Nunca tive uma relação bestial com o meu corpo, como tantas e tantas outras mulheres. Não o odeio, mas também não o adoro e estou sempre a pôr-lhe defeitos, achando que devia ser mais assim aqui, mais assado ali. O problema é que o meu corpo sou eu, portanto acho que seria conveniente dar algumas tréguas a esta complicada relação interior versus exterior. É uma guerra fria on going, que acontece desde que me consciencializei de que tinha um corpo,  algures ali na puberdade. Saudades dos tempos em que um rabo era só um rabo. Vocês perceberam.

Enfim, novamente, como tantas e tantas mulheres, vivo cercada de complexos. Só para terem uma noção, não gosto de usar calças justas sem que, por cima, tenha uma camisola que me tape o rabo, porque acho sempre que é tudo demasiado e, infelizmente, no que me diz respeito a mim, não sou lá grande fã da estética Kardashian. Dava jeito ser.

A forma como eu penso em corpos está cheinha de paradoxos. Passo a vida a gritar pela aceitação, tento lutar contra a ideia das capas de revista, consigo identificar coisas belas em todo o tipo de formas, desde a estética muito alta e magra, a outras mais torneadas. Só que, pronto, lá vem a antítese. Comigo própria sou simplesmente horrível e faço exatamente aquilo que odeio que se faça:  quero ser aquilo que a genética não quis que eu fosse e não aceito que está tudo bem com aquilo que ela me deu.

Isto não significa que nos devamos resignar, atenção. Aliás, como diria uma pessoa que me é muito querida, aceitação não é desleixo. Portanto, dos meus complexos, passemos àquilo que sucedeu neste 2020. Durante dois meses estivemos fechados em casa e a única coisa que nos restou foi a comida. Não estou a exagerar, pensem lá: muitos de nós não puderam estar com as famílias, não houve encontros de amigos, não havia lojas para ir espreitar, não havia eventos culturais, não havia nada, excepto supermercados abertos. O nosso único conforto era este: bolachinas, bolinhos, batatas fritas, snacks a toda a hora, num mindset do "que se lixe o peso, já me tiraram tudo, não me tiram isto, estou aqui fechada e, portanto, bardamerda para o saudável, que ninguém me vai pôr a vista em cima."

Só que os estados de emergência findaram, reabriu-se, gradualmente, a vida e, de repente, eis que voltamos a sair à rua e a apresentar-nos à sociedade. É giro pensar na forma como a nossa cabeça funciona. Entrou o confinamento, isolámo-nos e comemos este mundo e o outro; voltamos à vida,  olhamo-nos ao espelho e pensamos: "Eish, olha lá o que é que foste fazer, sua desgraçada, toda a gente vai notar, este ano não há cá praia para ninguém."

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Não sei quanto a vocês, mas comigo está a ser mais ou menos assim. Esta ideia de começar a usar saias e de pavonear-me com roupas de verão, seja na cidade, seja ali à beira-mar, está a deixar-me ligeiramente desconfortável, como resultado da terrível conjugação que juntou um sedentarismo extremo e forçado aos hábitos de compulsão alimentar, de comer com o coração e não com a barriga.

Leram compulsão alimentar e acharam que era uma coisa muito grave, que só acontece a algumas pessoas? Eu entendo, também achava. Até que no outro dia li qualquer coisa muito pertinente sobre isto no Instagram e percebi que eu tenho episódios de compulsão alimentar, tal como toda a gente, que, em qualquer momento da vida, cede a esta coisa de comer os sentimentos. Há muitos exemplos cliché disto: enfardaram um pote de gelado, porque o coração se estilhaçou aos bocadinhos? Comeram emocionalmente. Viraram uma taça de massa porque o dia de trabalho correu para lá de mal? É comer emocionalmente. Lambuzaram-se num pote de Nutella porque está tudo péssimo? Ding, ding, ding. Resposta certa, comeram emocionalmente.

Na quarentena, foi isso que muitos de nós andámos a fazer. E por mais que se consiga definir o fenómeno, não se consegue fugir ao resultado: um consumo calórico muito acima do dispêndio energético (quase nulo nestes últimos tempos) é o que nos faz engordar. Isto é matemática muito simples. E isto vai-se agravando, quanto piores os hábitos anteriores, sem esquecer a idade, porque, acreditem, passando a barreira dos 30, o metabolismo passa a funcionar a part-time, para se reformar, sei lá, para ai aos 40, espero que não. É uma coisa muito triste, porque vemos gordura a aparecer em sítios que tínhamos por garantidos, como se aquela barriguinha lisa fosse uma característica genética absolutamente imutável. Não é, cuidem dela.

