É o restaurante mais próximo do zero waste que existe no mundo e o mais engraçado é que nunca foi esse o objetivo. "Tínhamos apenas a ideia de reduzir algum desperdício, mas acabámos por ir mais longe, num caminho que, aparentemente, nunca terá fim", explica à MAGG Carlos Henriques, um dos vértices do triângulo empreendedor por detrás do Nolla, um restaurante aberto desde fevereiro na Finlândia que tem duas premissas: servir boa comida e desperdiçar o mínimo possível.

São os produtores que ditam o menu, existe apenas um caixote do lixo em todo o restaurante, a compostagem é feita em frente dos clientes e até os copos de vidro são na verdade restos de garrafas de vinho que, também essas, foram várias vezes reutilizadas. Já para não falar das fardas feitas de lençóis ou do carvão feito de ossos.

Mesmo assim, este trio empreendedor composto por Carlos, Luka Balac (sérvio) e Albert Franch Sunyer (espanhol) não consegue ainda — mas promete chegar lá brevemente — deixar de produzir cerca de dez quilos de lixo por mês. Mas reparem nos números: em média, um restaurante produz cerca de 70 mil quilos de lixo por ano, ou seja, 5.833 quilos por mês. O Nolla dá a todos uma abada ambiental e Carlos Henriques veio a Lisboa contar como tudo isto acontece.

A MAGG juntou-se à conversa promovida pela Maria Granel e juntou as suas perguntas à dos curiosos que querem saber como é possível que saia comida saborosa de uma cozinha sem especiarias. É que na Finlândia, as lojas a granel ainda não existem e Carlos recusa-se a comprar alguma coisa que venha embalada e ir buscar pimenta ao Zimbabwe também não é solução.

Como é que surgiu a ideia de criar um restaurante com desperdício zero?
A questão é que não era essa a nossa ideia. Tínhamos algumas preocupações ambientais, é certo, até porque todos tínhamos trabalhado enquanto cozinheiros e tínhamos noção do desperdício que acontece numa cozinha. Mas a verdade é que começamos a perceber que podíamos fazer mais e mais e, quando demos por isso, já éramos o restaurante mais perto do conceito de desperdício zero que existe.

Carlos Henriques é natural de uma aldeia da Serra da Estrela e o contacto que sempre teve com a origem dos produtos foi fundamental para o desenvolvimento do Nolla

Como é que se chega a esse patamar?
Foi um mudar de mindset. Nós não inventámos nada. Aliás, quando contei à minha mãe como é que o Nolla funcionava ela disse-me: 'Mas isso era como se fazia antigamente'. E tem toda a razão.

Em que é que se vê essa tentativa de desperdício zero no vosso restaurante?
Em primeiro lugar, o chef não tem qualquer tipo de controlo sobre o menu. Aliás, nós não temos menu. O chef cozinha aquilo que os produtores dizem que está disponível. O que temos na nossa cozinha é uma espécie de cronologia de sabores e com isso sabemos o que vai bem com o quê, quais os sabores que melhor se conjugam. Como não temos menu, tudo é decidido na hora. Perguntamos ao cliente se prefere o menu de três ou cinco pratos e se há algo que não goste ou não queira comer. A partir daí é que começa o processo criativo.
Não é fácil, atenção, e ainda bem que nos primeiros dias tínhamos só dez clientes por noite [risos]. Agora, mesmo com a casa cheia, é incrível ver o chef pensar num menu de cinco pratos em 15 segundos. É até mais fácil agora, com o restaurante cheio. Dantes tínhamos sempre que pensar no que fazer com o que sobrava, normalmente sobremesas ou compotas.

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É um desafio à criatividade.
É mesmo. Costumo fazer um desafio em escolas, onde ponho os miúdos numa espécie de Masterchef, em que têm que cozinhar com determinado cabaz, como acontece no programa, mas desta vez, sem caixote do lixo. É muito giro ver que 90% das pessoas se adapta facilmente a este conceito de ter que aproveitar tudo. É a prova de que o ser humano gosta dos seus hábitos e é muito avesso à mudança.

Já tinha uma preocupação com a sustentabilidade antes do Nolla, ou isso cresceu com o trabalho no restaurante?
Tenho muito mais essa preocupação desde que estou no Nolla, sem dúvida. Quando pensámos no restaurante, sabíamos que tivesse uma vertente mais ecológica, mas depois não soubemos parar. A parte mais aliciante do projeto é essa: posso andar aqui a trabalhar dez anos para reduzir o desperdício, que há sempre mais alguma coisa a fazer.

