Orçamentos, contratações, planeamento de cartas de pequeno-almoço, room service, pool bar, gestão de recursos humanos... Tarefas que fazem parte do dia a dia de um chef num hotel de cinco estrelas e que podem não parecer óbvias para quem pensa neste tipo de trabalho, muito associado a um imaginário alimentado por formatos de reality tv como "Hell's Kitchen", "Pesadelo na Cozinha", filmes como "O Menu", "O Chef", "Burnt" ou séries como "The Bear".

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João Luz, de 36 anos, e Rui Pinto, também de 36, chefs do AVISTA e AVISTA Ásia, respetivamente, desvendam à MAGG como é o dia a dia de um chef de um hotel de cinco estrelas. Ambos madeirenses, são também discípulos de Benoît Sinthon. O chef francês, que detém duas estrelas Michelin pelo trabalho desenvolvido no Il Gallo D'Oro (restaurante de fine dining do The Cliff Bay) é também consultor gastronómico do grupo PortoBay.

Benoit Sinthon, chef do Gallo D'oro
Benoit Sinthon, chef do Gallo D'oro créditos: Instagram

Professor, mentor, Sinthon é não só um embaixador da gastronomia madeirense no mundo mas, acima de tudo, um caça-talentos. João Luz e Rui Pinto, juntamente com Pedro Spínola (Portobay Flores) e Mauro Gonçalves (Portobay Liberdade Lisboa) foram, na mesma época, estagiários do chef francês. "O chef Benoît tem um carisma, ele sabe fazer com que as pessoas acreditem nele porque tudo em que ele toca, brilha. Como ele tem uma credibilidade muito grande, seguimos esses passos e todos nós estamos bem", explica João Luz.

Já Rui Pinto salienta que o papel do mentor na sua carreira "foi mudando". "De início, foi mentor, ensinava-me a ter gosto por coisas que eu não sabia o que eram, depois passou a ser um conselheiro. Hoje em dia é como um amigo que temos aqui. Ele já sabe o meu valor na cozinha mas, talvez na parte da gestão, ou aconselhamento de carreira, ele está sempre pronto", salienta o cozinheiro e responsável pelo restaurante de inspiração asiática do grupo Portobay.

João Luz regressou de Inglaterra há cinco anos para trabalhar no projeto Les Suites at The Cliff Bay, o segmento premium do resort de cinco estrelas do grupo Portobay. Dentro desta ideia estava também a criação de uma nova marca gastronómica, o AVISTA. "Começámos no safe side. Agora, sempre que mudamos o menu, o que acontece duas vezes por ano, as equipas estão sempre envolvidas nesse processo. Cada vez subimos um degrau e o segredo tem sido esse. Irmos passo a passo e queremos sempre superar-nos, dar uma boa experiência ao cliente", explica o chef.

João Luz, chef do AVISTA
João Luz, chef do AVISTA créditos: 2019 Henrique Seruca

O AVISTA não é apenas um restaurante. É uma marca associada ao Les Suites at The Cliff Bay e isso significa que João Luz tem de pensar todo o serviço gastronómico para os clientes das 23 suites de luxo da marca Portobay. "Abrimos às 7h30 ao pequeno- almoço e fechamos a cozinha às 22 horas. Temos todos os serviços de um cinco estrelas, desde o pequeno-almoço, almoço, chá da tarde, lounge, snacks, piscina", explica. São, no total, cinco cartas, sendo que a vegetariana, introduzida no AVISTA há três anos, já reúne a preferência de "15 a 20% dos clientes". O cozinheiro explica que tanto a oferta como as equipas foram aumentando ao longo dos últimos cinco anos, sendo a última adição o AVISTA Ásia.

