Está prestes a chegar ao cinema português um novo filme com que provavelmente muitos se vão identificar. Chama-se “KM224”, de António-Pedro Vasconcelos, e retrata a separação de um casal, que decorre de forma conflituosa, afetando o bem estar de ambos e dos dois filhos. A história chega aos cinemas esta quinta-feira, 21 de abril, e apesar do drama, tem também alguns momentos divertidos que tornam o filme mais leve.
Uma das protagonistas é a atriz Ana Varela, que no filme é Cláudia, mãe de Mateus (5 anos) e Francisco (6 anos), ex-mulher de Mário (José Fidalgo), de quem se divorciou num processo marcado pelo conflito, e enquanto mulher é formal, gosta de estabilidade e é muito focada no trabalho. Cláudia será a representação de muitas Cláudias da vida real, numa história em que, como refere Ana Varela, "não há bons nem maus. Não há vilões, nem existe os bonzinhos", mas sim seres humanos que reagem de formas que nunca pensaram quando colocados à prova em situações inesperadas.
Em comum entre Cláudia e Ana Varela está o facto de ambas terem dois filhos, de já terem passado por um divórcio e de gostarem de alguma estabilidade. Contudo, na vida real Ana Varela consegue ser mais descontraída em geral — e livrar-se das dores nas costas que toda a tensão provoca em Cláudia —, exceto no que diz respeito à sustentabilidade.
A atriz é atenta ao Planeta e leva as práticas do dia a dia para o trabalho, meio no qual tenta incutir coisas tão simples como a reciclagem. A preocupação de Ana Varela com um futuro melhor levou-a ainda a criar um blogue, o Green Little Steps, no qual partilha dicas sobre pequenos passos para um mundo mais verde, tais como fazer compostagem em casa, ter um armário consciente ou evitar o plástico descartável.
Apesar desta paixão, a representação é mais forte para a atriz e a razão pela qual junta ao currículo produções de sucesso. A última foi a telenovela “Amar Demais”, da TVI, na qual foi protagonista, já depois de ter participado em três filmes, entre eles o “O Leão da Estrela” (2015), de Leonel Vieira.
O seu quarto filme, “KM224”, chega esta quinta-feira, 21 de abril, aos cinemas, e foi precisamente um dos temas da entrevista com Ana Varela. O papel da sustentabilidade na produção artística e o futuro da carreira foram também assuntos que fizeram soltar risos na atriz nascida no Ribatejo e que dificilmente arranca de Portugal para "escalar" como atriz no estrangeiro.
Com que papel surge o “KM224”? Vem desafiar as pessoas a refletir?
O “KM224” é um drama familiar. Fala sobre um casal que se está a divorciar e de tudo o que faz parte de um divórcio, que normalmente não acontece a bem. É uma separação até abrupta e marcante para cada um dos elementos, mas que não é só o casal que passa por esse fim de ciclo. São também os filhos, neste caso envolvidos no processo. É um filme que nos mostra até onde conseguimos ir com uma pessoa que já amámos, com quem já partilhámos uma casa, uma família, uma vida, uma cama e quão maus podemos tornar-nos uns para os outros quando chegamos a um fim de ciclo. E como às vezes não temos noção das consequências que isso tem no outro, às vezes nem em nós próprios, e nos filhos. Então acho que é um filme com que o público se vai identificar muito facilmente, porque muitos de nós hoje em dia já passámos por uma separação, ou seguimos de perto uma separação de amigos, etc, ou somos filhos de pais separados, então todas as rotinas e acontecimentos ao longo do filme são de uma capacidade de auto identificação gigante. E, para mim, quanto mais te identificas com o conteúdo, mais ficas ligada a ele, mais toca no teu âmago. Portanto, este filme leva-nos a questionar isso: até onde é que vamos e qual é que é o limite no trato com o ser humano, com uma pessoa que já foi tão importante na nossa vida.
A Ana passou por dois divórcios e também tem duas filhas, à semelhança do filme. De alguma forma reviveu esses momentos ao fazer este novo filme?
Claro que sim. Nós, enquanto atores, usamos muito a nossa experiência. Não quer dizer que as personagens tomam exatamente as opções que tomámos na nossa vida, mas o ambiente e a energia da separação são os mesmos. Acabamos não só por usar as nossas experiências, como aquelas à nossa volta, para dar talvez um bocadinho mais de referência, experiência e enquadramento ao personagem. E é impossível não estar muito ligado ao projeto na medida em que passei pela mesma situação. Portanto, sim. Aliás. É um assunto tão fácil de relacionar comigo própria, que, durante o processo de criação, apresentei sugestões ao realizador para enriquecer as cenas ou pintá-las um bocadinho mais na minha experiência ou dar umas nuances diferentes.
