No universo dos significados, o número três parece ser especial. Na numerologia é sinónimo de sensibilidade e expressão. Para os chineses, é o número perfeito, porque junta o céu, a Terra e, como resultado das suas existências, a humanidade. Espiritualmente, tem várias interpretações. É, por exemplo, no cristianismo, o número da Santíssima Trindade, aquela que é composta pelo Pai, Filho e Espírito Santo; é o número dos principais deuses na religião hindu (Brahma, Vishnu e Shiva), bem como na cultura antiga do Egito (Ísis, Osíris e Hórus).
Também para os lados da Costa Alentejana há uma tríade perfeita. O Craveiral Farmhouse, um empreendimento turístico em Odemira, inaugurado em 2018, juntou-se ao In Bocca Al Lupo, o primeiro restaurante italiano biológico de Lisboa, e à Associação VilacomVida, uma instituição particular de solidariedade social e organização não governamental para a pessoa com deficiência com personalidade jurídica, para fazer nascer o projeto que já tinha sido idealizado, mesmo antes da abertura do turismo rural. O Craveiral Pizzeria Com Vida In Bocca Al Lupo passou a estar disponível, oficialmente, a 15 de junho, e é um dos serviços integrados no restaurante desta unidade hoteleira.
Da junção destas três forças distintas, garantem-se várias coisas: um espaço inclusivo, com a melhor das paisagens alentejanas, com lugar para pessoas que dificilmente têm oportunidades no mercado de trabalho (muito por ideias pré-concebidas, porque, a realidade é que são capazes de aprender e de executar tarefas) e ainda pizzas feitas de raiz, em forno de lanha, pintadas com ingredientes sazonais e locais — tão locais que a carta, composta por seis pizzas, colheu os ingredientes da horta do empreendimento turístico, tendo ido buscar os restantes a produtores locais.
"Biológico é bom, mas local é ainda melhor. Então se for da horta, é ouro sobre azul", diz à MAGG Ágata Mandillo, 36 anos, a cabeça por detrás da carta e a proprietária do restaurante In Bocca Al Lupo, aberto desde 2014 junto da Praça as Flores, em Lisboa. Ficam alguns exemplos das pizzas que resultam da parceria com o Craveiral Farmhouse nas imagens abaixo.
As pessoas também importam. Na pizzaria de Odemira fortalece-se a componente de consciência e sustentabilidade social, com a ligação à Associação VilacomVida, que, fazendo a ponte com a a APCO — Associação de Paralisia Cerebral de Odemira, selecionou uma pessoa para trabalhar neste projeto. Nos planos está o aumento da contratação. Com formação especifica, ficam responsáveis por tarefas de preparação, finalização ou serviço de mesa, no que se refere apenas ao menu de pizzas.
“É a primeira experiência de trabalho dele, é o primeiro contrato de trabalho dele. Tem sido muito gratificante quer para ele, quer para nós", explica à MAGG Pedro Franco e Pinto, proprietário do Craveiral Farmhouse, referindo-se a João (nome fictício), o novo funcionário do restaurante com défice cognitivo. "Queremo-lo em tarefas que sejam confortáveis para ele e para nós. A ideia é tratá-lo como um colaborador normal. Isso é o que lhe dá mais autonomia e isso é que o vai fazer feliz. Dito isto, temos de encontrar tarefas adaptadas às suas capacidades."
Que tarefas está ele a executar? "Leva as pizzas à mesa, faz a ponte entre a zona das pizzas e a cozinha. Dá também apoio na reposição de produtos e no balcão. Fora do horário da pizzaria, assegura na limpeza do espaço e na preparação da montagem das mesas."
Um turismo rural de sonho, uma pizzaria biológica e uma associação social e solidária. A história da tríade
Ágata Mandillo lembra o dia em que Pedro Franco e Pinto, cliente assíduo do seu restaurante de Lisboa, lhe lançou o desafio. Era hora do jantar, a casa estava cheia. Assim que conseguiu dar andamento ao trabalho, a portuguesa, com ascendência italiana, sentou-se com o então cliente e, em pouco tempo, já sentia o nervoso miudinho que surge sempre que as ideias são aliciantes — há sempre um risco inerente. Em cima disto, Ágata estava grávida do quarto filho.
Importante referir as raízes deste simples mas sofisticado italiano lisboeta. O In Bocca Al Lupo "nasce de um sonho de família", com ascendência italiana, a mesma que trouxe os sabores de Itália para Lisboa. Literalmente: a sua bisavó materna foi proprietária do primeiro restaurante italiano de Lisboa, o La Gondola, que abriu portas no final da década de 40, tendo fechado nos anos 50. Do lado dos pais, vem a educação macrobiótica e orgânica. Reunidos os valores herdados das duas fações, temos uma carta e um modo de funcionamento específicos, aqueles que aplicou neste restaurante de pizzas biológicas.
Leva os conceitos da ecologia e do produto muito a sério. Não se trata de ir nas modas e correntes, garante-nos Ágata. "Tivemos sorte e apanhámos esta onda, mas a verdade é que sempre fomos assim, portanto, abrindo um restaurante, só poderia ser assim", diz. "Todos os produtos de limpeza são ecológicos. Somos bastante consistentes, tanto quanto possível. Trabalhamos quase sempre diretamente com o produtor. Houve um trabalho bastante exaustivo, na preparação da abertura do restaurante, de perceber com quem é que queríamos trabalhar — não só porque queríamos a máxima qualidade, mas porque queríamos trabalhar com parceiros que fizessem sentido na forma de produzir e de estar."
Pedro Franco e Pinto também valoriza e respeita o produto. Houve um dia em que quis abrir uma pizzaria biológica, mas percebeu que em Lisboa já existia uma. "Fui lá experimentar e fiquei cliente. Gosto dos sabores, do respeito pelo produto, da sustentabilidade e as pizzas são diferentes da maioria das mais populares: fininhas, estaladiças e saborosas. É uma questão de gosto pessoal e de estar ligado à agricultura biológica. É uma questão de coerência também", recorda, sobre o In Bocca Al Luppo.
"Comungamos das mesmas preocupações", comenta Ágata. "Também o Craveiral não quer prestar serviços de qualquer maneira. Como acontece connosco, estão lá os princípios do local, do sazonal, de um certo requinte, num ambiente que é informal. É um informal que cuida do detalhe", acrescenta.
Sobre a união com a Associação VilacomVida — que Ágata considera fazer todo o sentido e um excelente complemento aos valores que tanto ela, como Pedro, defendem — foi outro feliz acaso, que resultou na visita de uma das fundadoras da associação ao empreendimento turístico, na sua fase de construção. Nesse momento, tem uma conversa com o proprietário e refere-lhe a importância da empregabilidade de pessoas com défice cognitivo. É aí que Pedro se lembra de projetos americanos de sustentabilidade social, em que pessoas nestas circunstâncias, mas funcionais, são integradas em pizzarias, como funcionários.
“O que me motiva nisto é que há uma franja de 15% de pessoas com estas características no País. Têm capacidade de resposta, mas não têm resposta do mercado de trabalho e instituições, acabando em lares aos 20 anos — o que é dramático. Tentar promover as gerações autónomas é muito interessante e útil também para as empresas", acrescenta.
E é assim que, somadas as forças de três partes distintas, nasce o Craveiral Pizzeria Com Vida In Bocca Al Lupo, um lugar onde nos mandamentos estão o respeito pelo indivíduo, o sentido de comunidade, a sustentabilidade, o amor pela natureza, gosto por comida de verdade, colhida quando e sempre que a natureza assim o permite.