Já cantava António Variações: "quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga". No caso do município de Oeiras, não é bem o corpo porque Isaltino Morais jura a pés juntos que só anda a comer salada e a beber copos de água. Digamos que é mais o povo. Até é parecido – corpo, povo, polvo à lagareiro. Lamento a vossa dieta forçada, oeirenses. Alguém anda a beber Moët & Chandon às vossas custas, e pelos vistos nem é o Isaltino. Infelizmente, também não são vocês.
Para o caso de estar perdido: a 17 de agosto, a revista "Sábado" escreveu que a Câmara Municipal de Oeiras tinha pagado, desde 2017, mais de 139 mil euros em “almoços de trabalho”. Num total de 1.441 refeições, houve muito lavagante, sapateira, lagosta, camarão-tigre, presunto pata negra, entre outras iguarias, coisas baratinhas e banais que, regra geral, todos os portugueses levam na marmita para o trabalho.
Não levam? Olhe que podiam. Pelo menos é o que pensa o presidente da Câmara Municipal de Oeiras, que encara tudo isto como alimentos baratinhos, muito baratinhos, mesmo ali a raspar o baratucho. Na primeira reação ao artigo, Isaltino Morais fez questão de sublinhar que as ostras são dos pratos mais baratos que há. Nunca tinha reparado? É porque anda obcecado com o preço do pão e do atum em conserva. As ostras são tão económicas que o governo nem precisou de as colocar no cabaz do IVA zero.
Porque é claro que ainda havia espaço para dizer mais barbaridades, a 7 de setembro, numa sessão extraordinária da Assembleia Municipal de Oeiras, Isaltino Morais veio dar uma lição sobre gastronomia e finanças.
Recomendo vivamente que veja o vídeo, pelo menos os minutos iniciais. Se não tiver paciência, não se preocupe que eu faço o resumo: somos todos otários.
É importante que perceba o seu elevado nível de trouxice, leitor. Quando vivemos um momento económico tão crítico como este, com uma inflação terrível, uma gravíssima crise na habitação, mão-de-obra jovem e qualificada a fugir daqui a sete pés e a taxa de desemprego a aumentar, é absolutamente inadmissível que um presidente de câmara diga à boca cheia que 55 euros por uma garrafa de vinho não é nada. Pior: que há quem se deslumbre como se isso fosse alguma coisa de jeito. Cinquenta e cinco euros por um vinho não é nada. Cito: “É banal”.
Repito: trouxas. Trouxas com elevados níveis de trouxice, é o que somos todos nós. E porquê? Porque é muito provável que o leitor, como eu, saiba a importância que 55 euros têm hoje na sua vida. Para mim, é o que pago todos os meses em água, luz e eletricidade – um valor que considero abusivo tendo em conta que vivo sozinha. O que deixo com cada vez mais frequência no supermercado para trazer para casa cada vez menos coisas. O que gasto de 15 em 15 dias em gasolina só para ir e vir do trabalho. O que largo numa consulta.
Cinquenta e cinco euros representam material escolar, terapia, a subscrição mensal do ginásio, a atividade extracurricular dos miúdos, as botas ou o casaco que tem mesmo de comprar para este inverno, o aspirador que avariou, o que paga todos meses de seguro de saúde. Cinquenta e cinco euros representam tanta coisa.
Mas nunca uma garrafa de vinho.
Durante cinco minutos, Isaltino Morais fez um relatado detalhado dos melhores restaurantes para comer no município de Oeiras. Como se de repente tivesse sido possuído pelo espírito da Zomato ou do "Boa Cama Boa Mesa", recomendou-nos o maravilhoso arroz de lavagante da Casa Galega, as pataniscas e peixinhos-da-horta d’A Caçoila, o Borges pelo preço-qualidade, o Chez Idriss para quem prefere comida marroquina e o Patio Antico porque, e passo a citar, “mamma mia, que comida italiana!”
E nós continuamos aqui, trouxas, repito, trouxas, porque é isso que somos todos nós enquanto continuarem a existir em Portugal pessoas que, como Isaltino Morais, tudo podem.
Hoje, a propósito de um tema completamente diferente, falava do problema de termos o copo cheio e de não o conseguirmos vazar. Quando passamos os dias, semanas, às vezes até meses ou anos, a engolir os mesmos sapos, a assistir aos mesmos filmes e a lidar com os mesmos problemas, mais tarde ou mais cedo perdemos a paciência. Um dia, basta uma gotinha muito pequena para fazer transbordar o copo.
Esta gota não é muito pequena, mas o nosso copo está muito, muito cheio. E já não há, honestamente, paciência para continuarmos a ver que é possível os políticos, grandes empresários e outros tantos privilegiados cometerem crimes, serem apanhados, fazerem pouco de toda a gente publicamente e, no final, continuarem com as suas vidas como se nada tivesse acontecido.
A quem de direito, pergunto: o que é preciso nós fazermos para pôr um ponto final nisto? Já chega de tanta injustiça. Já chega de tanta falta de justiça na justiça portuguesa.
Ainda bem que o rio de vinho que inundou as ruas de Anadia não era Pêra Manca, nem ia a caminho da casa de Isaltino. Caso contrário, era bem provável que acabasse a ser pago pela malta de Oeiras. Não seria uma conta pequena, mas, a bem da verdade, estas 1.441 faturas também não.
Até à próxima quarta-feira.
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