem luz à noite. Não faz o seu ciclo de vida exatamente de acordo com o ciclo da luz e da noite. Dizer que não devemos beber leite porque o ser humano é o único mamífero a continuar a beber leite em adulto é francamente um mau argumento, é um argumento ligeiro. Há pessoas intolerantes, porque não têm nos genes a mutação que permite aos adultos ter a mesma enzima que os bebés e crianças têm e que permite quebrar a lactose. Mas é, em toda a humanidade, a mutação mais forte do ponto de vista genético porque, sobretudo em climas frios, permitiu que as populações se alimentassem à base de leite, queijo e outros derivados.

Devemos beber um copo de leite todos os dias?
Ou mais. Para si, podia beber à vontade quatro. A partir de determinada idade deve haver alguma redução do leite, mas estamos a falar em beber dois a três copos de leite por dia. Mas podem também substituir por iogurte. O problema é que é mais caro. Do ponto de vista público, desaconselhar o leite é tirar à população uma fonte importante e acessível de alimento, muito completa, com cálcio e proteína. É mais barato.

Passámos a chamar leite a outros alimentos: leite de amêndoa, leite de aveia, leite de soja. 
São extratos vegetais, líquidos, extraídos das plantas, com grande reforço comercial, a partir do momento em que se começou a dizer mal do leite. Muitas delas têm imenso açúcar. São deliciosas, mas não são leite.

Há esta relação perversa entre a indústria da comida e a alimentação saudável.
Sim. A soja é um daqueles alimentos chave para o comércio dos Estados Unidos. Nos países orientais as populações adaptaram-se a comer soja. No ocidente ninguém comia ou bebia soja. Houve aqui uma introdução de um alimento, para o qual não houve qualquer adaptação genética da nossa parte. A soja não traz  benefício nenhum.

Consegue identificar mais alguns exemplos desta relação perversa entre a alimentação dita saudável e os objetivos comerciais?
Os exemplos mais evidente são os do glúten e da lactose. E depois há aqui a retirada dos hidratos de carbono, que é uma longa história. Do ponto de vista bioquímico, chamam-se açúcares a todos os hidratos de carbono, o que inclui os mais simples, dos doces, e as batatas, arroz ou massa. Quando se começou o ataque ao açúcar livre, dos doces — com razão, porque ele faz mal — acabou por abranger-se todos os hidratos de carbono, que têm uma composição e efeito completamente diferente. E são necessários. Nós precisamos de cereais, que são hidratos de carbono. Podemos reduzir o consumo, porque cientificamente já percebemos que faz mal consumir em excesso, mas, de igual modo, também já percebemos que abolir não é vantajoso para a saúde. Devemos escolher bem as fontes e tirar os açúcares adicionados. Isso sim é importante. E é muito difícil.

O sabor é bom.
É bom sim. A humanidade sobreviveu à procura de frutos nas árvores e de outras coisas que lhe dessem energia — que é calórica. Nós gostamos muito de gorduras, nós gostamos muito de açúcares (que, juntos, dão origem aos doces). Nós temos centenas de anos a apurar o gosto por estas coisas, por sobrevivência. Não era por pensar que precisavam disso para estarmos fortes e enérgicos. Não, este gosto, que persiste até hoje e que está em nós, foi-se apurando para sobreviver.

Estamos a tentar reprimi-lo.
É. Mas mal.

Quando consumimos menos hidratos, consumimos mais proteínas. As dietas hiperproteicas fazem mal?
Fazem. As dietas hiperproteicas fazem mal aos nossos rins. É mau para os nossos rins serem obrigados a filtrar excesso de proteínas. Por isso, temos de ser equilibrados na composição dos hidratos de carbono, proteínas e gorduras. E, sem dúvida, que os regimes em que há abolição de hidratos de carbono, são mais ricos em proteína.

O segredo é mesmo o equilibrio?
É mesmo o equilibrio.

O que é que a ciência já nos conseguiu provar em termos da alimentação que devemos seguir?
O que mas comprovou é que a dieta mediterrânica — o tal equilibro — é boa. Tem carne (sem grande excesso, do tamanho da palma da mão), tem alguns hidratos de carbono, azeite, muitos vegetais. Se se conjugar com a dieta atlântica, muito desenvolvida pela Galiza e norte de Portugal, temos o peixe dos mares um bocadinho mais frios, que é muito rico em ómega 3. Depois, a fruta à sobremesa. Fazer isto é fácil nas refeições principais. O pior são os intervalos em que consumimos os hipercalóricos. Esses é que fazem mal.