“Se for necessário, terá de ser. Se não for, melhor”. Foi esta a resposta do primeiro-ministro, António Costa, depois de questionado pela TSF sobre a hipótese de os bares e discotecas não virem a abrir durante o verão de 2020, devido à pandemia da COVID-19. O comentário assinala a primeira vez em que o líder do governo fala sobre este setor, que está de portas fechadas desde março.

O regresso da vida noturna portuguesa está ainda sem data à vista, mas a pressão começa a dar sinais. Esta terça-feira, Carlos Moura, vice-presidente da AHRESP — Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal, almoçou com o primeiro-ministro e com o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, tendo antes entregue um documento ao governo onde se pedia a regulamentação dos setores em falta, incluindo os da animação noturna e promotores de festas, como casamentos e batizados.

O Radio Hotel, o Bosq e o Rive Rouge — onde em tempos pré-COVID decorriam as famosas festas do Maracatu, à sexta-feira à noite — estão, como todos os outros espaços, de portas fechadas desde o início da pandemia. João Fernandes, mais conhecido por Deejay Kamala, é quem está à frente destas discotecas. Com mais de 20 anos de carreira somados na área, o também empresário vê o setor "numa situação bastante preocupante", diz à MAGG.

À imagem do resto do setor, as consequências desta crise para os seus negócios têm sido desastrosas. A agenda estava cheia até ao final do verão e está agora vazia. As suas casas estão de portas fechadas com 120 trabalhadores à espera de um sinal para regressarem — alguns em layoff, outros como trabalhadores independentes. Em simultâneo, mantêm-se as obrigações financeiras. É que as "responsabilidades assumidas e os investimentos feitos" continuam a somar montante, na forma de rendas, contas e impostos para pagar.

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Ressalvando que quem está no Governo tem decisões muito difíceis para tomar nesta crise de saúde pública, vê neste "silêncio ensurdecedor" que se manteve até ao dia de ontem um sinal de desconsideração face ao setor. "Até ao dia de ontem, os bares e as discotecas foram ignorados pelo governo", diz. Pior do que o silêncio, é a falta de diretrizes, a falta de um plano ou de opções. "Esta indefinição faz com que não seja impossível definir planos para encontrarmos soluções para os nossos negócios."

O silêncio prolongado, ausência de feedback e a "indefinição" representam o aspeto mais "danoso" que a área dos bares e das discotecas enfrenta neste momento. O que não é, considera João Fernandes, proporcional à importância que o setor tem na economia do país: em Portugal existem milhares de discotecas e de bares, que empregam cerca de 240 mil pessoas — sem contar com as equipas técnicas, os fotógrafos, videógrafos, social media managers, relações públicas, DJ e músicos, que exercem funções em regime de trabalhadores independentes e que têm, neste momento, as suas vidas em suspenso.

Em termos de agregado familiar, este número representa cerca de 1,2 milhões de pessoas, como referiu o vice-presidente da AHRESP, antes do almoço com o primeiro-ministro e o ministro da economia. 

A situação é particularmente injusta, diz João Fernandes, sobretudo se tivermos em conta que a maior parte dos bares e discotecas em Lisboa decidiu em conjunto fechar as suas casas antes de o Governo decretar o encerramento obrigatório.  "Por dever cívico, considerámos que não fazia sentido com um surto destes a propagar-se continuarmos a trabalhar. Fechámos as nossas casas por iniciativa própria. Preocupamo-nos com a saúde desde o primeiro dia. Temos este espírito de iniciativa pelo bem comum, e depois somos ignorados."

"Os restaurantes podem vender comida em take away, os bares e discotecas não têm como vender bebidas avulso"

Kamala considera que a abertura dos bares e das discotecas não representa um perigo superior face, por exemplo, à utilização dos transportes públicos ou das praias, desde que se sigam regras de segurança. Dá alguns exemplos: cingir o número de pessoas por metro quadrado, toda a equipa — desde o porteiro ao bar — utilizar máscaras e viseiras, a desinfeção regular das casas de banho,  entradas controladas, com um número de pessoas estipulado, a cumprir a distância de segurança.

