Todos os dias o despertador toca. A rotina é a mesma: acordar, levantar, tomar banho, comer e atravessar as portas do escritório, muitas vezes já com níveis de stresse elevados, resultado do trânsito, dos atrasos dos transportes, da correria para ir deixar os filhos a horas à escola. Por mais que esta sequência possa parecer aborrecida, representa o início de uma das componentes mais importantes da vida: o emprego. E é verdade: a ideia de ir para o escritório ou a fábrica é quase sempre pior do que, de facto, as tarefas que executamos. Apesar do stresse, e da pressão dos prazos, nos locais de trabalho também há amigos, também se aprende e nasce um sentimento de utilidade na sociedade e no mundo. Há que separar bem as águas: não ter vontade de passar o dia no escritório ou não gostar de uma determinada função é muito diferente de não gostar de trabalhar.

De acordo com Maria José Chambel, psicóloga do trabalho e das organizações, e professora na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, isto está mais do que “estudado, comprovado e bem fundamentado”. Quem não tem nenhuma ocupação é mais infeliz do que quem tem: “Todos os estudos internacionais, onde se inclui Portugal, mostram que a maioria da população quer ter uma atividade profissional, mesmo que economicamente não necessite dela.”

Basta imaginar-se numa situação de desemprego. Não ter nenhuma ocupação é altamente prejudicial para a vida e saúde emocional. É, de acordo com a psicóloga, "uma das coisas mais graves que podem acontecer, logo após um ente querido falecer inesperadamente.”

E não é só por uma questão de subsistência. Estudos, que compararam os efeitos da condição de desemprego em indivíduos com e sem subsídio, revelaram que o impacto de não ter uma ocupação é muito prejudicial até para quem tem sustento.

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A forma como se estrutura a sociedade faz com que o trabalho seja um aspeto muito relevante na vida. Permite satisfazer um conjunto de fatores fundamentais, que trazem “dignidade” e que respondem a três dimensões essenciais para o bem-estar. Quando estas necessidades não são respondidas, aí sim, é possível não gostar – ou até mesmo odiar – trabalhar.

  • Há a dimensão da relação interpessoal que permite “encontrar no trabalho pessoas relevantes” com quem se constroem laços que permitem a “integração num contexto social”.
  • Há a dimensão da necessidade de desenvolvimento da competência, que se reflete na possibilidade de aprendizagem, evolução e sentimento de utilidade.
  • E há dimensão da autonomia, relacionada com a responsabilidade, “com o dizer ‘eu faço alguma coisa onde sinto que faço a diferença, tomo decisões e sou responsável’”.

Um trabalho que tenha estas três dimensões é fantástico. Se só tiver uma já é potenciador de bem-estar e é capaz de nos fazer ficar lá. Quanto maior for a ausência de uma ou mais dimensões, maior será a sensação de mal-estar. Há trabalhos que, na sua origem, já vão falhar em algum destes aspetos. Uma pessoa que trabalhe num call center, a fazer inquéritos de satisfação, por exemplo, poderá sentir que as suas competências não estão a ser desenvolvidas. E quem trabalha em casa poderá sentir falta de companhia e do desenvolvimento de relações interpessoais.

Mas a vida profissional facilmente se mistura com a pessoal. Há profissões que “perturbam outras dimensões da vida”. E quando o mal-estar no emprego influencia o bem-estar na vida fora dele, cria-se um cenário negro, composto por “um conjunto de riscos psico-sociais capazes de perturbar a saúde” e que levam a grandes níveis de infelicidade laboral, continua Maria José Chambel.

A psicóloga deixa alguns exemplos. Quem trabalha por turnos, “tem dificuldade em conciliar a vida profissional com a vida pessoal”, porque deixa de estar com pessoas importantes, “nomeadamente com a família, amigos ou namorados”, restringindo a vida social às pessoas com quem estão na empresa. “Na área da aviação, a maioria dos amigos são colegas de profissão”, diz a psicóloga. “O serviço de atendimento ao público também é complicado nos mais variados setores, mas sobretudo nas reclamações". Há um “grande risco associado”, porque há “clientes que não são fáceis e são quase sempre cada vez mais exigentes”.

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Depois também há quem se sinta realizado com a sua função, mas com um preço a pagar: “Uma pessoa que até gosta do seu trabalho e está motivada, mas que trabalhe, sistematicamente 10 ou 12 horas por dia, não consegue responder às outras solicitações da vida igualmente importantes, como o casamento ou os filhos”, diz. “Nestes casos, é normal a pessoa começar a questionar-se se está no sítio certo, porque surgem sentimentos de frustração, exaustão e outros aborrecimentos”, acrescenta.

O excesso de trabalho, por exemplo, é “um fator transversal” que se reflete em “ter demasiadas coisas para fazer num curto espaço de tempo e muitas vezes sem ser no horário estabelecido.” Sobretudo “para quem está nos quadros das empresas”, o telemóvel está sempre disponível, os emails respondem-se a qualquer hora e dia e, assim, a vida laboral mergulha na esfera íntima.

Sobre o impacto do salário, a psicóloga adianta que, há já muitos anos, conclui-se que “não é uma dimensão motivadora para as pessoas”. Ou seja, o valor do vencimento, mesmo que elevado, não será capaz de tornar mais positiva uma pessoa que se sente infeliz na sua profissão: "O facto de eu ganhar bem, não chega para eu estar feliz com o meu emprego.”

“Mas, obviamente, que é preciso haver um determinado nível”, ressalva. “Se as pessoas têm de trabalhar muito para ter o dinheiro mínimo para sobreviver, então a ausência aqui é um problema. Quando é muito baixo, o vencimento pode trazer infelicidade, porque traz insegurança, instabilidade e é capaz de tirar horas de sono.” A equidade também poderá causar transtornos, uma vez que com “diferenças salariais as pessoas sentem-se injustiçadas e insatisfeitas.”

São muitos os aspetos capazes de levar à insatisfação profissional. Por isso é que, segundo Maria José Chambel, as organizações, no conjunto dos seus profissionais, devem fazer um diagnóstico dos riscos psico-sociais, de forma a identificar “os fatores que podem perturbar o normal funcionamento e saúde de determinada função.”

O emprego não deve ser um problema, mas sim um aspeto positivo da vida, que confira a tal dignidade e estabilidade. As empresas devem perceber que ter funcionários saudáveis e felizes é benéfico para ambas as partes: “As pessoas são mais produtivas se estiverem mais contentes e socialmente integradas.”

A liderança é outro aspeto crucial, “muito importante nas organizações, na nossa vida e na gestão do trabalho.” É necessária formação específica, que dê ferramentas de gestão de equipa e noções do comportamento humano. Mas é comum isto não acontecer. E disto podem muito bem surgir "maus chefes, que assumem cargos pela competência técnica e que não percebem nada de liderança", diz.

"Um bom líder tem de compreender como é que o ser humano funciona globalmente e tem de entender como é que devemos agir uns com os outros.” Partindo dos pressupostos errados, vai ser controlador e o ambiente poderá tornar-se “infernal”.

Há chefes que partem do princípio que obrigar é o que está certo e que têm de ser autoritários e controladores porque de outra forma a coisa não funciona. Acham que o ser humano é preguiçoso e que, se pudesse, não trabalhava. Liderar com base nestas ideias e em atitudes que assentam na disseminação do medo é criar mau ambiente e insatisfação no trabalho.

*texto originalmente publicado em 2018 e adaptado em 2022.