Aveiro, Braga, Faro, Leiria, Lisboa, Porto, Santarém e Setúbal. Estes foram os distritos que elegeram deputados do Chega, quatro dos quais no círculo eleitoral da capital. São 12 pessoas, uma delas uma mulher, que irão ter assento parlamentar na próxima legislatura. Em Faro, o partido liderado por André Ventura chegou aos 12,3%. Em Portalegre, aos 11,46%, e em Beja, aos 10,27%. Tornou-se assim a terceira força política nacional.

O que é que falhou? Nada falhou porque a democracia é mesmo assim e, quer em termos absolutos, quer aplicadas as regras que permitem o cálculo da atribuição de mandatos (e que têm que ver com o número de habitantes de cada círculo eleitoral, convertido depois em número de deputados), o Chega não só derrotou o partido que ocupava o terceiro lugar, o Bloco de Esquerda, como ficou à frente daquele que era o principal concorrente nas legislativas de 2022, a ser uma alternativa à direita do PSD: a Iniciativa Liberal.

E estes resultados demonstram-nos que o discurso político e social para com o eleitorado  do Chega (o real e o potencial, sim, porque isto não pára aqui) tem de mudar. Urgentemente. É urgente perceber, sem infantilizar, sem 'coitadinhizar' ou adotar um discurso paternalista, quem são as pessoas que votam Chega.

Legislativas 2022. PS vence com maioria absoluta e Chega torna-se a terceira força política nacional
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Os números já os conhecemos. São 385 543. Mas quem são? É tentador e mais fácil dizer que são uma amálgama de racistas, xenófobos, descontentes, órfãos da direita e da esquerda, obcecados com uma qualquer invasão-fantasma de imigrantes e ciganos. É mais fácil, mas também preguiçoso, usar chavões como os usados por Catarina Martins na noite eleitoral. "Cada deputado racista no Parlamento é um deputado a mais". Desculpas de mau pagador de quem vive fechado numa bolha e não entende que, no Chega, não votam só os racistas.

O voto no Chega (e isto é só o feeling de quem não percebe nada de política, mas ainda tem alguma ligação com uma realidade fora dos microscópicos círculos cosmopolitas) é muito mais heterogéneo e complexo. Tanto está nos subúrbios das grandes cidades, onde famílias vivem com condições cada vez menos dignas para que se lhe possamos chamar de "classe média", como está em certos círculos mais elitistas e urbanos, onde o conservadorismo, herança mitológica de outros tempos menos democráticos, se começa a redesenhar como um El Dorado, uma reação quase epidérmica ao "socialismo" e ao "comunismo" (conceitos importados da retórica política norte-americana e que, não tendo grande adesão à realidade portuguesa, caem que nem ginjas no eleitorado do Chega... mas também no da Iniciativa Liberal).

O eleitorado do Chega tanto está no interior desertificado como está, como mostram os números, no Algarve desiludido, um projeto falhado de região que apenas merece a atenção do País quando os termómetros sobem ou quando acontece uma desgraça. Os algarvios são a prostituta sazonal de Portugal, e quem não compreende porque é que andam zangados e fartos tem de passar uma semana em Faro, Quarteira, Portimão ou Olhão nos meses de inverno.

Há uma desilusão transversal a classes sociais, a regiões e até a faixas etárias. Há os que veem em André Ventura um líder portentoso e há quem, mesmo o considerando um fanfarrão, vote nele. Porque a alternativa é constituída por figuras distantes, divorciadas da realidade, e — usando o argumento mais repetido ad nauseam pelos apoiantes indefectíveis do Chega — porque Ventura "diz as verdades".

E depois há pessoas, à direita e à esquerda, que veem no Chega o fim do caminho. A única solução após décadas e décadas de promessas falhadas, de líderes que ou abandonaram o País, ou o deixaram ingovernável, ou usaram os cargos públicos para cometerem crimes (alegadamente). Na sua racionalidade, acredito que não comprem nem 10% das barbaridades que Ventura diz, mas apreciam o ruído dentro da formalidade bafienta, cheia de cortesias e falsidades, que se tornou São Bento. São essas pessoas que importa compreender, não menosprezar e não atirar para a caixa dos "maluquinhos".

Porque se, entre 2019 e 2021, André Ventura foi um one man show, agora estará rodeado de mais 11 deputados. Todos democraticamente eleitos. E, agora, os argumentos utilizados, à esquerda e à direita, para tornar Ventura uma bizarria, uma mulher barbuda no circo do hemiciclo, caem completamente por terra.

Há Pedro Frazão, médico veterinário, pai de 8 filhos, membro da Opus Dei, com o seu look de genro ideal para apresentar à mãe no almoço de domingo e discurso de beto da lezíria, embora seja de Cascais; há Gabriel Mithá Ribeiro, professor, de ascendência africana, indiana e síria, filho de mãe muçulmana, que argumenta que o "racismo deixou de existir". E há Rita Matias, de apenas 23 anos, contra o aborto, contra a eutanásia, líder da juventude do partido. Pessoas que não são o boneco que Ventura se tornou, pessoas reais, identificáveis e que certamente adotarão outro tipo de postura menos tonitruante no hemiciclo, suavizando as arestas do Chega, institucionalizando-o, com todos os perigos que isso pode eventualmente trazer.

Mas esses perigos (como, só para dar um exemplo, tudo aquilo que pode estar nas entrelinhas da apologia da "família natural, baseada na relação íntima entre uma mulher e um homem", como se pode ler no programa político do partido) têm de ser encarados de frente e não demonizados, como se a chegada destes 12 deputados ao Parlamento fosse encarada como a descida aos infernos tendo Belzebu como guia turístico. Quanto mais forem antagonizados e colocados numa cerca sanitária, mais o seu eleitorado se galvanizará, sentindo-se legitimado no seu sentimento de não pertença, ao ver os seus representantes transformados em párias parlamentes. E, como diz o povo, não é com vinagre que se apanham moscas.