Vejas as fotos do Les Suites at The Cliff Bay

Depois de se ter começado a portar mal na escola, Rui Pinto foi parar à Irlanda do Norte. A família, cheia de cozinheiros amadores e gosto pela cozinha, também contribuiu para que, depois de uns tempos sem rumo, aceitasse a sugestão do pai e decidisse ir para a Escola de Hotelaria e Turismo da Madeira. Depois de dois estágios, foi parar, tal como João Luz, ao Il Gallo de Oro. Passou por Sidney, onde trabalhou no Quay, de Peter Gilmore. Em Londres, trabalhou no Viajante de Nuno Mendes, na Chiltern Firehouse e no The Greenhouse, em Mayfair, que fechou em 2020.

O chef do AVISTA Ásia começou a ganhar o gosto pela cozinha daquele continente quando viveu na Austrália. "Mas não é o tipo de cozinha que idealize para a minha carreira. isto é uma fase. Foi um desafio que me lançaram, eu aceitei, mas daqui a uns tempos gostava de fazer outras coisas", explica Rui Pinto, relembrando que o espaço do AVISTA Ásia já existia, mas a oferta era limitada. "Estava a fazer o mesmo sushi que se serve no resto da ilha e eu achei que merecia qualquer coisa mais."

Rui Pinto, chef do AVISTA Ásia
Rui Pinto, chef do AVISTA Ásia créditos: 2019 Henrique Seruca

Rui Pinto abordou o mentor, que é também consultor gastronómico do grupo hoteleiro Portobay, e sugeriu que o espaço poderia ser mais bem rentabilizado. "Disse que poderia ser um bom projeto para mim porque já tinha esses sabores que eu gostava de fazer. Um ano após essa conversa, o espaço abriu. De início, eles queriam fazer street food, mas eu também queria puxar um bocadinho para o fine dining. Fomos tirando aos poucos o sushi que estava a ser feito, nivelando as coisas e, hoje em dia, fazemos uma carta que é um pouco de toda a Ásia", explica o chef.

"Temos de chegara ao final do mês e os resultados financeiros serem positivos. Senão estamos a correr, a cansar-nos e não saímos do mesmo sítio"

Qual é, então, a diferença entre trabalhar num restaurante de rua e num conceito gastronómico inserido num hotel? "Quando trabalhamos numa unidade hoteleira, temos o conforto de ter quartos. Temos quase garantida meia casa do espaço, enquanto que na restauração estamos muito virados para o cliente passante e é muito mais difícil gerir um restaurante de rua do que o de hotel. E um restaurante de rua não conseguir fazer tanto investimento como um hotel", explica João Luz.

"Um restaurante de rua é muito mais rock and roll, podemos fazer as coisas que nós quisermos", afirma, por seu turno, Rui Pinto. "Dentro do hotel temos de ser mais formatados. Temos de falar com o resto das pessoas que trabalham no hotel para chegar a um consenso. Num restaurante de rua, falamos com o patrão e está resolvido. Aqui existem muitas burocracias. Mas dá-nos outro suporte. Temos infraestruturas, temos toda uma equipa que trabalha a favor do restaurante. E isso é muito bom", admite o chef do AVISTA Ásia, embora diga que faz falta "um pouco de diversão".

E quanto aos riscos criativos? "Num hotel temos equipas de marketing, de marca, de food and beverages, que nos dão apoio. Nós partilhamos a ideia, estão três, quatro pessoas a trabalhar no mesmo assunto e, no dia a seguir, fazemos acontecer. Na restauração não há assim tantas pessoas, tanto tempo livre e demora muito mais tempo a fazer essas alterações", detalha João Luz.

Para Rui Pinto, os sabores asiáticos já não representam um risco, mesmo tratando-se de um restaurante de hotel. "Hoje em dia, qualquer pessoa que goste de gastronomia, quando vê um restaurante asiático, gosta de experimentar, nem que seja uma vez ou duas. O que fazemos são sabores bastante fortes, coisas que não vão agradar a toda a gente mas, a quem agrada, sai satisfeito", explica o líder do AVISTA Ásia.

