Por mais defeitos que queiramos apontar à sociedade atual, uma coisa temos que reconhecer: somos consistentes. Enquanto as bombas caem nos países árabes, encolhemos os ombros e dizemos que não temos nada que ver com isso — eles que se matem todos uns aos outros, não é problema nosso. Mas porque nunca se sabe o que pode acontecer, e é sempre melhor prevenir do que remediar, passamos para o outro lado da rua quando vemos um árabe ou uma mulher de burca. Não é que sejam todos bombistas, longe de nós pensar tal coisa. Mas mais vale prevenir do que remediar, não é verdade?

Chegou o coronavírus, e como a coisa surgiu lá na China, voltamos a encolher os ombros. Sim, é assustador o número de mortos, mas enquanto permanecer por lá, não é problema nosso. Também sejamos sinceros, eles são esquisitos e fartam-se de comer coisas estranhos, tipo morcegos. Não é que merecessem a doença por terem uma cultura estranha — mais uma vez, longe de nós pensar tal coisa —, mas para já é um problema deles.

Editorial. O vosso ano novo não foi assim tão bom
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Ainda assim, e porque, lá está, é melhor prevenir do que remediar, por agora é melhor deixar de ir a lojas de chineses, de fazer compras no eBay e de comer comida chinesa. Ah, e se vir um chinês na rua? Bem, é melhor passar para o outro lado. Não é por mal, é apenas uma questão de segurança.

Ah, merda. O coronavírus está na Europa. A dois passos de nossa casa, em Itália, há 12 mortos confirmados e mais de 400 infectados. E agora? Bem, para começar é abastecer a despensa, ir à caça de máscaras e desinfetantes e evitar sítios com muita gente. Problema neste último ponto: é preciso ir trabalhar, e o trabalho fica na rua. Pior, para lá chegar é preciso ir de metro, comboio ou autocarro. E mesmo que o trajeto seja feito em carro particular, continuamos a ter que ir às compras — as 20 latas de feijão podem não ser suficientes —, e, bolas, mais pessoas. E agora? Como é que eu fujo dos italianos? Não são árabes, nem tão pouco têm olhos em bico. Quem é que é capaz de os distinguir?

Mais de 75 anos depois da libertação de Auschwitz, atribuímos o estatuto de estrela aos sobreviventes do Holocausto. Depois de décadas de filmes, séries e livros sobre as atrocidades cometidas, deixámos de olhar para eles como os rostos que nunca podemos esquecer para que a história não se repita. Pelo contrário, eles tornaram-se heróis, como se fossem dotados de uma qualquer aura estrelar que também reconhecemos às estrelas de Hollywood. E isso é perigoso, muito perigoso.

Os sobreviventes de Auschwitz não são heróis — não mais do que todos os outros que perderam a vida, entenda-se. Eles próprios repetem-no, com a mágoa de quem passou uma vida a tentar compreender porque é que está aqui e os outros não. E muito menos são estrelas de Hollywood. Eles são, sim, o registo vivo do que o ser humano é capaz de fazer quando descrimina, quando coloca um peso absurdo no nacionalismo e na superioridade de uma raça em detrimento de outra.

"O nosso impulso primário de descriminar, de segmentar, de separar o trigo do joio, foi-se quando a Itália se tornou no país europeu com mais casos"

E nós? Nós vibramos com os documentários, filmes e séries da Segunda Guerra Mundial, dizemos coisas absurdas como "Gosto muito dessa parte da História", devoramos tudo o que são notícias sobre o assunto e compramos tudo o que são livros sobre o tema — quanto mais românticos melhor, claro, os "chatos" não interessam. Mas, nesse mesmo dia, damos um beijo aos nossos filhos e dizemos-lhe que tenham cuidado se virem um homem com um aspeto estranho no metro, para evitarem contacto com a raça ou etnia X ou Y e para irem comprar canetas à papelaria em vez da loja de chineses porque "anda para aí um vírus".

Não entendem? Não aprendemos nada. Mas agora temos um novo problema, e este penso que pelo menos nos fará refletir: o coronavírus disseminou-se pelo mundo, foi além de raças e credos e não tem um rosto de que possamos fugir. O nosso impulso primário de descriminar, de segmentar, de separar o trigo do joio, foi-se quando a Itália se tornou no país europeu com mais casos.

Não faço ideia do que é que vai acontecer daqui para a frente. O COVID-19 é, neste momento, um problema mundial. E apesar de uma taxa de mortalidade baixa, é preocupante quando sabemos que pode pôr em risco os nossos idosos, o grupo mais susceptível a esta doença. Não faço ideia de como é que as coisas se vão desenrolar, nem tenho conhecimento para fazer previsões. No entanto, preocupa-me, enerva-me e dá cabo de mim que, mais uma vez, perante um cenário de perigo, nos voltemos todos uns contra os outros. E é por isso que lanço esta pergunta: e agora? Vamos fugir dos italianos?

Antes de passar para os artigos da semana, começo a preparar as devidas despedidas com um até já. Este foi o meu último editorial na MAGG, e o meu último texto publicado num órgão de comunicação social — se será para sempre ou apenas durante uns tempos, só o futuro o dirá. Porque não faria sentido que fosse de outra forma, vou continuar a caminhar lado a lado com contadores de histórias, mas num mundo diferente daquele a que dediquei até agora toda a minha carreira. Não há espaço para saudosismos: a vida é feita de mudanças, e a adrenalina do desconhecido supera (ou deve superar) sempre o medo do inesperado.

Mas espero que fiquem com um bocadinho de mim nos próximos tempos. De cada vez que estiverem quase a cair na tentação de segmentar o mundo a preto e branco; de cada vez que refletirem sobre estes vícios intrínsecos ao ser humano (que tantas vezes perpetuamos por ausência de análise); de cada vez que disserem em voz alta uma ideia que vai contra a maioria. Foi apenas isso que tentei transmitir ao longo deste último ano, porque acredito que assim poderíamos construir um mundo melhor: que falemos. Que debatamos, que analisemos, que façamos reflexões sobre o mundo, sobre o outro, sobre nós. Que percamos tempo a fazê-lo, porque nunca será uma perda de tempo. E que lutemos, sempre, por uma sociedade mais justa. Afinal, é apenas isso que queremos oferecer um dia aos nossos filhos.

Esta semana, a jornalista Ana Luísa Bernardino traça um perfil de Laura Ferreira, o "porto seguro" de Pedro Passos Coelho. A mulher do ex-lider do PSD morreu esta segunda-feira, 24 de fevereiro, depois de uma batalha de cinco anos contra o cancro.

Rafaela Simões traz-nos a história do Santuário Animais Sem Fronteiras, um santuário animal em Setúbal para animais resgatados das ruas e de explorações. Cães, gatos, cavalos, porcos, cabras, ovelhas e, brevemente, uma vaca e o seu filhote. Todos eles encontraram um lar na quinta idealizada por Graça e Marina.

Mas há mais. Tiago brinca com a ilusão ótica e é um sucesso no Instagram. A criatividade já lhe valeu parcerias com marcas como Apple, Netflix e Levis. Falámos com ele e contamos-lhe — e mostramos-lhe — tudo. Também lhe trazemos uma lista de 20 restaurantes com preços acima da média onde vale a pena ir almoçar para aproveitar os menus executivos, dizemos-lhe quais são os 16 filmes que chegam aos cinemas nos próximos meses e que não pode perder e recordamos 6 momentos marcantes do julgamento de Harvey Weinstein.

Para ver tudo isto e muito mais, é ir ao lugar do costume. Da minha parte, só me resta despedir, não com um até para a semana, mas com um sentido até já.