E tem agora uma outra perceção ou aprendeu alguma coisa?
Realmente não é bonito e estou a revisitar. Aquela energia de tensão, de rigidez, de cada um a puxar para o seu lado, a achar que está a fazer o melhor, em discussões à frente das crianças. Não é uma energia bonita. Aprendi várias coisas na minha primeira separação, as quais não repeti na segunda e tentei ir ao cru da experiência. Porque a Cláudia e o Mário estão a viver muito intensamente esta separação. Cada um tem a sua versão da história. E aqui também é muito importante — e o António-Pedro é o grande responsável por esta visão bilateral da história — que cada um vai ter sempre a sua versão daquela história.
E na versão das suas histórias, cada um está a fazer o melhor que pode e a defender a sua causa. O que o filme nos coloca a pensar é: será que neste caso o importante é defender a sua causa, estando nós magoados? O importante é defender e consequentemente acusar o outro? O importante aqui é resolver e aceitar este fim de ciclo em amorosidade e compaixão, tendo noção de que não é só o casal que se está a desfazer, mas toda a estrutura familiar está a modificar-se? E ter também uma noção, que é também uma das frases do filme, que aquele homem e aquela mulher vão estar ligados para sempre. Porque continuam a ser os pais do Francisco e do Mateus.
"Uma das frases também do filme, que ficou para mim e vai ficar para toda a vida, é que 'todos nós somos monstros na medida dos nossos medos'"
Não sei qual é o desfecho da história, mas dá para entender no fim que é possível acabar a bem, apesar de todas as discordâncias?
Acho que é isso que o filme procura. Porque todos nós sabemos que o ideal é resolver a bem para todas as partes, mas a verdade é que no calor e com as feridas muito grandes numa separação, é difícil fazer isso. O que o filme nos propõe é que ponhamos isso de lado e ponderemos sobre o que é fundamental. Além da frase “ele vai ser para sempre o pai dos teus filhos", dizia-me o meu advogado que está a tratar do processo litigioso, uma das frases também do filme, que ficou para mim e vai ficar para toda a vida, é que “todos nós somos monstros na medida dos nossos medos”.
É uma frase bastante forte…
É. E realmente é muito fácil apontar o dedo ao outro ou acusá-lo, mas, muitas vezes, em muitos dos comportamentos que achamos monstruosos, o que está por detrás é um medo. E o medo tem de ser tratado com amor e compaixão não só pelo outro, mas pela família que tivemos e pelos filhos que ainda fazem parte e estão a crescer, a aprender e a observar tudo o que os rodeia.
Hoje, que já passou por isso e terá ultrapassado, que conselho daria à personagem Cláudia, que no filme não está tao em paz a lidar com a situação?
É que realmente não é preciso levar tudo tão a peito. Ou que tudo o que acontece não é obrigatoriamente um ataque a si mesmo. Ter um bocadinho mais de compaixão pelo lugar do outro. Porque na realidade o outro sou eu, no sentido de que somos todos projeções uns dos outros e andamos neste jogo que acaba por nos ferir bastante. Acho que também um bocadinho mais de aceitação. Claro que o filme também está muito bem estruturado e não é só uma questão de querer ser a boa ou a má da fita. Neste filme não há bons nem maus. Não há vilões, nem existem os bonzinhos. O que acontece aqui é que cada personagem, e por isso é que o argumento é tão rico, está mesmo a fazer o que ela acha que é o correto. Ela está aqui num dilema gigante. Ela não só acabou de se separar, como recebeu uma proposta de trabalho fora do país e tem um dilema gigante entre levar os filhos ou deixá-los com o pai. Tudo dilemas que dificultam a resolução do conflito. Mas o argumento é exatamente isso: como é que a personagem vai reagir aos vários conflitos que surgem. É aí que vemos o caráter, as feridas, os problemas da personagem. Então o filme é isso: ver o dia a dia de um casal que se está a separar, que implicâncias e como é que dói em cada um deles e como é que os miúdos vivem essa separação.
E de certo modo o filme diz-nos como proteger os filhos?
Mostra com exemplos claros como é que os exemplos em casa moldam as experiências deles na escola. Quando somos espetadores, assistirmos ao que acontece aos nossos filhos — porque estamos a ver os filhos da Cláudia e do Mário, mas como espetadores estamos a ver os nossos — no dia a dia, na escola, por causa do que estão a assistir em casa, não é bonito. É um estalo na cara de luva branca e em que realmente somos obrigados a pensar. Porque estamos a ver espelhado naquele ecrã as consequências dos nossos atos.