Pensaram na hipótese de não servir carne?
Não foi uma decisão fácil, até porque estamos cientes da poluição provocada pela criação de bovinos. Mas todos os produtos que entram no Nolla têm que fazer sentido. Se temos um produtor biodinâmico, que tem as vacas porque precisa delas até para evitar o desperdício na sua quinta, mas que ao fim de alguns anos vai acabar por matá-la, nós ficamos com ela. São os fornecedores que ditam as regras do que é servido e quando um deles nos diz que vai matar um animal, nós compramos o animal inteiro e servimo-lo durante três, quatro meses.

O que fazem com os ossos?
O compostor funciona, no máximo, com os ossos da dimensão dos do frango. Para os restos de animais maiores, temos um processo de fazer carvão com os ossos, que é depois usado no grelhador do restaurante. Isto tudo depois de já terem sido usados para caldos.

No Nolla, ainda entra alguma coisa embalada?
Nada. No Nolla existe apenas um caixote do lixo, que está ligado a um iPad no qual o funcionário tem que inserir dados sobre o que vai lá pôr. No fim, o sistema diz-lhe exatamente aquilo que está a desperdiçar, tanto em termos ambientais como económicos.

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Poupam dinheiro com esse aproveitamento?
A produção fica mais barata do que num restaurante normal, porque as pessoas esquecem-se que o que deitam fora é desperdício. Além disso, os restaurantes na Finlândia pagam pelo lixo que produzem. O restaurante que funcionava no sítio onde agora está o Nolla pagava 1200 euros por mês. Nós compramos uma máquina de compostagem que está paga daqui a dois anos e a partir daí vamos ter apenas o consumo de energia da máquina, à volta de 20 euros por mês.
A par disso, temos uma equipa mesmo empenhada em não desperdiçar nada. Digo mesmo que temos o melhor food cost (rácio entre o que gasta e o que se ganha na concepção de um prato) que alguma vez vi em qualquer restaurante. E mesmo comprando produtos locais e orgânicos, naturalmente mais caros do que os dos supermercados.

Foi fácil encontrar produtores que estivessem em linha convosco?
Nem por isso. A primeira vez que nos disseram que havia pombos, eles chegaram-nos embalados individualmente em plástico. Isto mesmo depois de explicarmos todo o nosso conceito.
As bebidas foram um grande desafio também. O champanhe, por exemplo, só pode ser vendido como champanhe se tiver aquele invólucro de alumínio na rolha. Eu tive que convencer um produtor a vender-me o champanhe dele sem esse invólucro e dando-lhe o nome de vinho de mesa. O mesmo com o whisky ou o gin. Posso não ter aquele especial de dez anos, mas tenho um que sei de onde vem e que é posto nas nossas garrafas.

Como é que formaram a equipa?
Comecemos por nós os três. Eu, o Luka Balac e o Albert Franch Sunyer trabalhámos juntos enquanto chefs e atualmente, o Albert está responsável pela cozinha, o Luka pela sala e eu pela gestão do negócio.
O resto da equipa inicial foi feita com amigos e conhecidos e, neste momento, tenho noção de que os estragámos para toda a vida, nunca mais vão saber trabalhar num restaurante normal [risos].

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Porquê?
Porque nós não temos sacos de vácuo, não temos película aderente, não temos especiarias nem fermento, nada do que é a banal em qualquer restaurante.

Como é que se cozinha sem especiarias?
As pessoas acho que se esqueceram do verdadeiro sabor dos alimentos. Eu lembro-me de ser miúdo e ir buscar um tomate ao quintal, abrir, pôr um bocado de sal e era maravilhoso. Às vezes não é preciso mais nada.
Além disso, é tudo uma questão de logística. Nós não temos especiarias também porque na Finlândia ainda não existem lojas a granel e não conseguimos ainda comprar nada que não venha embalado. E não nos parece viável ter que ir ao Zimbabwe para comprar pimenta.

Os prato são todos criados na hora, com os ingredientes que os produtores têm disponíveis

A Finlândia não tem mercearias a granel. É um exemplo do que ainda há para fazer também por lá?
Há muito a fazer, em algumas coisas a Finlândia não está assim tão à frente de Portugal. Existem, por exemplo, restaurantes que fazem comida com produtos que iam para o lixo e na reciclagem estão anos-luz à frente de Portugal. Um restaurante lá é capaz de ter oito separações de lixo, desde papel, cartão, embalagens, orgânicos ou latas. Mas a questão é que os países mais desenvolvidos, como a Finlândia, focaram-se em resolver o problema e não em evitá-lo.
Acredito que as coisas vão mudar. Quando visito cozinhas em Portugal dizem-me sempre que isso aqui não funcionava. É difícil cá, como é difícil lá. Aliás, aqui é mais fácil conhecer os produtores e ter uma maior variedade de produtos da época.

Seria possível replicar o Nolla em Portugal?
Sem dúvida nenhuma. É possível abrir em qualquer lado, é só uma questão de mudar o mindset. Qualquer restaurante pode ser zero waste.