O caso de Ângelo Rodrigues chamou a atenção para a realidade escondida atrás do culto do corpo: o consumo de esteroides anabolizantes. O ator de 31 anos está internado em estado crítico, depois de, alegadamente, ter injetado testosterona nas nádegas, prática a que se recorre quando o objetivo passa por aumentar a massa muscular.
O ator da novela "Golpe de Sorte", da SIC, deu entrada no hospital Garcia de Orta, em Almada, a 22 de agosto Com uma infeção grave, que entretanto já evoluiu para choque séptico, já foi submetido a quatro cirurgias e tratamentos de hemodiálise, estando agora em estado de coma induzido.
Confirmando-se a origem da infeção, este poderá servir de exemplo extremo das extravagâncias e perigos em que as pessoas incorrem neste fenómeno que é querer alcançar o corpo perfeito no contexto do exercício físico. Mas há mais.
Da ingestão de substâncias perigosas a práticas do próprio treino, a MAGG falou com quatro personal trainers e um médico da especialidade de Medicina Desportiva para perceber quais é que são as práticas menos saudáveis do universo do fitness.
Esteroides anabolizantes
Comecemos pelo mais grave. A testosterona sintética é aquilo que compõe os esteroides anabolizantes, substâncias que só podem ser administradas por médicos e de acordo com algumas condições clínicas especificas, como anemias, défices de crescimento ou desequilíbrios hormonais.
Mas a sua utilização excede estes fins: é recurso para quem procura corpos bem definidos, através da estimulação do crescimento dos músculos. Aí qualquer dose utilizada será sempre superior à recomendada e saudável porque o corpo não tem, de facto, a necessidade daquele reforço hormonal.
Vasco Filipe, personal trainer, recorda o caso de um dos seus alunos: o jovem contou-lhe que tinha injetado anabolizantes esteroides num ombro para conseguir alcançar resultados mais rápidos. Como consequência, viu uma infeção aparecer.
"Conheci um aluno que começou a fazer o uso deste tipo de substância e fê-lo sem qualquer conhecimento. Teve quase de ser operado ao ombro porque teve uma infeção brutal", lembra o PT. "Chegou ao ponto em que não conseguia subir o braço ao nível da cabeça. Eu disse-lhe que era o que acontecia quando se optava pelos caminhos fáceis. Acabou por ficar muito tempo parado e os ganhos de quatro meses perderam-se. É um risco demasiado grande para uma pessoa que quer ir para a praia", acrescenta Vasco Filipe, que faz competição em culturismo.
Segundo João Gamelas, médico de Medicina Desportiva, as infeções pela toma de anabolizantes são comuns por dois motivos: além de o sistema imunitário ficar fragilizado pelo consumo destas substâncias (o que, só por isto, já o torna mais propício a infeções), há ainda o risco de, no caso dos injetáveis, bactérias que existem na pele contaminarem a zona em que se injeta, aumentando muito o potencial e gravidade infecciosa.
Agora, a questão que se impõe: os esteroides anabolizantes são uma realidade dos ginásios? Os quatro personal trainer com quem a MAGG falou não precisaram de pensar muito para responder: são. É uma espécie de elefante na sala (porque toda a gente sabe que ele está lá, mas ninguém fala sobre ele) e "é muito mais comum do que se pensa", diz, por exemplo, Vasco Filipe.
O corpo humano não consegue resultados da noite para o dia só porque sim. É preciso de tempo e sempre que esse tempo não existe, é certo que há alguma coisa a ajudar”
João (nome fictício), também é técnico de exercício físico. Hoje trabalha por conta própria, mas já passou por vários ginásios ao longo da sua carreira. Nunca apanhou ninguém em flagrante, mas já viu vestígios. “Encontrávamos seringas no caixote do lixo. Eram coisas utilizadas às escondidas. Eu nunca vi a prática em si", conta. Mas ressalva: "[Os anabolizntes] existem, mas para uma percentagem pequena dos praticantes de desporto”.
Não havendo nunca certezas absolutas, o mesmo PT explica que não é difícil identificar quem faz recurso a estas substâncias. “Uma pessoa que hoje é magra e que em poucos meses fica muito inchada e com uma performance muito superior está provavelmente a usar isto. O 8 para o 80 é impossível. O corpo humano não consegue resultados da noite para o dia só porque sim. É preciso tempo e sempre que esse tempo não existe, é certo que há alguma coisa a ajudar.”
