Três restaurantes, programas de tv e um novo desafio de consultoria para o grupo Hilton, que vai abrir três hotéis em Lisboa até 2026. Aos 44 anos, Marlene Vieira é reconhecida não só pelos seus pares, mas também pelo público que, há mais de uma década, a vê regularmente no pequeno ecrã. A segunda temporada do programa "Cozinha de Chef", que se estreou no canal Casa e Cozinha, é mais um passo na carreira televisiva de Marlene Vieira.
A chef nortenha estreou-se em 2013 no programa da RTP1 "Chef's Academy", ao lado dos colegas de profissão António Alexandre e Kiko Martins. O formato, que era conduzido por Catarina Furtado, contava com o chef Cordeiro como diretor da escola onde aspirantes a cozinheiros profissionais demonstravam o seu talento.
A sua presença no pequeno ecrã continuou em 2019, quando integrou o programa "História da Gastronomia Portuguesa", da RTP. Em 2021, também na estação pública de televisão, fez parte do painel de jurados da quinta edição de "Masterchef Portugal", juntamente com Óscar Geadas e Vítor Sobral.
No espaço de dois anos, que coincidiram com a pandemia da COVID-19, abriu dois restaurantes em nome próprio - o Zunzum Gastrobar e o Marlene, ambos situados em Lisboa, junto ao Tejo, a juntar ao espaço em nome próprio no Time Out Market, em Lisboa.
Casada com o também chef João Sá — uma história em que o amor e o trabalho sempre andaram de mãos dadas —, viu o marido conquistar uma estrela Michelin, atribuída ao Sála na primeira Gala Michelin Portugal, no passado mês de fevereiro. O casal tem uma filha, Leonor, de 8 anos.
Fale-me desta nova temporada do "Cozinha de Chef".
Foi uma temporada muito gira. Houve uma viagem por Portugal, não de carro mas pelos livros, pelo estudo da nossa gastronomia. Fomos a todas as regiões do País, às capitais de distrito e ao que as marca em termos gastronómicos. Eu fiz a minha versão de dois pratos mais famosos de cada distrito. Foi giro porque há um conhecimento adquirido. Fomos até à História, à origem da criação.
Qual é que lhe deu mais prazer fazer?
O Alentejo deixa-nos sempre espantados como é que, com tão pouco, se faz muito. Fico sempre um bocado vidrada no Alentejo e no desafio de não estragar aquela receita. Tento sempre apresentar uma versão diferente da original, respeitando os ingredientes usados na receita, as técnicas também. Tenho também uma ligação especial aos Açores, aos ingredientes autênticos e originais. Deixa o meu coração um bocadinho magoado, porque sou do norte, mas gosto de me abrir para o resto. Sou de lá e, em termos de coração, ninguém me tira de lá, mas sou uma cidadã do mundo, não consigo ficar presa numa caixinha.
Veja imagens da segunda temporada de "Cozinha de Chef"
Já pensou abrir um restaurante na sua terra?
Já, várias vezes. Estava para acontecer antes da pandemia mas, com dois restaurantes para abrir, era muita coisa. Não aconteceu, não tinha que ser. Ao mesmo tempo, há o problema da distância. Gosto de estar presente nos meus projetos, por isso é que são todos perto. Gerir à distância é algo que me preocupa, por isso é que eu ainda não aceitei propostas.
Isso implica também viver na estrada, não é?
É, e eu tenho uma 'coisa' ali [aponta para a filha, que está a desenhar na cozinha do restaurante Marlene] que me faz pensar muito bem antes de aceitar qualquer proposta. Tenho três restaurantes, faço muitos projetos fora dos restaurantes, muitos eventos e acho que é mais do que suficiente. Tenho muitos pedidos nesse sentido, para ter um projeto no norte, é quase como uma obrigação.
Não devia ser, embora quando a pessoa fala tanto das suas raízes, acaba sempre por haver essa questão.