A parte invisível, e menos glamorosa, a gestão, também é fundamental para o sucesso de um restaurante de hotel. "Tem de haver essa parte! Está tudo interligado. Quando fazemos um prato, temos de analisar se esse produto é constante, ou seja, se o fornecedor, durante esses seis meses, consegue fornecer esse produto. Temos de negociar os preços para essa temporada, fazer as fichas técnicas de todos os produtos - um prato pode ter seis, sete oito fichas técnicas - analisar e custear bem, e não ter medo de arriscar. Se os cálculos estiverem bem feitos, o resultado final não falha", detalha o chef do AVISTA.

João Luz coordena uma equipa de 19 pessoas o que, como explica, lhe dá "conforto e tempo" para se dedicar ao lado da gestão. "Temos de chegara ao final do mês e os resultados financeiros serem positivos. Senão estamos a correr, a cansar-nos e não saímos do mesmo sítio. E se são menos bons temos de arranjar alternativas para ultrapassá-los", salienta.

Já para Rui Pinto, "gerir equipas sempre foi fácil". "Nas minhas equipas não gosto de pôr pessoas só por pôr. Tenho de avaliar o trabalho, o carácter delas e como é que elas vão ser no futuro. E quando aposto numa pessoa, é quase aposta certa. Gosto de me rodear de pessoas de confiança. Se uma pessoa trabalhar bem e o carácter não for justo, prefiro esperar, colocar mais trabalho em cima de mim e esperar pela pessoa certa. É dar um tiro no pé ao longo prazo", explica o chef. Quanto à parte financeira, tem a resposta pronta. "Orçamentos? Não é muito difícil. Basta fazer as contas. Há calculadoras hoje em dia, basta estar atento e ter atenção aos abusos."

O grupo Portobay tem uma horta própria, onde são cultivados produtos usados nos vários hotéis do grupo. "Se tivermos na nossa horta, não encomendamos fora. Tanto que o produto da horta tem um sabor muito melhor. Temos dois agricultores, o Leonel e o Richard, que fazem um trabalho incrível. Quando precisamos de algo e vamos mudar o menu, telefonamos dois, três meses antes, a informá-los do que precisamos, eles começam a plantar e quando concretizamos o menu, temos disponíveis esses produtos… e o cliente agradece", explica ainda João Luz.

Veja as imagens do Chefs Get Together, que juntou o AVISTA E O JNCQUOI

O que fazem os chefs quando não estão a trabalhar? Churrasco

"É engraçado, porque dizem à minha mulher que ela deve estar super satisfeita por ter um cozinheiro em casa (risos)!", brinca João Luz. "Mas um cozinheiro nunca está em casa e, quando está, não tem oportunidade de cozinhar como gostaria. Nas folgas cabe-me ir para a cozinha, mas não faço por obrigação, faço por gosto. Vou pôr as meninas à escola, vou trabalhar, aliás, o AVISTA nasceu na mesma altura que as minhas filhas, daí dizer que é o meu terceiro filho e ter um carinho muito grande pelo restaurante", salienta o chef.

As filhas adoram "arroz caldoso, peixe". "Quando eu estou, um dia é sempre peixe. Elas comem carne, mas nunca me pedem". Para descontrair e comer, fora do circuito do fine dining, o chef do grupo Portobay gosta de prazeres simples. "Vou para a serra e faço eu. Gosto de estar com a família e com os amigos. cada um leva algo, chegamos à serra, fazemos a brasa, fazemos carne ou peixe, comemos, repousamos e depois regressamos a casa". Já Rui Pinto, quando não está a trabalhar, gosta "de comer um peixinho, marisco, uma boa espetada". "Sou fácil. Desde que a comida seja bem feita, como qualquer coisa. Gosto de fazer churrasco para os amigos."

* A MAGG esteve no The Cliff Bay e marcou presença nos jantares Chefs Get Together a convite do grupo PortoBay

créditos fotos: Henrique Seruca