Ai, filhos, credo. Foi isto que aconteceu: no espaço de duas semanas, passaram-se duas décadas e eu com elas envelheci. Este novo palavreado, a inusitada e constante vontade de fazer um "bolinho", o modelito de andar por casa e as raizes brancas no cabelo — não estou a gozar, fui atingida por este mal cedo, em tempos idos, aqueles em que ainda era jovem — comprovam-no. Palavra de honra.

Outro sintoma deste fenómeno de velhice precoce é o facto de estar a um passo de perder a compostura online, porque com a idade já não se tem nada a perder, o filtro das boas maneiras cai e diz-se tudo aquilo que se quer. Estou prestes a soltar a descontrolada que existe em mim, a um instante de começar a bater no teclado e a largar uma "opinião" em tudo o que é post e comentário de utilizadores no Facebook. Mas, pronto, não vai acontecer, porque, meus amigos, eu sou uma velhota com classe.

Mas, a título de divertimento, vamos dissertar aqui sobre este tema absolutamente fascinante que é o das apreciações das gentes na era do digital. É isso mesmo. Exatamente como fazemos naquele jogo em que fragmentamos as diferentes tipologias de beto (beto ganzado, agrobeto, beto entrepreneur), aqui vamos distinguir os caríssimos que não perdem uma oportunidade para comentar.

O revoltado

Partimos do concreto para o geral, portanto o primeiro alvo não é muito óbvio, mas é um grupo de que sou grande fã, porque me diverte imenso: os Vizinhos do Areeiro.

Aiii, os Vizinhos do Areeiro. É difícil falar neles sem que antes os meus pulmões se encham para um longo, demorado e sincero suspiro. Há por lá muito boa gente, há por lá posts de real boa vizinhança, de pessoas a trocarem conselhos pertinentes, a celebrarem iniciativas bonitas, a partilharem informação valiosa. Mas, infelizmente, nestas coisas sobressai sempre a malvadez, portanto é impossível não reparar nesta curiosíssima estirpe de gente que adora revoltar-se — e que existe por toda a internet.

Em publicações ou na caixa de comentários, esta malta tende a indignar-se com tudo — e nem a pandemia os amansa. Ele é o candeeiro apagado em pleno Campo Pequeno, pouca vergonha; ele é os riscos nas paredes da Manuel da Maia; ele é uma lasca num qualquer prédio, sei lá, da Sacadura Cabral; ele é o banco que a Câmara Municipal ou a Junta decidiu pôr na Avenida de Madrid (claramente um truque do município a querer contaminar-nos a todos); ele é o transeunte que ousou sair à rua em tempos de COVID-19 — situação que é "lamentável", adjetivo que apreciam imenso. Sobre esta nova PIDE, já escreveu a Marta Cerqueira. É tema que dá pano para mangas.

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Porém, de momento, o tema mais premente neste grupo é, nada mais, nada menos... pombos. E há dois grupos: os que os odeiam (e querem mandar para a forca aqueles que os alimentam) e, depois, os que os adoram e defendem. Sobre esta facção, não posso deixar de vos mostrar aquilo que acabo de ler:

"A todos os q me apoiaram na luta contra os criminosos de pombos e pessoas, envio a foto do pombal para onde irão os q têm escapado ao assassinato perpetrado por monstros do prédio com a conivência de " autoridades."

Leram bem? Criminosos de pombos.

O revoltado que odeia pontuação

Mas, bom, estes revoltados do bairro são, na realidade, os meus preferidos, porque tendem a ter boa desenvoltura intelectual, sabem argumentar, muitas vezes têm razão (podiam era tratar-se melhor, vá lá) e, admirem-se, usam pontuação. É que do outro lado do espectro dos revoltados, temos aqueles que se recusam terminantemente a fazer recurso de uma vírgula ou de um simples e modesto ponto final. Muitas vezes, a coisa escala e vai mesmo tudo em maiúsculas.

É fácil encontrar prova disto. Dêem-me dois segundos.