Eu vivo com elas na minha comida (risos)! À medida que vamos envelhecendo, temos mesmo necessidade de ir às nossas memórias. Quando somos jovens, queremos descobrir muito. Quando chegamos ali aos 40, os nossos reflexos são muito ligados à memória. Eu estou sempre no norte, a cabeça está sempre lá.
Como é que se faz um programa destes? Não é só chegar lá e cozinhar.
A preparação começa dois, três meses antes da gravação. Há um fio condutor que precisa ser estudado e projetar algo que não se desvincule da minha identidade culinária. É preciso que haja uma ligação com as pessoas que estão em casa, que querem muita cozinha de conforto e algo que seja fácil e acessível de fazer. Se bem que este programa desafia as pessoas a ir um bocadinho mais além do que estão habituadas. Já há muitos programas que se dedicam à cozinha do dia a dia, o "Cozinha de Chef" tem muito que ver com a minha forma de estar na cozinha, onde os pormenores fazem toda a diferença.
Estreou-se em em televisão em 2013. O que é que a televisão lhe trouxe, além da notoriedade?
É uma montra gigante e é um privilégio podermos mostrar o nosso trabalho. Eu sinto-me afortunada. Ajudou-me a comunicar. Eu era uma miúda muito tímida e fui aos poucos. No primeiro dia de gravações [em "Chef's Academy"] estava com o Kiko Martins e disse 'Kiko, conta uma anedota, faz alguma coisa!'. Eu estava tão nervosa por ter de falar para uma câmara, foi assustador. A televisão ajuda-nos a comunicar melhor o nosso trabalho, sem dúvida. Mas nem tudo é bom. As pessoas criam expectativas...
Em que aspecto?
Imagine. Quando eu falo da cozinha portuguesa, as pessoas interpretam mal, no sentido de irem encontrar aqui uma cozinha tradicional portuguesa. E eu não faço tradicional, no sentido de estar 'encostada' ao original. A minha mãe tem esse problema, ouve qualquer coisa na televisão e tira as suas próprias conclusões. Depois falta o pormenor (risos)! Algumas pessoas chegavam aqui e diziam 'ah, mas isto não é cozinha tradicional'. Eu nunca disse que fazia cozinha tradicional. Eu inspiro-me na cozinha tradicional. São coisas diferentes.
A televisão potencia uma série de expectativas.
Pode acontecer muita coisa. A qualquer momento, pedem-me uma receita. Acontece com os cantores, com os humoristas... estamos sempre em trabalho.
Mas passam por si e perguntam como é que se faz uma receita?
Em todo o lado. Nas compras, no banco...
No banco?
Já aconteceu estar com o gerente, a porta estava aberta, o senhor reconheceu a minha voz. 'Olhe, desculpe, eu queria só fazer uma perguntinha à chef Marlene'...Socorro (risos)! É inacreditável. Mas é engraçado.
Recorde os programas em que Marlene Vieira já participou
Era capaz de fazer um programa do género do "Hell's Kitchen"?
Faria, porque acho que exigência não tem que ver com agressividade. Isso acontece nas cozinhas, é impossível haver qualidade sem exigência. Era capaz e até achava que as televisões deviam arriscar e pôr uma mulher... se bem que ia ser massacrada. Elas já são massacradas por tudo e por nada, muito mais do que os homens.
Se a figura de autoridade for uma mulher, é mais criticada?
Com certeza! Não tenha a menor dúvida.
Pergunto sobre o "Hell's Kitchen" por ser um programa mais orientado para as pessoas, para o entretenimento, do que propriamente para a comida.
Mais ou menos. Há um desempenho, há provas de capacidade culinária mas, claro, é um bocadinho reality show. Eu prefiro sempre um lado de formação, de poder passar conhecimento, se bem que eu acho que o "Hell's Kitchen" tem um bocadinho disso. Mas tem o lado que as pessoas gostam de ver, sangue. Achei graça ao último "Hell's Kitchen Famosos", porque teve um lado de comédia que eu gosto muito. O meu fascínio é a comédia, achei graça e até achei que o Ljubomir tinha jeito mais para este lado do que para o outro. Achei um formato vencedor. Se me dissessem se gostava de fazer, dizia que sim, porque gosto de me rir. Não me importava, gosto de sair da minha zona de conforto.
