"Chegamos, abrem a porta e entregamos a nossa filha no colo de uma pessoa que vimos duas ou três vezes na vida, no melhor cenário. No pior, é uma total estranha. A porta fecha-se e viramos costas", conta Ana Pinheiro, 37 anos, à MAGG, sobre o primeiro dia de creche de Laura, a filha de ano e meio, esta segunda-feira, 6 de setembro.
Casos como o de Ana e Laura repetem-se desde o ano letivo passado, em setembro de 2020, onde por força das contingências da pandemia, as creches e jardins de infância foram obrigadas a readaptar-se. Para além do uso da máscara por parte dos adultos, incluindo educadoras e auxiliares, a grande diferença é que os pais viram-se impedidos a entrar em recinto escolar. Resultado? Bebés e crianças passaram a ser entregues à porta dos estabelecimentos de ensino, muitas vezes sendo esse o primeiro contacto com a pessoa que os recebe.
As regras, que se repetem este ano letivo (a abertura da maioria das creches aconteceu na quarta-feira, 1), geraram polémica e desagrado por parte de muitos pais. Tanto que, em 2020, surgiu o movimento Assim Não é Escola, um grupo criado a pensar no bem-estar emocional das crianças no regresso às aulas.
"Muitas pessoas entraram em contacto connosco, assinaram a petição, tivemos instituições a interessarem-se pelo movimento. Mas não conseguimos qualquer consideração da parte da Direção-Geral da Saúde, e é claro que isso nos desanimou", relata Dulce Cruz, mãe, uma das vozes do movimento, criadora de conteúdos na página de Instagram @erva_dulce e formada na pedagogia Pikler.
365 dias depois, o cenário que motivou a criação do movimento repete-se, com a agravante de que, ao contrário do que sucedia em 2020, Portugal já possui grande parte da população vacinada (pelo menos com a primeira dose) e o País encontra-se em processo de desconfinamento, com muitos dos setores a voltarem ao seu funcionamento habitual. Mas enquanto os concertos e os restaurantes voltam a respirar de alívio, as regras nas escolas pouco mudam.
"Da parte do governo, já se está a perceber que não querem aliviar as crianças nas escolas. Apesar de vários países o estarem a fazer, são em especial aqueles em que os governos tinham imposto restrições com mais relutância, como Inglaterra, Suíça ou Holanda", salienta Dulce Cruz. "O relatório do ECDC — European Centre for Disease Prevention and Control para o novo ano letivo também não ajudou nada, porque deu o sinal para manter as restrições."
A situação agrava-se com bebés nascidos no meio da pandemia
Deixar um filho na escola pela primeira vez não é fácil. Afinal, grande parte das crianças ficam a chorar, perdidas, e até podem sentir que os pais as estão a abandonar, caso se tratem de miúdos mais novos, sem maturidade para entender a situação. Mas o cenário só piora com os "bebés de pandemia", vulgo crianças nascidas a partir de 2020, que chegaram a um mundo muito diferente do que conhecíamos até à data, com máscaras, zero contactos sociais e com famílias confinadas dentro de quatro paredes.
"Saí da escola a tremer, com a sensação de que entreguei a minha filha a uma pessoa que praticamente nunca tinha visto. Com a agravante de que a expus a uma situação inédita: antes da pandemia, as crianças ficavam com os avós ou em casa de tios enquanto os pais saiam, por exemplo. No caso da Laura, devido às contingências da pandemia, nunca a deixámos num sítio fora de casa sem nós, pais. Nunca ficou em casa de avós ou foi ao parque com os tios. Sim, já tinha ficado, muito pontualmente, em nossa casa com outras pessoas, mas sempre na sua zona de conforto. Em 17 meses de vida, foi a primeira vez que a mãe a deixou num local e se foi embora. E isso foi um choque, para ambas", relata Ana Pinheiro.
No caso de Ana, a mãe de Laura reconforta-se com a ideia de que sabe que está a fazer o melhor para a filha — "ela precisa de estar com outras crianças, de socializar", mas não consegue desligar-se da ideia de que, caso as regras fossem outras, como ter oportunidade de deixar a filha na sala, o primeiro embate seria menos agressivo.
"Acho que, acima de tudo, seria mais tranquilo para nós, pais, que deixamos um filho pela primeira vez numa creche, porque podíamos ver melhor como é que ela fica na sala dela, como interage com as outras crianças, nem que fosse por dois minutos", diz Ana Pinheiro.
"Assim, não temos acesso visual a nada que diga respeito à forma de estar dela num espaço novo, a não ser através das fotos que vão enviando durante o dia. Quero acreditar que o facto de a transição ser rápida, e de nós já virmos a explicar pelo caminho que a vamos deixar mas vamos buscar daqui a pouco, a deixe tranquila e seja suficiente para que não se sinta simplesmente 'depositada'. Mas não deixa de ser um grande impacto para nós, que nestes primeiros dias saímos dali meio a tremer, e acredito que para ela também, que não percebe muito bem porque é que de repente os pais desaparecem."