"São medidas que podem permitir para o setor pensar em laborar", diz. De portas fechadas, não há alternativa para se reinventar o setor: "Não consigo ver uma solução. Os restaurantes podem vender comida em take away, os bares e discotecas não têm como vender bebidas avulso para casa das pessoas. Não temos como fazer festas em casa das pessoas a cobrar. Não é fácil encontrar neste setor uma saída que não seja o normal, mantendo todos os cuidados para assegurar que o espaço é seguro."

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João Fernandes destaca também o facto de que, com ou sem discotecas e bares abertos, as pessoas vão continuar a reunir-se, como tem, aliás, vindo já a acontecer, ressalva. "As pessoas não vão ficar fechadas em casa. Já estão a acontecer festas privadas, festas secretas, com 100 ou 200 pessoas que na realidade não pagam os impostos, não têm cuidados a nível da segurança, não seguem protocolos rígidos de de higiene e nem estão susceptíveis ao escrutínio das inspecções."

Depois, há a questão do público que maioritariamente frequenta estes espaços: "Nos bares e discotecas, estamos a falar de pessoas que estão fora de grupos de riscos, entre 18 e os 30 anos, principalmente. Com as medidas certas será maioritariamente seguro voltar a trabalhar."

 "Os apoios da parte da banca são uma anedota"

Sobre os apoios da banca, João Fernandes não tem elogios a fazer.  "Se as discotecas e bares não podem laborar pelo interesse de saúde publica, é preciso arranjar forma para ajudar estas empresas para que possam subsistir", diz. "Os apoios da parte da banca são uma anedota. Há quase um aproveitamento dos empresários necessitados de apoios."

João Fernandes não vê sentido em recorrer a créditos, até porque, tal como nas moratórias, os valores cedidos são cobrados no recomeço da atividade, mesmo que esta esteja altamente fragilizada pelos efeitos económicos e sociais da pandemia."É o empurrar do problema com a barriga. O problema não desaparece. Cresce", diz. "Recorrer a empréstimos para pagarmos as contas de agora, significa que quando voltarmos a trabalhar vamos ter de pagar as despesas atuais e as antigas", diz. "Não faz sentido nenhum. É preciso ver que o recomeço não terá o funcionamento normal: além da lotação reduzida, é preciso recuperar a confiança das pessoas. O dinheiro em caixa vai quebrar brutalmente, ao contrário dos custos, que não quebram", diz.

O vice-presidente da AHRESP salientou o mesmo: "Quando se trabalhar a 50%, com receitas, se calhar, inferiores a 50% e ter custos a 100%, não são precisas muitas contas para percebermos que não é viável."

Para o empresário, se não é possível contar com o apoio da banca, então é preciso que haja um apoio verdadeiro do Estado. E nisto, Kamala refere a isenção de tudo o que são impostos, desde o IVA, ao IMI, ao pagamento especial por conta ou à redução dos custos energéticos.

"Aquilo que se pede ao Estado é que nos apoie a nível de carga fiscal para que quando voltarmos a laboral consigamos respirar", diz. "A outra solução é fazer com que o Estado nos apoie a fundo perdido ou com fundos que nos permitam capitalizar e ganhar alguma tesouraria, sem termos de pagar juros que são proibitivos."

É por via da AHRESP que o setor dos bares e das discotecas, juntamente com o da restauração e hotelaria, tem estado a tentar intervir junto do Governo. "É aquilo que temos feito, em conjunto, redigir documentos com soluções e sugestões que nos pareçam viáveis, em termos de apoios e medidas que possamos adotar e receber."

Esta terça-feira, 19 de maio, Carlos Moura, vice-presidente da AHRESP, pediu ao Governo que procedesse à regulamentação da animação noturna e dos promotores de festa como casamentos e batizados, referindo os riscos de insolência que o setor enfrenta. "A animação noturna, os promotores de festas de batizados e casamentos ainda não estão regulados para a sua reabertura, mas, certamente, o primeiro-ministro e o seu Governo não deixarão de cuidar para que se retome a normalidade que se deseja. Se tudo correr bem, as autoridades sanitárias também recomendarão que haja abertura e se elimine a norma dos 50% de limite à atividade", disse, num comunicado também dirigido à Direção-Geral da Saúde (DGS).

"Não podemos assistir à insolvência de muitas empresas que estão em risco. Precisamos que o Governo olhe de uma forma mais específica para o setor, tendo em vista evitar insolvências, revitalizando as companhias e as empresas. Temos de garantir os postos de trabalho."