A notícia conta-se e enquadra-se em poucas palavras: o Tribunal da Relação de Lisboa anulou uma decisão do Tribunal de Família e Menores de Cascais, que havia determinado que uma criança de 1 ano poderia pernoitar em casa do pai, em fins de semanas alternados, após a separação da mãe. Só que para a Relação, a decisão não foi legal, já que a criança não pode ser separada da mãe porque ainda está a ser amamentada. Para a juíza que reverteu a decisão, "uma coisa é amamentar, outra é tirar o leite para congelar para ser dado mais tarde". Disse ainda a juíza da Relação que "o envolvimento emocional do ato de amamentar é fortemente vinculativo entre mãe e filha, não se devendo privar a menor dessa ligação", pode ler-se na sentença, noticiada esta segunda-feira, 26 de dezembro, pelo "Jornal de Notícias".

Neste tipo de situações, é sempre preferível isolar o caso concreto do princípio geral. Não conheço este caso, não faço ideia se a mãe é uma excelente pessoa ou uma delinquente, não sei se o pai é um abusador ou um homem impecável, não sei se se separaram a bem ou a mal, e honestamente nada disso interessa. Importa, sim, falar do princípio geral da decisão que é o de impedir um pai de dormir com a sua filha porque para o Tribunal da Relação a criança de 1 ano não pode ser privada do momento da amamentação, porque esse momento cria um "envolvimento emocional" que é "fortemente vinculativo" entre a mãe e a filha. 

Há tantas coisas que se podem dizer sobre isto que o difícil é encontrar a ponta onde se quer pegar primeiro.

Começo com uma pergunta: não se pode privar a criança de um momento que cria um envolvimento emocional com a mãe, mas pode privar-se essa mesma criança de um momento emocional que cria e desenvolve um vínculo que também é "fortemente vinculativo" com o pai, como é o ato de dormirem juntos?

Ponto prévio: sou pai, sou divorciado, e tenho guarda partilhada dos meus filhos. Desde que me separei que eles passam uma semana inteira comigo, dormem em minha casa, e eu sei o que significa dormir com eles, sobretudo quando são pequenos. Lembro-me de nas primeiras semanas em que estava numa casa diferente ter dormido, várias vezes, com os dois mais pequenos na mesma cama. E quem é pai (e mãe) sabe o que significa para os miúdos ficarem na cama dos pais, ou só do pai, ou só da mãe. São, para eles, momentos de segurança, de paz, de tranquilidade, que, claro, criam um vínculo, desenvolvem esse vínculo, aumentam o amor.

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Claro que nem é preciso falar destes momentos — que podem ser exceção — em que os miúdos dormem na cama com o pai ou com a mãe. Podemos referir-nos apenas aos momentos do dia a dia normal de uma família de pais separados. Uma criança de 1 ano pode dormir a noite toda como pode acordar três ou quatro vezes numa noite. E cada ida à cama do bebé implica um ato que pode ser de amor, de tranquilização (também pode ser de stresse e desespero, verdade). Muitas vezes, é isso que as crianças procuram quando acordam a meio da noite e chamam o pai ou a mãe. Querem segurança, querem saber que não foram abandonados, que está ali alguém para eles, e esse alguém são os protetores dele, o pai ou a mãe. E quando sentem a chegada do pai ou da mãe, tranquilizam-se, muitas vezes adormecem em segundos. Isso gera amor, laços, cumplicidade.

Privar um pai disto, e entregar esta competência, estes momentos, unicamente à mãe, por um período indefinido de tempo, é um ato que viola os mais elementares direitos de um homem enquanto pai. É entender o pai como um apêndice educativo e emocional na vida de uma criança, o que não faz qualquer sentido numa sociedade que se quer igualitária, em que o papel da mãe e do pai se equivalem (ou pelo menos é para isso que se quer caminhar) em todos os aspetos, e que a distribuição de tarefas educativas deve ser totalmente equilibrada.

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Quando uma juíza entende que não se pode separar uma mãe de uma filha de 1 ano porque ela a está a amamentar, e não se pode privar a criança desse "envolvimento emocional", está ao mesmo tempo a dizer que as mães que optam por não amamentar não se preocupam com esse mesmo envolvimento emocional.

