Em março, Portugal deparou-se com uma realidade que já pelo mundo fora dava sinais de ser séria: a COVID-19. Com ela, instalou-se também o medo e a limpeza das prateleiras dos supermercados com receio do desconhecido. Sabemos que a prateleira do papel higiénico foi uma das mais concorridas, mas também a do talho. Luís Gil Caldeira, 48 anos, foi um dos que se deparou com esta escassez.

"Um dia cheguei ao talho e o açougueiro tinha vendido tudo, com excepção de uns 'lagartos' (tiras de carne) e pouco mais. Virei-me para ele e disse que ia fazer o que meu pai via os pobres fazerem em São Paulo, Brasil, quando lá viveu: arroz com feijão, que o meu pai adorava. E assim fiz. De então para cá, só como ovos e plantas", revela à MAGG o magistrado de Setúbal, que não se tornou vegano, mas sim ovolactovegetariano (exclui a carne e peixe, mas consome laticínios e ovos).

Foi através do grupo "Vegan Pobre Portugal" que encontrámos este e outros testemunhos de quem aproveitou a quarentena para refletir sobre a alimentação e planear as novas refeições — agora de base vegetal. Desde a segunda quinzena de março o grupo teve uma adesão exponencial, especialmente durante o último mês, de acordo com Margarida Pereira, administradora do grupo.

vegan pobre portugal
Adesão ao grupo "Vegan Pobre Portugal" entre 10 de abril e 7 de maio créditos: Margarida Pereira

Luís recorda que a sua quarentena e regime de teletrabalho começou por volta de 19 de março, data em que foram suspensos os prazos judiciais e os julgamentos (excepto actos urgentes). Agora já não está confinado, mas apesar de ter voltado à relativa normalidade com o levantamento do estado de emergência, a alimentação já não voltou a ser a mesma, nem pretende mudar.

"O vegetarianismo é um dado adquirido. A única exceção anual será o bacalhau da noite de Natal. Não entendo o Natal sem um bacalhau com couves, batatas cozidas e azeite. Portanto, pecarei uma vez por ano. Nas demais noites (e dias), o vegetarianismo é um dado adquirido", diz.

Este era um assunto que já andava a pairar na cabeça há muito tempo e sabia que o vegetarianismo podia trazer-lhe vantagens. A escassez no talho pode ter sido um empurrão, mas resta saber o que é que motivou este magistrado a mudar a alimentação.

O mundo pré-quarentena

Se formos bem fundo no "pré" chegamos a tempo dos gladiadores. Sim, continuamos a falar de vegetarinismo, mas no entender de Luís a força dos grandes desportistas da Antiguidade, que tinham uma dieta quase vegetariana, é um exemplo de que esta alimentação pode dar-lhe a força de que precisa. O caso de Luís não se assemelha a nenhum dos atletas de dimensões, digamos, volumosas, do documentário "The Game Changers", mas precisa igualmente de força. Isto porque também ele é desportista e está até a treinar para aquela que é talvez a prova mais dura do mundo, o Iron Man, em que terá de nadar 3,8 quilómetros, pedalar 180 e correr uma maratona (42 km), tudo de seguida.

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Além dos possíveis benefícios de uma alimentação vegetal no desporto, outra das razões que pesaram na balança para mudar de hábitos foi o facto de Luís ter descoberto que a pecuária produz bastantes gases com efeito estufa. Como o peixe e a carne andam sempre lado a lado quando se fala em mudar para o vegetarianismo, o magistrado refere que é "o sofrimento (confecção de vivos) e a futilidade (caça e peça desportivas) de muitas mortes de animais" que mais o aflige.

A juntar a tudo isto, também não ficou indiferente aos incêndios na Amazónia, altura em que descobriu "que um dos maiores tesouros planetários ardia para a produção de soja, ingrediente das rações do gado bovino". Se até aqui todos estes motivos ficaram em suspenso devido à agitação do dia a dia, o tempo — muitas vezes mais do que necessário — que nos trouxe a quarentena permitiu então fazer essa transição.

Com mais tempo para a cozinha e para novas experiências

Antes de ficar de quarentena cerca de dois meses, José Esteves de Andrade, 40 anos, já tinha pensado em deixar de comer carne. Motivado por uma amiga, decidiu usar o período de confinamento para se estrear na cozinha livre de alimentos de origem animal, juntando assim o útil — deixar de pensar no sofrimento dos animais — ao agradável: gostar de cozinhar. E ao que parece resultou.

"O que mais estou a gostar é o facto de saber que sou mais um a fazer o bem e também por ser uma alimentação saudável. E isso é importante para mim de futuro, pois não caminho para jovem", diz à MAGG. José, trabalhador emigrante de construção civil em Niel, Bélgica, refere o desafio que começou a 2 de abril é para continuar, apesar de ainda se deparar com algumas dificuldades.

A quarentena dá tempo, mas não conhecimento. Como ultrapassar as dificuldades?