"Tive uma cozinheira que me disse na cara 'não consigo ser liderada por uma mulher'"
O seu marido, o chef João Sá, ganhou a primeira estrela na Gala Michelin Portugal, no passado mês de fevereiro. Foi uma sensação de felicidade?
Claro, até porque é um projeto em comum, praticamente.
Mas, por outro lado, não viu nenhum dos seus restaurantes premiado.
Os dois fazem parte do guia Michelin.
Mas não tem uma estrela.
Não era o momento. Se fosse, tinha acontecido. É muito importante para o Marlene ter uma estrela porque trabalhamos nesse segmento e essa estrela traz clientes, sem os quais não sobrevivemos. Mas o Marlene, em apenas dois anos de existência, já ganhou tantos prémios que achámos que pode ser por diferentes razões. Por ser da mesma empresa...
Mas isso tem peso?
Ninguém sabe muito bem. Sabemos que eles querem uma cozinha de excelência. Nós consideramos que o Marlene tem uma cozinha de excelência, senão não teria ganhado tantos prémios em tão pouco tempo. Há sempre um bocadinho de esperança. Éramos um forte candidato a estrela e só temos é que continuar a trabalhar, a melhorar. Há um bocadinho de frustração mas, no dia seguinte, já passa. Mas só o facto de termos tido o Sála, que tem seis anos, e que já merecia. Se nenhum de nós tivesse ganhado, isso sim seria muito, muito frustrante. Como houve aquela estrela, foi especial.
Qual foi, para si, o balanço geral daquela gala? Houve um sentimento geral de insatisfação.
Ficámos com água na boca. É muito duro aceitar as coisas como elas são. Se me perguntasse no dia a seguir, eu diria que soube a pouco. Podemos, à distância, perceber porque é que não foi entregue a terceira estrela Michelin, ou mais duas estrelas Michelin - só houve para o Vítor [Matos] e foi uma surpresa completa, ninguém estava à espera. Estamos sempre a torcer por chefs que admiramos e há essa sensação de frustração, de falta de atenção do guia, de não haver inspectores suficientes... ninguém sabe muito bem. O que é certo é que não nos sobra mais nada senão continuar a trabalhar e a acreditar que vai acontecer naturalmente. Nós ainda estamos um bocadinho dependentes de Espanha, embora eles digam que os inspectores são de todo o mundo, nós sabemos que a maioria são espanhóis. Temos sempre de trabalhar um bocadinho mais. É como as mulheres. Temos sempre que mostrar um bocadinho mais. Há uma maior exigência. Temos de ser muito, muito bons.
É mais fácil - seja neste ou noutros meios - crescer sem levantar muitas ondas ou deve sempre falar-se das questões que causam desigualdade de oportunidades ou discriminação? Acha que, por ter essa visibilidade e falar sobre esses temas, há mais mulheres que querem fazer isto?
Não necessariamente. Está a acompanhar o mundo, e é em todas as áreas. Há mais oportunidades, é um bocadinho mais fácil do que era há 20 anos, então as mulheres têm mais confiança para não sentirem aquela pressão que era, de ser muito difícil concretizar alguma coisa. Não creio que eu tenha tido influência nisso. Acredito na pressão que o mundo está a fazer para que as mulheres sejam reconhecidas pelo seu talento, pela sua capacidade, apesar de as críticas continuarem a ser muito fortes, a maior parte de mulheres, que é algo que me entristece muito.
Em que sentido?