Uma juíza que decide desta forma está a julgar todas as mães que quatro ou cinco meses após terem tido o bebé regressam ao trabalho e não podem amamentar as crianças, dizendo-lhes que estão a privar os filhos de terem um "envolvimento emocional" mais forte com elas.

Ao decidir assim, a juíza está também a dizer aos pais que optam por tirar licença de paternidade e ficar em casa com os filhos que por muito que tentem, por muito que alimentem os bebés com um biberão, por muito amor que possam dar em todos os momentos aos filhos, não conseguirão criar um "envolvimento emocional" que é "fortemente vinculativo" com as crianças, porque isso é algo que só se adquire através do ato de amamentar.

Tudo isto é obtuso, discriminatório, atentatório contra o caminho pela igualdade de direitos e deveres parentais que se tem tentado trilhar nas últimas duas décadas, sobretudo.

Esta decisão da juíza do Tribunal da Relação, que poderá ter efeitos de jurisprudência, ou seja, que de futuro pode servir de base, histórico judicial, para novos casos do género, é uma anormalidade por uma outra razão: não está limitada no tempo. Ou seja, e falando deste caso concreto, esta bebé de 1 ano continua a ser amamentada. E se a mãe for uma daquelas senhoras que acham que os filhos devem ser amamentados até terem dentes? O pai vai ser privado de dormir com a filha até ela ter 5, 6, 7 anos? Qual é o limite tido como razoável? É que há mães que amamentam até aos 4 meses, outras até aos 6, outras até 1 ano, mas outras fazem-no até aos 5, 6 ou 7 anos. E se for o caso for este último, como é?

Ainda de acordo com esta decisão da juíza da Relação, nem o congelamento de leite (que poderia ser dado posteriormente pelo pai) nem a mãe deslocar-se a casa do pai (já que vivem a 50 km de distância) são opções viáveis. O que é viável, sim, é a criança nunca dormir em casa do pai enquanto estiver a ser amamentada. Outra pergunta: mas uma criança com um ano (que já come sopas, fruta) tem de ser obrigatoriamente amamentada no período da noite? Porque é que a mãe não alimenta a criança com leite materno durante o dia e lhe dá outro tipo de refeição durante a noite ou permite que o pai possa dar-lhe leite materno congelado? Dar o leite pelo biberão não cria relação entre pai e filhos?

Eu não sei se a juíza que tomou esta decisão tem filhos ou não, mas de uma coisa tenho a certeza: ela nunca foi pai, como eu sou. E nunca tendo sido pai, não sabe qual é a sensação de ter um filho nos braços e poder dar-lhe de comer, com um biberão. A senhora doutora juíza até porque argumentar que sabe, porque deu de mamar e também deu leite através de um biberão, certo, mas o que ela não sabe é o que sente um pai ao fazê-lo, sendo essa a única forma de alimentar o filho, já que o pai não pode, de facto, amamentar. E se não sabe, nunca poderá dizer que isso não cria um "vínculo emocional" entre pai e filha. Simplesmente, não pode.

Esta decisão da juíza tem outro lado absolutamente especulativo e perigoso: o de considerar que o leite adaptado não é a melhor solução para as crianças. Ela até pode defender isto, tudo certo, o que ela não pode é deixar no ar a ideia de que não amamentar uma criança com leite materno é estar a prejudicá-la, de alguma forma, como se o leite de fórmula fosse prejudicial para a criança. Não é. Não estou a querer dizer que é igual, que tem as mesmas vantagens, não quero entrar nessa discussão, e não é esse o tema desta crónica. O que estou a querer dizer é que não compete a uma juíza entrar por esses caminhos, tomar partidos nessas matérias, ainda que usando subtexto. É intelectualmente pouco honesto e é uma manifestação de uma tomada de posição que deve ser pessoal, individual.
É fundamental que entendamos que uma decisão que retira direitos ao pai, ao homem, não está a fortalecer a mulher, a mãe. Pelo contrário. Está a passar o sinal de que o papel da mulher, da mãe, é o de tomar conta da criança e o papel do pai é o de ir trabalhar e arranjar sustento. O papel da mãe é o de amar os filhos, o papel do pai é o de os sustentar.
Estamos a entrar em 2023, mas para muitas pessoas da nossa Justiça parece que andamos em 1923.