Há umas semanas, a minha senhoria ligou-me. Estava no escritório, a responder tranquilamente a um email, quando o telemóvel começou a vibrar em cima da mesa. O nome “Senhoria P.” no ecrã do telefone bloqueou-me de imediato. Entre suores frios, arrepios na espinha, batimentos cardíacos descompassados e uma pequena tontura, só consegui cuspir as seguintes palavras:

— Foda-se. A minha senhoria está a ligar-me.

Parámos todos na sala. Os olhos saíram dos ecrãs, os dedos do teclado, as pernas de debaixo da mesa. Foi o congelamento instantâneo de uma equipa que, de repente, teme pelo pior, porque sabe que de facto o pior pode estar prestes a acontecer.

— Estou a fazer um ano. Está a ligar-me porque vai aumentar a renda.

— Não te pode aumentar mais do que 2%.

— Está bem, mas eu não posso pagar mais 2%, já pago um balúrdio. Além disso, é o princípio: se me vai fazer isto agora, quer dizer que para o ano vai aumentar-me outra vez.

— Pode ser que não.

— Talvez seja outra coisa.

— Estou fodida.

— Atende, Marta.

— Que caralho.

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Peço desculpa ao leitor pelo vernáculo empregue até agora, mas só seria justo expor este diálogo tal e qual ele aconteceu. Quando finalmente atendi a chamada, a velhinha amorosa do outro lado da linha desfez-se em desculpas por incomodar-me durante o meu horário de trabalho, mas tinha mesmo de me pedir um favor.

— Como sabe, estamos com infiltrações no prédio. É uma chatice, mas vamos mesmo ter de fazer obras antes que comece a chover a sério. A sua casa é a única com acesso ao telhado, por isso preciso de lhe perguntar: consegue abrir a porta aos homens das obras durante as próximas duas semanas?

Só há um tipo de pessoa capaz de dar pulinhos de alegria depois de ouvir as palavras “duas semanas” e “obras” proferidas na mesma frase. Essa espécie nova, rara e peculiar que reside atualmente no nosso planeta chama-se “inquilino”, e é capaz de ter comportamentos verdadeiramente bizarros, como por exemplo, ficar feliz com este telefonema.

— Claro, não tem de se preocupar! Claro, venham quando quiserem! Claro, eu arranjo-me! Ora essa, não me incomoda nada! É um prazer poder ajudar!

Assim mesmo. Com todos estes pontos de exclamação.

Não conheço uma única pessoa neste momento que, a arrendar casa, não morra de medo de ver a renda aumentada ou de ser despejado. Ter um sítio onde viver tornou-se um bem de tal forma precioso que todos nós, subitamente, nos tornámos de facto numa espécie nova a habitar neste planeta. Temos todos os mesmos comportamentos: se há um problema na casa, não marcamos o número do senhorio, arranjamos uma solução. Se se avaria qualquer coisa, deixem estar que nós resolvemos. Obras? Venham! Precisam de ajuda? Claro! Problemas? Nenhuns! Incomodar? Ó querido senhorio, eu só não quero que se lembre da minha existência. Sabe Deus o que pode vir a seguir a isso.

(Também temos outros comportamentos bizarros, já agora, como o medo de abrir a caixa do correio – nunca se sabe bem o que pode aparecer por lá –, apresentamos sempre as nossas condolências quando algum conhecido nos diz que está à procura de casa para arrendar e somos de uma simpatia para lá de extrema com os nossos vizinhos; que se lixe se são três da manhã e vocês estão a fazer uma festa, a última coisa que queremos é arranjar problemas. Sobretudo se vocês forem donos da casa.)

Não sei qual é a solução para este problema. Não acredito em utopias, compreendo os interesses lógicos dos senhorios, entendo que o mercado imobiliário é um negócio e que a vida não está fácil para ninguém. Mas não percebo, mesmo, nunca perceberei, como é que, de repente, não ter onde viver é a maior preocupação das pessoas.

E sei que o Orçamento de Estado, tal como o programa Mais Habitação, não apresentou uma única solução sólida para este problema.

Entendam isto de uma vez por todas: nós não temos onde viver.

Preocupamo-nos com o impacto percentual que um empréstimo bancário tem na vida de um cidadão ou de uma família. Justo. Mas isso não é um tema quando se trata de uma casa arrendada. Queremos manter os jovens cá. Ótimo! Só que sabemos que os nossos salários são uma anedota se eles ponderarem sair de casa. Colocamos especialistas a defenderem publicamente a saúde mental e o abandono de relações violentas. Acho muito bem! Infelizmente, sabemos que é praticamente impossível alguém viver sozinho nos dias que correm.

Queremos que a nossa classe trabalhadora pague impostos, contribua, respeite a lei, não arranje problemas, cuide dos seus idosos, tenha filhos, vote, ajude os mais desfavorecidos… mas não os ajudamos a terem um teto por cima das suas cabeças.

Hoje, ao almoço, voltei a ouvir as mesmas histórias: inquilinos que vivem com medo que os seus senhorios idosos morram e sejam substituídos pelos filhos, inquilinos que não ligam aos seus senhorios quando há problemas porque não querem “arranjar problemas”, inquilinos que temem o dia em que haja um aumento de renda, inquilinos que sabem que, saindo daquela casa, não têm para onde ir.

Jovens (e menos jovens) que foram despejados à força, jovens (e menos jovens) que agora estão à procura de casa e aceitam tudo o que lhes pedem porque, bem, já venceram o Squid Game, que se lixe o que diz o contrato. Jovens (e menos jovens) que só querem trabalhar, pagar as suas contas e ter uma casa. Não é uma casa em Lisboa, um imóvel grande, um bairro da moda, um apartamento com terraço, um quarto com área suficiente para colocar uma cama de casal, um espaço remodelado, não… é só um teto. Caramba, é só um teto que estamos a pedir. 

Quando era miúda, morria de medo do lobo mau. A história da avó engolida pelo lobo e de uma capuchinho vermelho deixada sozinha no mundo perturbava-me de forma atroz: chorava baba e ranho sempre que o meu pai chegava a essa parte da história, de tal forma que, em determinada altura, ele teve de colocar esse livro de lado.

Nunca mais voltou a ele.

Já não tenho medo do lobo mau. Mas tenho muito medo da minha senhoria. Se sei qual é a solução? Não sei. Mas sei que todos nós merecemos ter um sítio onde viver.

Até à próxima semana.

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