Bárbara Alemão, PT em Lisboa, alerta para a forma como as pessoas têm acesso à testosterona sintética: “Em Portugal e no estrangeiro, há casos de pessoas que têm acesso a anabolizantes por via não convencional, através de mercados negros. Estas coisas vendem-se na Internet”, diz. “Porque querem resultados rápidos, não estão bem instruídas e, no pior dos cenários, porque receberam conselhos de amigos, leram em fóruns ou foram aconselhados por um profissional pouco formado para adquirir isso. Isto é mais raro acontecer, mas é certo que acontece, sempre muito off the record.”
Como é que as pessoas têm acesso a esta realidade? “Eu diria que tiram estas ideias do ginásio. Penso que será por ai. As pessoas procuram a atividade física, envolvem-se com determinado grupo de pessoas que têm este culto e que procuram este desenvolvimento muscular e por aí vai experimentando e vendo”, considera João Gamelas, médico de Medicina Desportiva.
“Já vimos entrevistas, em tempos de atletas apanhados no controlo antidoping, que se explicavam, dizendo que ‘toda a gente toma’. No desporto, hoje, isto está muito controlado, mas agora nas atividades individuais, reservadas e que não estão sujeitas a esse controlo, não.”
O potencial de efeitos adversos de anabolizantes é enorme e quase certo quando a toma é continuada. “O que acontece é que isto devia estar reservado a tratamentos médicos e é usado em termos estéticos, no sentido de desenvolvimento do corpo, maior definição, diminuição da gordura. Mas esquecem-se dos efeitos adversos, que variam consoante a dose e o tempo”, continua o médico. “Isto tem uma infinidade de efeitos secundários, que anulam qualquer benefícios, até do ponto de vista estético.”
Entre as consequências, o médico aponta o aparecimento de acne, crescimento de pelos ou, por outro lado, o desencadeamento de calvice. Mas há pior: “A nível do sistema endócrino, pode levar à diminuição dos testículos, pode levar também a problemas cardiovasculares, aumento hipertensão, maior probabilidade de aparecimento de AVC, havendo ainda o problema da sobrecarga renal e hepática, capaz até de anular o efeito estético."
Por cima disto, vêm ainda as alterações de humor, potencial de depressão acrescido e ainda de agressividade.
Suplementação desnecessária e duvidosa
Outro dos problemas apontados por João Gamelas prende-se com a toma de suplementação proteica. Apesar de ser cada vez mais comum, é, segundo o especialista, quase sempre desnecessária — podendo até ser perigosa no caso de, continuadamente, se excederem as doses de proteína necessárias ao organismo.
“Cria uma grande sobrecarga para os rins e para o fígado”, aponta o médico. Estes órgãos, pelo excesso deste macronutriente, podem sofrer lesões e não conseguir processar estas doses de proteína — sobretudo se considerarmos que, por cima desta bebida, vem ainda a quantidade consumida por via da alimentação.
Na pior das hipóteses, o excesso de proteína no organismo pode levar a uma espécie de colapso destes órgãos, dando-se uma falência hepática ou renal. Antes de chegarmos a este cenário, as análises vão dando conta do caminho que se está a percorrer: “Há alteração nos marcadores das funções dos respetivos órgãos nas análises que se fazem.”
Wellington Almeida é dono de um ginásio em Campo de Ourique, mas também já passou por cadeias maiores, mais comerciais. Nota que dentro desta profissão é comum haver pessoas a “indicarem muitas substâncias e suplementos para os alunos, sem se passar pelo médico ou nutricionista.”
Bárbara Alemão reforça o mesmo, chama a atenção para as marcas duvidosas comercializadas quase sempre online e para aquilo que acontece nas redes sociais. “Pegando no exemplo do Instagram: o que se passa é há muitos pseudo-profissionais, em que o seu serviço passa, não só por delegarem um plano de treino, mas também pelo aconselhamento de compra de certos suplementos, que muitas vezes têm um acordo com eles e que lhes dão mais retorno financeiro.”
Dentro dos suplementos proteicos, há ainda o problema de alguns estarem contaminados por anabolizantes — novamente, de marcas não oficiais, que se encontram na internet — acarretando não só uma produção mais rápida de massa muscular, como também todos os perigos inerentes a estes consumos.
João Gamelas defende que a ingestão de proteína deve vir da alimentação. Se for “saudável, regrada e ajustada” será capaz de responder a todas as necessidades do corpo, assim como à vontade do indivíduo de conseguir atingir certos resultados.