Na praça pública, críticas como 'ela nem faz nada de jeito', 'ah, isto é muito difícil', 'ah, ela é gorda', ah, ela é magra, é bonita, é alta'. Isso vem muito da parte das mulheres. Os homens fazem-no às escondidas, ou falam entre eles, as mulheres verbalizam. Eu acho que as mulheres não têm esse direito, sequer. Como é que é possível uma mulher criticar outra mulher? Os homens, eu ignoro completamente. Não me interessa nada a opinião deles, zero.
A Marlene acha que, quando estão a avaliar o seu trabalho, avaliam não só o que está na mesa, mas também o que a Marlene é?
Sim, sim. Isso conta, claro. Muito menos porque há uma cultura, uma educação muito diferente agora. Antigamente, as mulheres que se atreviam sequer a pensar em estar a liderar um grupo, isso era quase um pecado mortal. 'Como é que te atreves a ser diferente de nós?'. Eu ouvi isto muitas vezes dentro das cozinhas, dito por algumas mulheres. Os homens eram uns sonsos, mas eu já sabia que eram. Não estava era à espera de ter mulheres a impedir-me de andar para a frente. Porque, em minha casa, eu tinha uma mãe e uma avó que eram forças. Era difícil para mim perceber que não havia esse apoio. Isso sente-se mais entre os homens. Eles são competitivos mas, quando são amigos, são mais unidos. As mulheres são más umas para as outras no trabalho.
Hoje em dia ainda existe essa falta de sororidade?
Não. Hoje em dia está tudo muito diferente. Nós aprendemos a respeitar. Eu estou a falar de mulheres fora da minha área. Na minha área houve uma aprendizagem do respeito pelo trabalho e pela diferença. Eu faço um trabalho diferente do da Justa [Nobre], da Noélia [Jerónimo] e aprendemos a admirar o trabalho umas das outras. Mas o público em geral não acompanha essa aprendizagem.
É mais fácil contratar mulheres ou homens?
Já não faço essa parte, felizmente (risos)! Nós temos 80 funcionários e temos um responsável dos Recursos Humanos que faz essa parte. Primeiro, a pessoa tem de ter referências. Dificilmente contratamos sem referências. Tem muito que ver com a postura e depende também do projeto. Mas a atitude é muito importante, mais do que ser homem ou mulher. Não contratamos por esse motivo. Há uns anos havia uma dificuldade muito grande em contratar mulheres porque estavam habituadas a ser lideradas por homens. Tive uma cozinheira que me disse na cara 'não consigo ser liderada por uma mulher. Estou habituada a homens e não consigo ser diferente'. Isto é uma frustração grande. Eu não consigo perceber porque tive uma educação muito diferente. Por isso é que, para mim, estar à frente de uma equipa é perfeitamente natural. Eu tinha muita dificuldade em contratar mulheres. Hoje, não. Hoje há uma legião de fãs de mulheres, que querem estar comigo e querem acompanhar-me.
Essas pessoas que querem trabalhar consigo veem em si um exemplo de liderança? Porque uma líder é diferente de um homem líder.
Não sei. Nunca fui um homem líder (risos)! Não sei se é diferente. Eu tive homens e mulheres como chefes. O que é certo é que há uma certa serenidade na liderança das mulheres. São mais... assertivas. Há muito menos brutalidade nas frases, dificilmente levantam a voz, pelo menos as que eu tive. As coisas apareciam feitas de uma forma... nem se percebia como. Eram serenas mas, ao mesmo tempo, muito eficazes. Os homens são mais nervosos, impulsivos...
Características que, habitualmente, se atribuem às mulheres.
Não na cozinha. Não pela minha experiência. Os homens são muito mais explosivos. As mulheres têm a questão das emoções à flor da pele. Choram com mais facilidade. As pessoas acham que isso é uma fraqueza, não é. É uma forma de libertar a frustração, a raiva. Os homens berram, dão murros, são estúpidos. As mulheres choram e afastam-se. Mesmo quando não são líderes. E, na verdade, lidam melhor com o trabalho repetitivo. Os homens precisam de fazer coisas diferentes com mais frequência. Mas não posso generalizar porque há uma ou outra mulher que sai deste padrão.