- "Claro que sim não só em Portugal mas pelo mundo inteiro parece que ninguém ligava a esta pandemia era no vizinho ao lado não temos problemas por acabar todos estamos a lidar com esta tristeza"

- "TEM RAZÃO OS MILITARES FAZEM FALTA DEVIAM AJUDAR A PSP MANTER AS PESSOAS EM CASA"

Os que vivem a vida do outro

Segundo alvo — e este é mesmo para abater: aquela gente que adora opinar sobre a vida das figuras públicas. Isto para mim é um fenómeno, porque por mais que eu tente perceber, não consigo. Diz-se que é porque não têm vida, porque não têm mais nada para fazer. Mas eu cá para mim tenho que há mesmo problema de saúde mental grave associado.

Esta malta não percebe que, apesar de figuras públicas, a vida dos nossos amigos da televisão, cinema, música ou instagram, não é território livre. Por isso, pelam-se para escrever aquele comentário com um parecer profundo, preocupado, desiludido ou muuuuito desgostoso sobre uma situação que lhes é completamente alheia.

Vamos a exemplo, com o qual Nuno Markl teve de levar na sua conta de Instagram.

"Sou grande fã da tua pessoa pela capacidade de comunicação, imaginativa e vasta biblioteca de adjetivos de utilizas. Não precisas de palermices, apesar de te fazer bem ao ego, para tingires o teu ambicionado estatuto de influencer Abraço."

Isto, para mim, é muito simples: tanto interesse na vida de alguém é sinal de que estamos perante um potencial stalker. Estas pessoas deviam ser vigiadas pelas autoridades.

"Graças a deus"

Continuando. Vamos agora a um novíssimo fenómeno que são os religiosos. Eles sempre existiram, mas sinto que agora saltaram todos cá para fora. Efeitos da pandemia, eu percebo, ter fé torna a coisa mais fácil. Mas o mais curioso é que é nos posts sobre vacinas, novos tratamentos e fármacos que eles mais aparecem. Percebem a ironia disto? Ontem até fiz um print screen — e nem sabia que ia escrever sobre isto.

A notícia era esta:

cronica

Os comentários:

covid

Os que debocham

Estes conseguem ser cruéis e engraçados ao mesmo tempo. Dão um bom deboche e chega a dar gosto ler-lhes os comentários. Sinceramente, gosto deles, dependendo da postura que têm em relação à vida — isto porque há gente de má índole inteligente e essa é perigosíssima. Vão só lá dar aquela tacadazinha irónica e cortante. É malta que vê se que tem cérebro. Responder-lhes é fazer má figura, até porque só atacam quando têm a certeza de que estão em vantagem intelectual. Mais vale estar quieto.

A escumalha

Por último, a verdadeira escumalha. Os fascistas, racistas, xenófobos. Ui, estão por todo o lado, infelizmente existem em barda. No panorama atual, estão sobretudo nas notícias que dizem respeito aos chineses, ao fecho de fronteiras, cancelamentos de voo e legalização de emigrantes. São assustadores e não me fazem rir nadinha.

Adoram alegar que o estado não quer saber dos seus cidadãos e que só quer saber dos outros, mesmo que estes vivam em condições substancialmente mais precárias. Adoram achar que têm um estatuto especial por serem portugueses, franceses, espanhóis, americanos. Vivem bêbados de um patriotismo tóxico, o que nos diz de imediato que têm o cérebro fora do prazo. São quase sempre machistas, independentemente do sexo, e também adoram mandar aquela piadola nojenta sobre mamas, rabos e fidelidade. São a favor do piropo. E têm medo de pessoas homossexuais, porque acham que a homossexualidade é contagiosa.

Isto acontece por um motivo: vivem encarcerados nesta pequenez mental, nesta total ausência de visão cósmica da humanidade e da vida, aquela que permite concluir que, sei lá, somos um ponto tão infinitamente minúsculo no universo, que quase não existimos. Como diria o meu pai, vê-se logo que não leram os clássicos. Provavelmente, nem sabem ler bem, daí a verborreia.

E, pronto, senhoras e senhores, é esta a minha reflexão sobre pessoas que comentam nas redes sociais, estudo que já vinha a ser desenvolvido há vastos meses, mas que a pandemia permitiu concluir, porque não há mais nada para fazer, a não ser ver televisão e ler caixas de comentários.

Lanço um desafio: identifiquem novas estirpes e partilhem-nas comigo, que falar sobre isto é quase como falar sobre pelos e depilação. A conversa nunca acaba.