Vamos imaginar este cenário: um casal partilha tudo na mesma casa, usam a mesma casa de banho, sentam-se à mesa jantar, fazem refeições frente a frente, estão enroscados a ver Netflix e dormem juntos todas as noites. Mas um dá positivo à COVID-19 e o outro nunca chega a contrair a doença. Como é que isto acontece?
A resposta não é ainda definitiva, mas há "pistas", resultado dos esforços da comunidade científica, que se tem dedicado a perceber o fenómeno, diz à MAGG Carlos Almeida Nunes, especialista em Medicina Interna, no hospital dos Lusíadas,
"Uma delas tem que ver com a possibilidade de existência de imunidade cruzada", começa por apontar."Pessoas que contactaram mais vezes no passado com outro coronavírus podem ter ganho alguma imunidade ao SARS-CoV-2 — mas não toda", explica o médico.
Como? "Nós sabemos que o SARS-CoV-2 é um vírus que pertence à família dos coronavírus, uma família de vírus que nos acompanha há muito tempo." O que acontece é que esta estirpe — que virou o mundo do avesso — é uma espécie de "membro mafioso da família", um membro "que degenerou."
Ainda assim, pode ter semelhanças face a alguns dos familiares e, por isso, pessoas que no passado tenham ficado constipadas ou com gripes comuns, tendo sido afetadas por certos tipos de coronavírus, podem ter desenvolvido com uma resposta imunitária.
Por isso é que se chama imunidade cruzada — e não direta. "Não foi este agente [o SARS-CoV-2] que provocou a imunidade, mas um aparentado. Não determinou tanto a protecção de anti-corpos, mas antes o aparecimento de linfócitos, que são as nossas células da memória imunológica [responsáveis pela resposta imune e pela defesa do corpo]", explica. "E esses linfócitos ficam marcados no futuro e provavelmente para sempre, constituindo uma forma de imunidade. São ativados quando alguém é contactado pelo vírus."
"Esta é uma explicação possível", ressalva o médico. Vários estudos recentes têm apontado para esta direcção. "Há estudos de imunologia que sugerem a existência de uma imunidade natural para o SARS-CoV-2 em muitas pessoas, que resulta da imunidade que já existe para os quatro coronavírus que causam constipações e gripes comuns — é a imunidade cruzada", disse, citado pelo "Diário de Notícias", o investigador português José Lourenço, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que tem estado a investigar a imunidade de grupo.
Uma investigação realizada pela Universidade de Boston, nos Estados Unidos, e publicada em outubro, vai num sentido semelhante: diz que constipações causadas por outros coronavírus podem ser um fator de protecção contra as infecções graves de SARS-CoV-2.
Mais pistas: a vacina contra a tuberculose
Mas há outra hipótese que poderá explicar o porquê de algumas pessoas não contrairem o vírus, apesar de contactarem com casos positivos de forma próxima. Esta pista pode também explicar o porquê de, em algumas pessoas, a severidade da infecção ser substancialmente menor.
"Prende-se com os indivíduos que fizeram a BCG — vacina de prevenção à tuberculose. É uma vacinação muito estimulante do ponto de vista imunitário. No nosso pais vacinámos muita gente. Pode haver uma ligação entre a imunidade à COVID-19 a quem no passado foi vacinado", diz Almeida Nunes.
Fez parte do Plano Nacional de Vacinação durante 50 anos, tendo sido retirada apenas em 2017. A grande vantagem desta vacina é que ela não age apenas contra o agente patogéno concreto da tuberculose, aumentando a resposta imunitária em relação a outros — pelo menos, em quem foi vacinado nos últimos 15 anos.
Vários estudos têm relacionado a menor severidade e prevalência da COVID-19 em pessoas que tomaram esta vacina. Um deles foi levado a cabo por cientistas israelitas, das universidades de Ben-Gurion do Naveg e Hebraica de Jerusalém: publicada em julho na revista "Vaccines", a investigação levou à análise de dados de 55 países, em que se inclui Portugal, sugerindo a existência de uma relação entre a vacina para a BCG e as menores taxas de infecção por COVID-19 e de mortalidade pelo novo coronavírus, por milhão de habitante.
Vários ensaios clínicos têm vindo a ser realizados para perceber se, efetivamente, existe esta relação entre a vacina contra a tuberculose e a menor incidência e severidade da COVID-19. Um deles é holandês e foi publicado em agosto na Cells Report Medicine: conclui não só que a vacina "não está associada a um aumento da incidência dos sintomas durante o surto de COVID-19 na Holanda", como diz ainda que a BCG “pode estar associada a uma diminuição da incidência da doença durante a pandemia de Covid-19 e a uma menor incidência de fadiga extrema”.
Segundo a "BBC", no início de outubro, a Universidade de Exeter, no Reino Unido, iniciou ensaios clínicos que incluem mil pessoas, com vista a provar se, de facto, a vacina contra a turberculose, tem este efeito protetor contra a COVID-19.
A hipótese de a vacina BCG ter sucesso no combate à COVID-19 pôs-se logo nos primeiros meses desde que a COVID-19 foi decretada pandemia. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da OMS, é co-autor de um artigo cientifico publicado na revista Lancet, em abril, em que reconhece que ensaios clínicos já haviam provado que os efeitos imunitários provocados pela vacina BCG "são capazes de proteger contra infecções respiratórias".
O artigo diz que "a vacina BCG mostrou reduzir a severidade das infecções por outros vírus" com estruturas semelhantes à da COVID-19, em estudos controlados — como foi o caso da febre amarela e vírus da encefalomiocardite. "A vacina BCG pode, portanto, reduzir a presença do vírus após a exposição ao SARS-COV-2, com consequente COVID-19 menos grave e recuperação mais rápida."
No entanto, especifica que esta vacina deverá ser usada contra a COVID-19 apenas em estudos controlados. Há quatro motivos principais a ter em conta: a escassez da vacina, o que significa que a sua distribuição indiscriminada para a luta contra o novo coronavírus pode pôr em causa a saúde de crianças que vivem em zonas de risco e que precisam desta protecção; depois, o desconhecimento da sua real eficácia no que se refere à SARS-CoV-2, tendo em conta as "evidências fracas" dos estudos realizados até à data, baseados em dados populacionais e não individuais; a falsa sensação de segurança que pode causar; e, por último, a necessidade da monitorização cuidadosa para evitar a remota possibilidade de que a BCG possa surtir o efeito contrário e agravar a doença em doentes infetados.