"É muito difícil discutirmos o que quer que seja à frente da nossa filha"
Como é que a Marlene e o seu marido,o João, gerem a questão dos egos?
Às vezes bem, outras vezes mal (risos)! Não é fácil porque somos dois líderes.
Como é que se lembraram de fazer uma empresa juntos. Podiam cada um ter a sua.
Podíamos. Se calhar tinha sido mais fácil (risos)! É uma prova de fogo muito grande. Estamos juntos vai fazer 19 anos e passámos por isto tudo juntos. Desde sermos aprendizes, sub-chefes...
"Eu digo sempre que o fine dining é a Liga dos Campeões. E a Liga dos Campeões envolve muito dinheiro."
Conheceram-se em trabalho?
Sim, na mesma cozinha. Eu era chefe dele. E só por isso ele já é especial, no sentido em que quis muito aprender comigo. Eu era chef de partie, que é um chefe de secção. Não é fácil. Isto implica falar muito, aceitar e tentar corrigir os pequenos confrontos. É um desafio muito grande, não dá para todos. É preciso um respeito muito grande pelo espaço de cada um, pela identidade, pela personalidade de cada um. Há momentos em que eu me intrometo, ou em que ele se intromete e há uma chamada de atenção e um recuo. Tem que haver um respeito mútuo. Já houve momentos de tensão, claro. Mesmo que não fossemos sócios ou marido e mulher, haveria sempre tensão porque são duas cabeças com ideias diferentes. Sendo marido e mulher é uma dificuldade acrescida porque o trabalho vai muitas vezes para casa.
E como é que fazem com a filha?
Muitas vezes é quando ela não está que temos esses momentos. É muito difícil discutirmos o que quer que seja à frente da nossa filha.
Acredito que ela não queira ser cozinheira.
Quer ser pasteleira. Ela já está a combinar com um amigo, que quer ser cozinheiro. Eu acho que é uma paixãozinha dela, desde criança. Então vão montar um restaurante. Ela diz 'nós não sabemos se isto vai resultar, eu tenho muito medo de ir à falência, mãe'. E eu digo: 'se acontecer, acontece!'. É muito engraçado. Ela diz que quer ser pasteleira-cientista.
Já faz coisas em casa?
Faz bolos. Não quer nada de cozinha, só alguma coisa que tenha ovos. Arroz também já faz, massas... mas pastelaria é a coisa dela. Não há hipótese.
"Há uns anos era completamente explosiva. Ia responder às críticas e depois apagava"
Tanto o Zunzum como o Marlene abriram durante a pandemia. Como foram esses dois anos?
Tente lá imaginar (risos)! Foi muito desespero, não vou mentir. O espaço do Time Out Market esteve, no total, fechado 10 meses. O Zunzum era para abrir a 18 de março, no dia 13 toda a gente fechou. Abrimos a 3o de julho. Depois foi respirar fundo e dizer 'quando isto abrir, vai ser prego a fundo!'. Acho que o impacto do segundo confinamento, em janeiro de 2021, foi muito mais desanimador. De janeiro a março foi muito difícil. Em abril, quando os restaurantes voltaram a abrir, notava-se que as pessoas vinham irritadas, pareciam bichos. Aprendemos que é um dia de cada vez.
As pessoas que não são do meio quando olham para os preços dos restaurantes de fine dining pensam que os chefs são todos milionários. Como é que se explica de uma forma simples como é que funciona um espaço destes e porque é que um prato custa um determinado valor?
