É vegetariano, mas foge aos típicos caril de grão e lasanha de soja. Aqui há empratamentos cuidados, ingredientes biológicos e técnicas de profissional.

O Arkhe nasceu em 2018, em Lisboa, para revolucionar a forma como os portugueses viam a comida feita sem carne nem peixe. Recusam o rótulo de fine dining e nem sequer fazem questão de serem conhecidos como "restaurante vegetariano". "Fazemos sim comida de qualidade num ambiente confortável", conta à MAGG o chef brasileiro João Ricardo Alves, que se senta à mesa com Alejandro Navarro, colombiano, sócio e sommelier, para uma conversa sobre comida, vinhos e preconceitos que têm vindo a ser quebrados.

A MAGG, à distância de um telefonema, senta-se à mesa também, não só para esta conversa, mas para experimentar o menu concebido para take away. "Requer uma criatividade gigante", garante Alejandro, que não se inibe de pôr comida numa caixa, à qual junta as suas propostas de vinho e cerveja, numa harmonização pensada ao pormenor.

O pithivier (tarte redonda e fechada) de cogumelos selvagens e raiz de aipo, por exemplo, demora 36 horas até estar pronto. A panissa de grão de bico — um clássico da cozinha genovesa — é a entrada que João nunca conseguiu tirar da carta, tal é o sucesso. E a sobremesa, feita com chocolate, avelã, laranja, whisky e café, passou do prato para um frasquinho, sem que se percam a mistura de sabores capaz de deixar o cérebro confuso durante uns segundos.

O Arkhe é um restaurante vegetariano de autor — coisa rara em Portugal. Mais raro ainda é ser feito por dois não vegetarianos. "É tudo uma questão de equilíbrio", diz Alejandro. "E de amor pelos vegetais", acrescenta João.

Fine dining vegetariano ainda é muito raro em Portugal. É um risco que tem compensado?
João: A nossa intenção nunca foi fazer fine dining, mas sim apresentar algo feito com muita qualidade num ambiente confortável.

Então, como preferem definir a vossa cozinha?
João: É uma cozinha que agrega toda a minha experiência noutros locais. Passei por restaurantes com estrela Michelin, restaurantes de fine dining e tudo isso faz parte de quem eu sou. O problema é as pessoas associarem o fine dining a algo muito refinado, o que não é o nosso caso nem nunca vai ser.

Como é que a cozinha do Arkhe se adaptou ao take away?
Alejandro: Não temos a mesma carta que tínhamos no restaurante. Adaptámos as receitas— a comida é mais comfort food do que era no restaurante — para que as pessoas possam, em sua casa e de uma forma descomplicada, terminar os últimos pormenores do prato. Sempre com a nossa técnica e cuidado.

Há sempre algo que se perde quando a comida vem numa caixa?
Alejandro: A comida de take away e a que é servida no restaurante não pode ser a mesma. Claro que há receitas que mantemos, como a panissa, que é facilmente replicada em casa. Mas algo que pede um molho a determinada temperatura já não é exequível. Não fazemos por fazer e para fazer mal. Fazemos sim uma proposta de qualidade e que seja transportável. É por isso que a nossa filosofia não é a do fine dining, nem temos aquela ideia do "ai o fine dining não pode ir numa caixa". Qualquer cozinha pode ir numa caixa de take away, tem é que ser adaptada. Conheço cozinheiros com três estrelas Michelin que agora conseguem pôr comida em caixas e isso é monstruoso, é espectacular. Requer uma criatividade gigante e isso é espelho da postura que queremos ter na vida: perante uma adversidade, saber reinventar.

A cozinha vegetariana pede mais imaginação do aquela feita com carne e peixe?
João: A cozinha plant based é mais desafiante do que a cozinha tradicional. Digo isso tendo em conta os clientes que cá vêm e que também comem carne e peixe: eles comparam muito o prato com proteína animal com os que servimos e perguntam: 'porque hei-de pagar isto se no meu prato só tem vegetais?'. É por isso que temos que ser muito criativos e usar muita técnica para trazer sabores e técnicas àquele prato para que as pessoas valorizem.

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Há uma tendência para procurar alternativas que nos remetam à carne e ao peixe?
João: Esse é o caminho mais fácil, mas não é o nosso. A memória do sabor da carne e do peixe é muito forte, porque crescemos com isso. Mas é possível chegar a alguns desses sabores com cogumelos e alguns vegetais, não sou tão defensor do uso de seitan e do tofu em excesso para chegar lá.

Ainda há quem acredite que a comida vegetariana é aborrecida. Sente que está constantemente a ser posto à prova?
João: Isso acontece quando alguém teve uma má experiência num restaurante vegetariano. É preciso ter memória gustativa, é preciso estudar as técnicas básicas, seja para fazer cozinha vegetariana ou qualquer outra.

Arkhe
Pithivier vegetal de cogumelos selvagens e raiz de aipo, um dos pratos principais disponíveis para take away e entregas.

E o João, particularmente, estudou técnicas tradicionais, com muito animal cozinhado à mistura. 
João: Sim, a carne e o peixe fazem parte dessa aprendizagem. Isso deu-me uma bagagem importante, um conhecimento que ponho todos os dias na cozinha que faço, ainda que com outros ingredientes.

Quando se deu a mudança para uma cozinha de base vegetal?
João: Trabalhei num restaurante em França onde os animais eram abatidos de manhã e chegavam inteiros ao restaurante no mesmo dia. Comecei a ficar desconfortável com tudo isso e decidi que não queria mais cozinhar animais. E, naquela época, decidi viver sem proteína animal durante uns tempos. Queria provar que isso era possível, mantendo a energia. Comemos animais por prazer, não por necessidade. Não é como antigamente, quando tínhamos civilizações sem acesso à agricultura e que dependiam dos animais para viver.