“A hidratação — antes, durante e depois — é que é mesmo fundamental.”
Treinar sobreaquecido
Outro hábito apontado, não só por João Gamelas, como também por Bárbara Alemão: pessoas que treinam, propositadamente, muito vestidas, para queimarem mais calorias.
“Não se deve fazer exercício em condições de hipertermia [aumento da temperatura acima do nível fisiológico]. Não se perde peso por aqui. Só se perde água”, diz o médico, que destaca que a roupa deve ser “ajustada e adaptada” ao treino.
As consequências do recurso excessivo desta prática de sobreaquecimento ser perigosas: “Pode levar à desidratação que, por sua vez, é má para saúde porque leva ao sofrimento celular, criando, muitas vezes, lesões irreversíveis nas células mais sensíveis do sistema nervoso.”
“Já vi acontecer no ginásio: pessoas que fazem cardio muito vestidos, com muita roupa, na esperança de perderem peso. Observa-se, sobretudo, quando o verão se aproxima”, diz a PT. “São pessoas que copiam exemplos de outras pessoas”, supõe.
Treinar em jejum
Uma prática altamente difundida nas redes sociais e blogues. João Gamelas discorda em absoluto: “Não devemos fazer exercício em jejum. O exercício consome energia rápida, portanto precisamos desta energia rápida e disponível, que são os açúcares [provenientes dos hidratos de carbono]”, diz.
Quando estes açúcares não estão presentes no corpo, o organismo tenta ir às reservas de gordura buscar a energia de que precisa. Mas pode não correr bem: é que este processo é demasiado complexo e pode não chegar a tempo de responder às necessidades de quem está a treinar de jejum.
“Não é um processo rápido. As reservas de gordura tentam ser mobilizadas o mais rápido possível, mas às vezes não é rápido o suficiente para responder ao esforço.”
Resultados: “Pode dar quebras de tensão, tonturas, um conjunto de coisas que podem fazer perder consciência”, explica o médico. “Estar na passadeira ou estar com pesos acima da cabeça e desmaiar pode não correr muito bem.”
Treinar com demasiadas cargas — sem técnica
“É muito normal haver pessoas que valorizam mais a carga que estão a mover do que a técnica”, nota Bárbara Alemão, que refere que é na zona dos pesos livres do ginásio que se observa mais isto. “O problema não é a carga pesada. É a forma insegura, a técnica pouco aceitável, como que as movem.”
Na opinião da PT, isto acontece, sobretudo, “devido aos egos”: “Na ânsia de mostrarem que levantam X quilos, para impressionar o vizinho do lado, para pôr um vídeo na internet. Pode correr bem, mas pode correr mal. Pode proporcionar acidentes e lesões, muitas vezes não no imediato, mas depois.”
Será este o mindset que ocupa os ginásios? Nem sempre. “Uma parte dos praticantes estão focados mais no corpo perfeito e não na saúde, mas há também pessoas que vêm ter connosco para ficarem mais fortes e saudáveis, sendo que há até algumas que nos chegam referenciadas por médicos, em que o exercício faz parte do método para tratar a ansiedade, depressão, problemas cardiorespiratórios.”
Esta multidisciplinaridade, em que médicos trabalham com nutricionistas e técnicos de exercício físico, é fundamental na opinião de Bárbara.
Ir do 8 ao 80 e ignorar lesões
O fenómeno sazonal, em que se treina até ao exaustão durante seis meses e se é sedentário nos outros seis é, para João Gamelas, um grande erro. "Quando chegamos a altura antes do verão, das férias e dos biquínis, de repente, é preciso trabalhar o corpo e esta rotina passa a ser intensiva. Não pode ser assim. O exercício deve ser adaptado e progressivo, quer na intensidade, quer no ritmo.”
O sedentarismo, diz, é péssimo. Por isso, o desporto deve ser parte integrante da rotina a vida toda, desde que de forma “adaptada, controlada e progressiva”.
Bárbara Alemão concorda e salienta o perigo de uma pessoa que não tem rotina de exercício físico passar de um extremo ao outro. Além disso, refere ainda a teimosia de alguns: “Vemos pessoas a fazerem demasiado exercício físico, mesmo como dor. Há pessoas a treinar com lesões em fase aguda, pessoas que fizeram uma fratura muscular, que tem limitação de movimento e que, mesmo assim, continuam a treinar, podendo agravar a lesão.”