Há um investimento no sítio onde as pessoas estão, num espaço como este, que nós achamos que é privilegiado. Há cuidado com a construção deste ambiente. É um espaço que temos de pagar, porque houve esse investimento. Depois há o design das loiças, que são feitas à mão, a cutelaria portuguesa, uma das melhores do mundo, os nossos copos, que foram escolhidos quase a dedo para poder proporcionar a melhor degustação de vinhos. E depois, a seleção destes produtos, que são os melhores, e os profissionais, que precisam de receber e que estiveram anos a estudar, a investir na sua profissão, para poder trazer técnicas e experiências novas. Eu digo sempre que o fine dining é a Liga dos Campeões. E a Liga dos Campeões envolve muito dinheiro.
O fine dining também, porque há muito investimento. Os profissionais são valorizados por aquilo que fazem com os produtos, pela sua capacidade técnica, pelas memórias que criam. Tudo isto, as pessoas não estão a pagar 100 gramas de linguado. Num prato, podem estar ali muitas horas de trabalho. E nós não cobramos à hora porque, se fosse, era muito mais caro. Muito mais! Nós vamos a um médico e não pagamos à hora. Pagamos o tempo em que ele esteve a estudar para nos dar um diagnóstico. Num restaurante é mais ou menos a mesma coisa. Para ter um prato, houve muitos anos de investimento. Acredito que haja pessoas que não valorizam. Que não valorizam comida, valorizam apenas alimentarem-se. Mas é o que é.
Até surgirem as redes sociais, os críticos desta área ou eram jornalistas ou especialistas. Hoje em dia, há milhares de foodies que, no seu Instagram, também fazem esse papel. Como é que lida com isso?
Não é fácil. Achamos sempre que só as pessoas ligadas à gastronomia é que percebem e têm a capacidade crítica. Não é bem assim. Isto é feito para o público em geral. Há uma análise depois a essa crítica e eu tenho sempre um olhar de aprendizagem, não de revolta. Só se os argumentos forem ridículos. A maturidade dá-nos essa serenidade, de ignorar completamente. Há uns anos era completamente explosiva. Ia responder às críticas e depois apagava. Hoje... jamais. Faço sempre uma análise no sentido de perceber porque é que não correspondemos. No Time Out Market levamos muita porrada, efetivamente.
Porquê?
Porque tem muitos turistas, muitos deles não conhecem a cozinha portuguesa. Provam e dizem 'não sei porque é que a francesinha é uma coisa tão espectacular, não achei piada nenhuma a isto!'. É horrível. Escrevem muito no Google, no TripAdvisor...
Acho que há pessoas que já são profissionais disso.
Isso é no Instagram, aqueles que têm a mania que são foodies.
Era desses que também estava a falar há bocado. Dos que recomendam '10 restaurantes em Lisboa', desse género...
Isso chama-se oportunismo (riso)! Usar o trabalho dos outros para se evidenciar. É basicamente isso.
Os seus restaurantes fogem um bocado a esse público-alvo.
Sim. Não são pizzaria, brunch, não é tasca, porque a tasca também é conceito. Eu detesto esse conceito de ser comercial, de fazer a cena da moda.
Nunca faria um brunch num dos restaurantes?
Eu fiz brunch durante a pandemia, no Zunzum, e foi um sucesso. Mas não lhe chamei brunch, chamei-lhe Pequeno Grande Almoço. Porque fechava à uma da tarde. Foi espectacular, adorei! Mas adorei fazer durante três meses. Não seria para mim, fazer aquilo. Para já, não é para todos os dias. Faz-me lembrar os hotéis, quando vamos de férias. E é muito repetitivo, não há criatividade. Tinha de fazer todas as semanas um brunch diferente.
Imagine que agora era contratada por uma grande cadeia hoteleira para fazer consultoria.
Vai acontecer entretanto, para o grupo Hilton. Já existe um conceito definido pela marca e eu crio o menu para aquele conceito, há um fio condutor. Vai ser casual fine dining.
Vai ter brunch?
Não vai ter brunch, é tudo à carta.
Como é enfrentar um desafio desses?
Eu trabalhei muitos anos em hotelaria, para mim não é uma novidade. É muito desafiante ter clientes num restaurante de hotel.