É um filme que custa a digerir?
Não acho que seja um filme pesado. Pode custar mais ou menos a digerir consoante te revejas nele. Eu já não consigo ter uma visão assim tão afastada do filme, mas as pessoas que já viram (em antestreia), todas me disseram que ficaram muito a pensar. E é isso a que nos propomos quando contamos histórias. Portanto, acho que nesse ponto a missão vai estar cumprida. E o filme vai ter muitos momentos divertidos a contrastar com este drama todo.
Nesse ponto, como é que foi aqui trabalhar com o Gonçalo e o Sebastião?
O Sebastião é o primeiro projeto dele e o Gonçalo já tinha feito algumas participações em novelas e publicidade. Eles são muito divertidos, muito espontâneos, mas têm muita energia também. O facto de ser mãe de duas ajudou-me muito a trabalhar com eles. Ficámos muito unidos. O Sebastião recebia-me todos os dias com um abraço e um “bom dia mãe" e estamos todos também um bocadinho já com saudades uns dos outros.
"A arte é muito mais do que entretenimento"
Foi difícil para si fazer esta personagem formal, rígida e que gosta muito de estabilidade, quando a Ana aparenta ser muito livre e descontraída?
Eu também tenho o meu quê de gostar de estabilidade, não fosse eu uma taurina (risos). Mas efetivamente esta rigidez toda até me provocava dores nas costas de tanta tensão que ela vivia todos os dias.
Qual é o mundo que mais a fascina: das novelas, cinema ou teatro?
São todos eles. É poder contar histórias independentemente do meio, do sitio onde é exibido: se é um ecrã pequenino ou maior, ou se é um palco. Na realidade, o que me fascina é o poder de dar vida a personagens que contam uma história sobre a qual o público se identifica, onde se revê, que o leva a questionar-se sobre a sua vida, os seus comportamentos, sobre as suas filosofias de vida e, quem sabe, até a transformar-se e evoluir. Ou não. Ou só ter um momento de entretenimento. Se bem que acho que a arte é muito mais do que entretenimento.
"A sustentabilidade e a arte podem estar ligadas e uma pode ser usada como ferramenta da outra"
Entrando aqui numa outra área. Está muito ligada à sustentabilidade. Acha que tem lugar no meio de produção artística?
Claro que sim. Aliás, deve existir e normalmente tento ser uma alavanca nesse sentido. Há produtoras com as quais já trabalhei e já conseguimos mudanças muito interessantes. Por exemplo, lembro-me que quando iniciei a novela “Amar Demais”, que protagonizei na TVI, até aí a Plural não fazia a reciclagem sequer. Aproveitei o ano todo em que estive lá a gravar para plantar essa semente. E no ano seguinte, numa parceria com a câmara municipal de Loures, conseguimos pôr a Plural a reciclar, finalmente, e foi uma grande conquista.
Apresento sempre uma lista de sugestões para tomar um bocadinho mais de consciência sobre os hábitos que estão implementados e tentar fazer algumas mudanças. Já há algumas melhorias. Lembro-me, por exemplo, o facto de o guarda roupa ser muito mais reutilizado. Há um banco de guarda roupa onde as produções vão buscar as peças que fazem mais sentido aos seus produtos, em vez de estarem sempre a comprar. Porque, normalmente, como são projetos que não têm um orçamento norte americano, digamos assim, vão comprar a lojas de fast fashion, portanto, é um ciclo gigante de não consciência na utilização, na compra e no descarte. E o facto de reutilizar é também uma outra forma de consciência.
A Ana é vegan. Para si é fácil manter o seu regime alimentar entre gravações?
Nem sempre é fácil. O que tento sempre fazer é avisar as produções desta minha restrição alimentar. Em alguns casos não há nada a fazer e quando isso acontece levo de casa a minha marmita. A gravar “Amar Demais”, lembro-me, por exemplo, que veio a COVID-19 e éramos a primeira produção de sempre a lidar com um vírus desconhecido. Quando retomámos as refeições, no refeitório da Plural era tudo servido em unidoses, envolvidas em plástico. E eu, como é óbvio, não ia participar. Então comuniquei o descontentamento em relação à medida e passei a levar a minha marmita todos os dias.
Mais pessoas seguiram?