"Não podemos forçar a vinculação, nem vincular à força"
A grande questão da adaptação escolar de crianças em idade de creche tem que ver com o vínculo, algo que tem de ser construído com as educadoras dos estabelecimentos de ensino, mas que é algo que não deve ser forçado. E para fomentar esse vínculo, há que existir uma "transferência da figura de referência da criança, seja a mãe, o pai ou o cuidador, para alguém dentro da creche, que será o cuidador principal nesse local", explica Dulce Cruz.
"Não podemos forçar a vinculação, nem vincular à força, logo é muito importante que a figura de referência do bebé ou da criança esteja presente durante o período de adaptação ate ao momento que a vinculação foi feita com outro adulto dentro da creche", salienta Dulce à MAGG, que recorda os testemunhos angustiados que tem recebido de muitos pais.
"Aquilo a que temos assistido este ano, sendo uma situação que parece não ter grande margem de negociação, é pais a terem de entregar bebés e crianças pequenas à porta das instalações, sem poderem entrar lá dentro, sem poderem fazer uma transição por mínima que seja. As entidades e as instituições também parecem não estar a tentar encontrar alternativas que permitam às crianças irem conhecendo gradualmente as novas figuras de referência enquanto ainda estão em casa com os pais, algo que podia ser feito. Já tive testemunhos de escolas que fazem encontros no parque ainda antes de começar o ano letivo, que fazem um dia aberto, contactos virtuais com vídeos e fotos", diz a percursora do movimento Assim Não é Escola, que salienta que este processo de adaptação não é exclusivo das crianças. "Os pais também se estão a adaptar."
O impacto para pais e filhos
"Deixar os filhos à porta da creche, muitos deles a chorar, com alguém que nunca viram é um momento de angústia e que está a dificultar a vida a muitas famílias e a deixar algumas marcas nas crianças a nível emocional, a meu ver e do movimento, desnecessariamente", acrescenta Dulce Cruz, que defende a criação de soluções alternativas, tendo em conta as limitações de infraestruturas e de equipas.
No entanto, a criadora da página Erva Dulce salienta que tem de se lutar por uma adaptação mais pacífica das crianças, para que estas possam construir relações de segurança. Caso contrário, podem existir contrariedades.
"A nível psicológico, o sinal que a criança dá de ter necessidade de ter a figura de referência e de se sentir segura é o choro. Passado algum tempo, acaba por deixar de fazer esse pedido, dado que não o vê respondido, mas sem figura de referência vai ficar em sistema de alerta muito mais tempo do que seria saudável se a tivesse presente. É essa excessiva permanência em sentido de alerta que pode vir a trazer danos psicológicos a nível das relações, da segurança pessoal, da saúde mental e do bem-estar da criança", alerta Dulce Cruz, que salienta também que, no contexto do movimento, lhe têm chegado relatos de muito problemas relacionados com a má adaptação escolar. "Claro que estamos a relacionar isso com estas restrições."
"A ansiedade de separação vai existir sempre"
Apesar da grande percentagem da população portuguesa vacinada, Marta Ezequiel, pediatra, explica à MAGG que as medidas das escolas continuam a fazer sentido na ótica da transmissão do vírus. "A vacinação não permite que a doença seja transmitida, previne sim a doença grave. Sendo o nosso objetivo com as medidas de contingência, como deixar as crianças à porta, reduzir a transmissão do vírus, nessa ótica, continuam a fazer sentido."
No entanto, a especialista salienta que algumas escolas com espaço exterior "têm facilitado a abordagem ao permitir que os pais ajudam na integração, minimizando assim um pouco a ansiedade de separação". Mas, no entender de Marta Ezequiel, essa existirá sempre.
"A ansiedade de separação vai existir sempre, e tem um bocadinho que ver com a noção de as crianças perceberem que os pais se vão ausentar. A partir dos 8 meses, as crianças já se lembram dos pais sem estes estarem presentes por isso, quando estes se vão embora, é natural que fiquem assustadas ou a achar que foram abandonadas. Daí a importância da preparação", relata a pediatra.
Explicar, caso as crianças entendam, que os pais voltam para as irem buscar, tentar introduzir o tema da escola em casa ou mesmo deixar os filhos em casa de avós ou tios, por curtos períodos de tempo, para estas se habituarem que os pais vão embora mas voltam, são algumas das propostas da pediatra, que salienta a importância de os adultos não as deixarem sem uma explicação. "Isso deixa os miúdos desconfiados e faz com que deixem de confiar nos pais."
A pediatra não descarta a dificuldade acrescida da adaptação escolar dos "bebés de pandemia".
"São crianças muito ligadas aos pais, logo é ainda mais difícil e mais marcante", diz Marta Ezequiel, que ressalva que, no seu entender, a questão do vínculo com as educadoras não se coloca. "Estes profissionais já tiveram tempo de se adaptar, já tiveram de perceber estratégias para continuar a cativar as crianças", conclui.