No caso do trabalhador de construção civil, o maior entrave para seguir esta alimentação é o facto de viver no estrangeiro. Por vezes é difícil conhecer os alimentos, bem como entender os rótulos que em qualquer uma das língua oficiais —  francês, holandês e alemão — não facilita a tarefa. Além disso, outro dos desafios de José é saber se está a cumprir com valores nutricionais necessários para uma alimentação saudável e se consegue garantir a tão famosa vitamina B12.

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Também  Luís Gil Caldeira teve alguma dificuldade quando começou a mudar a alimentação. Primeiro começou logo a sentir alguns problemas intestinais, já resolvidos, e depois começaram as dúvidas: "Sentia-me um pouco perdido, pois não conhecia receitas vegetarianas, para além das sopas. Resolvi com a consulta de páginas electrónicas veganas (Facebook, YouTube), com inúmeras receitas", diz.

Além disso, encontrou ainda um livro com receitas de apenas cinco ingredientes, porque facilidade era tudo o que procurava, mas ainda assim tinha medo de não estar a fazer a dieta de forma saudável. Solução? "Recorri a uma nutricionista". Aos poucos e poucos o magistrado foi encontrado todas as respostas para este mundo novo que não tem de ser complexo.

"Com excepção do tofu, não gosto de ingredientes que considere esotéricos. Gosto de olhar para um prato e ver comida, não umas gelatinas vindas do Oriente", acrescenta.

Já Tatiana Ribeiro, 25 anos, que sempre se preocupou em ter uma alimentação que potenciasse os resultados do exercício físico, ultrapassou as barreiras nutricionais mais facilmente. Conhece aqueles clássicos de frango, atum, batata doce e ovos para "crescer"? Eram também essa a base da alimentação de Tatiana para fornecer a proteína e nutrientes necessários ao corpo e músculos.

Já com essas noções nutricionais, mudar o "chip" para uma alimentação vegetariana não foi difícil: "Sou seguida por uma nutricionista e peso tudo o que como. Não como nada sem antes dizer numa aplicação que vou comer x gramas de banana ou manteiga de amendoim. Basicamente tinha de atingir x gramas de proteína, hidratos de carbono ou gordura, então nunca tive grande dificuldade. Só tive de trocar aquilo que comia por outras coisas. Fui aprendendo", revela a jovem da Trofa, distrito do Porto.

Tatiana, repositora numa cadeia de supermercados, já tinha ponderado ser vegetariana antes da quarentena, mas nunca tinha tido tempo para o fazer. "Foi uma decisão radical, mudei tudo de um dia para outro, mas também foi muito ponderado", conta. Este período permitiu então ter tempo para gastar os alimentos de origem animal que já tinha em casa e planear a nova alimentação de origem vegetal.

Aprendeu novas receitas e até passou para uma fase que raramente acontece em alguém que se tornou vegetariana apenas há quatro semanas: faz o próprio seitan e tofu birmanês (de grão de bico). "Não compro feito porque fica-me muito caro" e além disso, diz, preza por uma alimentação de qualidade.

O que muda no corpo e na mente

A alimentação vegetariana mostrou resultados corporais muito mais rápidos do que Tatiana esperava. Contudo, se antes a alimentação tinha apenas como objetivo conseguir os resultados, agora descobriu realmente prazer em comer: "Eu cozinhava por sobrevivência, não tinha prazer completamente nenhum. Cozinhava tipo um dia por semana para toda a semana para nem ter que me chatear com aquilo. O sabor foi realmente o que me impressionou. Pensei: 'Como assim isto sabe bem?'. Agora quase que cozinho diariamente, coisa que nunca fiz" conta.

Quem também ficou rendida aos resultados foi Ana Filipa Ferreira, de 24 anos. A designer de moda esteve de quarentena cinco semanas e apenas há três decidiu mudar a alimentação — uma escolha desafiante. "Desde pequena que cresci no meio dos animais, não da forma que mais gostaria, porque como meus pais são vendedores de carne a retalho eu acabava por ver o final trágico que já todos nós conhecemos", conta à MAGG.

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Apesar de os pais terem talhos, Ana revela que em casa isso não foi um entrave. Foi a única a mudar o regime alimentar, mas os restantes membros da família respeitam a decisão, o que ajuda no processo de transição. Tornar-se vegetariana era uma vontade sua já há vários anos e achou que este período seria o ideal para mudar.

"Antes de mudar a alimentação, li muitos artigos e livros sobre este regime alimentar. Falei com a minha nutricionista que me aconselhou da melhor maneira e quando me senti preparada iniciei então o processo", ainda que ao início Ana tenha tido alguma dificuldade na preparação das refeições, que superou com a ajuda de grupos para iniciantes no Facebook.

E dia para dia, revela que as mudanças têm sido notáveis: "Para além de me sentir com mais energia, consigo fazer melhor a digestão das refeições. Porém, a melhor coisa que esta mudança me poderia ter trazido, foi o orgulho que sinto de mim mesma por ter conseguido mudar os hábitos que levei desde pequena. Pela vida de todos os animais e pela minha saúde. Sinto-me bem comigo mesma", conclui Ana.

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