Sim, várias pessoas levavam a marmita. Também porque cada vez há mais pessoas com outros regimes alimentares e ainda bem. E os refeitórios, se calhar, ainda não acompanharam muito estas mudanças, que acho que estão a acontecer de modo generalizado na alimentação da população. Portanto, as minhas posições de comunicar o meu descontentamento, não participar e eu própria tomar outros caminhos alternativos, também acho que acabam por, pelo menos, levar as pessoas a perguntar: “Porque é que ela está a fazer isto?”. Acho que cada vez que isso acontece é também uma oportunidade minha para passar uma mensagem.
Há algo mais que possa ainda ser feito?
Há muita coisa. E há outra potencialidade: além de diminuir a pegada e o impacto da produção artística, falando em termos de produção, o meio artístico é um ótimo meio para passar esta mensagem ecológica. Ou colocando uma personagem que vive e defende esta causa, como, por exemplo, fez a Maria João Costa em “Amar Demais”, ou pondo nas personagens hábitos mais responsáveis. Portanto, sim. Acho que a sustentabilidade e a arte podem estar ligadas e uma pode ser usada como ferramenta da outra e vice versa.
Gostava de fazer uma personagem que tivesse esse papel de consciencialização?
Normalmente, interessam-me mais as personagens que estão mais longe de mim. Numa perspetiva de desafio e experimentação. Mas reconheço que uma personagem com preocupações ambientais é importante. E ponderaria fazer uma personagem com essa ideologia.
Tem o blogue Green Little Steps. Alguma vez considerou afastar-se da profissão como atriz para dedicar-se a algo mais sério na área da sustentabilidade?
Não! Gosto muito do que faço. Não consigo. Não dá (risos). E uma coisa não impede a outra, muito pelo contrário. Até acho que a minha visibilidade enquanto atriz acaba por dar-me a oportunidade de chegar a mais pessoas. Não acho que nem a Ana ecologista, nem a Ana atriz ganhavam mais aniquilando uma delas.
Percebendo que vai continuar a ser atriz, além do nacional, o estrangeiro atrai-a ou nem por isso?
Essa é sempre uma pergunta que não é respondida de ânimo leve. Eu gosto muito de contar histórias na nossa língua. Acha-a linda, maravilhosa, e acho as nossas histórias portuguesas riquíssimas e ainda existem tantas por contar. Acho que a minha principal preferência será sempre interpretar na minha língua mãe. Já fiz algumas experiências noutras línguas, aliás, neste filme falo espanhol, e são sempre interessantes e diferentes porque cada uma tem uma energia e passa a mensagem de uma forma diferente. No entanto, já fiz alguns projetos lá para fora e ponderaria sempre. Não é algo nem que eu persiga loucamente, nem que eu descarte na totalidade.
Se surgir uma oportunidade…
Se surgir, e muitas vezes faço self tapes (audições) para projetos internacionais, se voltar a surgir uma oportunidade, claro que sim, não vejo porque não. No entanto, não é o meu maior objetivo. Não vejo a carreira como uma escalada no sentido em que há mais coisas para alcançar. O que me move aqui é muito a paixão e a oportunidade de poder fazê-lo. Ou seja, se calhar há pessoas que têm como objetivo ganhar isto ou aquilo, fazer este projeto ou aquele. Eu gosto tanto do que faço, que a possibilidade de o poder fazer — a contar boas histórias, sim, sim dúvida, escolher bons projetos, bons argumentos, personagens que me enriqueçam, que me alimentem e tragam mais, esta aprendizagem constante que é experimentar — é o que me move. É poder continuar a fazê-lo, cada vez melhor, porque há muito para aprender e nós atores somos insatisfeitos por natureza, pelo menos eu sou, e queremos sempre fazer melhor, diferente, de uma forma que toque mais o público.
Ainda assim, não tem nada de que gostasse de experimentar de seguida?
Não sei. Esta Cláudia não é uma boazinha, nem vilã. Por acaso tenho feito mais boazinhas do que vilãs. Já há algum tempo que não faço assim uma antagonista e se calhar agora faria de uma forma completamente diferente dadas todas as experiências que já tive na área. Porque não? Adoro projetos mais desafiantes do ponto de vista físico. Não se faz notar tanto em Portugal, mas já fiz alguns e também sou completamente apaixonada esse tipo de projetos.
Seria mais do ponto de vista radical ou algo policial?
Policial. Sou consumidora de policiais. Lutas cénicas, tudo. Esse tipo de projeto alimenta-me imenso. Que nada nos defina. Não sou uma só coisa. Daí este meu desejo de experimentar em diferentes áreas. Quero projetos que me apaixonem, que seja feliz enquanto os faço, que possa contribuir e inspirar os outros. Isso para mim é tudo o que peço ao universo. "Universo, estás a ouvir-me?” (risos).