Basicamente, é por isto que estou a passar. Depois de meses a comportar-me como uma selvagem, depois de meses sem aplicar as poucas rotinas que mantinha (tenho problemas com disciplina), engordei, ao ponto de conseguir notar que engordei. Ou seja, já não é possível mascarar o acontecimento com o "são coisas da tua cabeça" ou "vê-se mesmo que estás em TPM", porque o espelho faz questão de esfregar esse facto na nossa cara.

Podia ser o suficiente para atinar, mas não foi, porque resta sempre aquela esperança de que ninguém vai notar, é daquelas coisas que só quem se vê nu é que sabe. Até que levei com duas chapadas de realidade na cara. A primeira veio da minha mãe. Enquanto me a pavoneava em mais uma divertida ida à cozinha, ela observou-me e disse: "Não podes engordar nem mais uma grama." Com um dos olhos a tremelicar, com o coração cheio de rancor, vesti a minha persona Morangos com Açúcar e respondi-lhe: "Não é uma grama, é um grama."

Sobre este comentário, podem pensar: "Ai, que horror, que insensível, isso não se diz". Mas a verdade é que, sim, às vezes precisamos de ouvir estas coisas, porque claramente há todo um problema de negação — cautela, não se ponham a dizer isso a todas as amigas e amigos que engordaram, porque engordar não tem mal, desde que haja margem de manobra para isso. Enfim, aquelas palavras do inferno trespassaram-me as entranhas, mas agora agradeço, porque alguém me tinha de dizer. Dói? Sim, bastante. Se tem resultados? Possivelmente.

No meu caso, funcionou. Mas precisei de um segundo momento: entrei, toda contente (e cheia de calor por causa da máscara), numa loja de roupa, encontrei umas calças de ganga, com aquela tonalidade e espessura perfeitas, e vim para casa toda contente, sem experimentar, até porque agora é proibido fazer isso nas lojas. Não havia problema nenhum, pensei eu, este é o meu modelo e número de sempre, está tudo certo. Até que não estava. Corta para: ó não, estão mais apertadas que o costume, não quero andar assim na rua. Com dúvidas sobre se trocava ou devolvia, decidi-me por outra opção. Lancei um desafio a mim mesma: vou passar a ser uma pessoa adulta, que faz escolhas alimentares equilibradas e vou ficar ótima nelas daqui a pouco tempo. Entretanto, mudei de ideias, e estou com elas vestidas, porque quanto mais as usar, mais elas alargam. Eu disse que era indisciplinada.

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Mas, quanto ao resto, tudo se mantém. A partir desse dia, que foi há dois dias, de uma forma muito orgânica, parei de ser uma criança de 6 anos a querer comer guloseimas e passei a comportar-me como a rapariga de 30 com metabolismo de 90. Ao contrário das 10000.ªs outras vezes falhadas em que proclamei que iria fazer dieta, sem nunca conseguir começá-la, desta vez, bani essa palavra e conceito da minha cabeça, e simplesmente comecei a tomar decisões, sem grande pressão, para voltar à minha forma de sempre que, afinal, até me fazia sentir bem. Mais ou menos, vá.

Sem pensar muito nisso, dei por mim a fazer um tacho de sopa para a semana toda, com todos os legumes da vida real (isto é, cultivados na horta de pessoas que conheço) que estavam sentados no meu frigorífico, à espera que eu me lembrasse de ser inteligente. Dei por mim a fazer molho de tomate de raiz com ovos escalfados, dei por mim a analisar atentamente latas sardinhas de e de feijão, que também são bons para substituir os noodles instantâneos que tantas vezes comi e me deixaram com azia.

Também dei por mim com uma embalagem de um preparado instantâneo de panquecas com pepitas de chocolate Whey Proteina na mão e a pensar: "Na, não é este o caminho." Acho que o falhanço nestas mudanças começa, precisamente, quando agarramos em produtos pensados para dieta. Por mais proteína que possa ter, panquencas em pó não é comida.

Eu quero ser saudável, mas quero comer comida. Quero-me reeducar com produtos que não saibam a dieta, tipo queijinho Babybell, que coisa odiosa. Quero reeducar-me sem estar a seguir as sugestões de influencers de nutrição, que nem são nutricionistas. Quero passar a comer sem fazer um overthinking obsessivo sobre a comida, sem estar a complicar uma coisa que só tem é de ser encarada com normalidade: comer comida da vida real para estar bem, comer comida que saiba a comida. Comer tem de continuar a ser uma coisa boa, porque comer é incrível, nunca deixem que vos tirem isso.