Quando diz que viveu sem proteína animal durante uns tempos, significa que atualmente come carne? 
João: Eu não sou vegetariano. Eu não sou nada, decidi ser apenas um ser humano. Sigo a minha verdade, sem dogmas. Esta e apenas a minha forma de cozinhar. Eu amo vegetais, sou apaixonado por todo esse mundo e acho é muito desafiante.
Alejandro: Eu também não sou vegetariano, ainda que seja casado com uma vegetariana. Eu reduzi o consumo de carne nos últimos quatro anos em 95%, ou seja, faço duas ou três refeições de carne por ano, como mesmo raramente. Não sou extremista, é tudo uma questão de equilíbrio.

Que características essenciais têm os ingredientes com os quais trabalha?
João: Temos cuidado com a escolha dos fornecedores e trabalhamos somente com produtos da estação e quase sempre biológicos. É certo que usamos miso e molho de soja, por exemplo, que vêm do Japão, mas damos preferência a produtos portugueses.

Estamos sempre em contacto com os fornecedores para ver o que vai chegar dentro de dois ou três meses. É assim que começamos a montar o menu. Se daqui a dois meses deixamos de ter abóbora, ela tem que sair do menu, e se daqui a um mês temos espargos, eles têm que entrar. E, a partir daí, é procurar o produtor com os melhores espargos.

Como funciona o seu processo criativo?
Alejandro: Quando vim ao Arkhe, ainda como cliente, percebi logo a sazonalidade, ainda que não saiba se isso chega a todos os clientes. Percebi também a técnica e o cuidado que o João põe em tudo, até porque eu também tenho experiência de cozinha. Eu vim acrescentar a parte líquida da experiência, para que o líquido e o sólido de uma refeição se juntem de forma harmoniosa. Para isso, há processos criativos que começam num vinho que nos levam a criar um prato. A experiência tem que ser completa, com vinhos e comida a fazerem sentido. Se, por exemplo, me pedem um menu degustação, mas querem beber vinho tinto, adaptamos os ingredientes e os sabores do prato a essa exigência. Essa é uma experiência que poucos restaurantes proporcionam.

O Alejandro trata das bebidas e o João da comida. Como se deu esse casamento?
Quando vim para Portugal, começamos a fazer eventos para vinte pessoas com a comida do João e harmonização de vinhos feita por mim. Entretanto pedi-lhe para ele me abrir as portas da cozinha dele e percebi logo que falávamos a mesma língua. Desde aí, temos caminhado juntos.

"Os preços do Arkhe são feitos para portugueses e o menu é feito para o paladar português"

Trabalharam muito no estrangeiro antes de assentarem em Portugal. Em que é que isso se vê nos seus pratos?
Alejandro: Trabalhámos para proprietários de muitos restaurantes e percebemos que é muito importante ter uma pessoa responsável pela sala e outra pela cozinha e que estas estejam ligadas entre si, até financeiramente. Somos sócios e este é um modelo de negócio pouco habitual por cá. O pessoal de sala e os escanções não costumam ter a importância devida e tudo é posto em cima do chef.

Afinal, o que pode um vegetariano comer num restaurante tipicamente português?
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E na carta, é possível ver essas influências?
João: Absorvi culturas de muitos países e isso vê-se nos pratos que crio.
Alejandro: Além disso, não sei se há muitos restaurantes a sugerir um vinho para cada prato. Optámos por fazer isso, porque cada prato é feito à volta de um vinho em particular.

Escolhem primeiro o vinho e só depois o prato?
Não, é em simultâneo. As pessoas podem escolher um vinho a copo para cada momento da refeição: entrada, prato principal e sobremesa. É um trabalho árduo.

Arkhe
No restaurante, todos os pratos têm um vinho específico pensado para o acompanhar, seja entrada, prato principal ou sobremesa.

E nota-se uma portugalidade nessa dinâmica entre pratos e vinhos?
João: Claro que sim, eu sou filho de um português de Trás os Montes. Quando vim para Lisboa fiquei impressionado com o número de projetos pensados apenas para o turismo. É que se um dia esse turismo quebra, quem vai ser o público desses espaços? É por causa disso que os preços do Arkhe são feitos para portugueses e o menu é feito para o paladar português — tive, por exemplo, que diminuir o picante na comida.

Como foi a reação dos primeiros clientes, pouco habituados a este conceito de cozinha vegetariana elaborada?
João: O início foi difícil. Não tínhamos muitos clientes e isso dificultou o arranque do projeto. Mas isso nunca me afetou. Dei sempre o meu melhor, mesmo nas noites em que só tinha uma mesa.

O preconceito face à comida vegetariana está a acabar?
João: Vai haver preconceito quanto a uma cozinha se ela for mal feita, seja vegetariana, italiana ou francesa. O problema são as pessoas que têm uma experiência negativa e levam isso como verdade absoluta. Não queremos que o Arkhe seja um restaurante vegetariano ou vegan, queremos que seja um restaurante. Um lugar onde todos são bem recebidos, mesmo os que comem carne e peixe. Aliás, é dessas pessoas que temos as reações mais impressionantes.
Alejandro: Temos muitos clientes que vêm cá como depois vão a um restaurante de comida tradicional. E vêm porque gostam, não pelo rótulo do "vegetariano".