A minha filha mais velha é um amor de miúda — e não é por ser minha filha, que sou a primeira a dizer que a mais nova tem o diabo no corpo e é uma anti-social de primeira. Mas a Carmo é, realmente, um amor de criança, do género de querer ser amiga de todos os meninos e meninas.

É aquela criança que adora ir para a escola, adora ir para a natação, adora as aulas de ballet à sexta-feira à tarde. Mas ao contrário do que acontece em todos os outros sítios, comecei a reparar que, na escola de dança, não tinha tantas amigas. "É normal", pensei eu."Os miúdos são assim", convencia-me eu de que nada se passava, até porque ela sempre continuou a dizer que adorava ir.

Até que esta sexta-feira, depois de uma aula, a Carmo disse algo ao pai, que a foi buscar à escola de dança. "Três meninas foram más para mim. Disseram que não queriam ser minhas amigas porque eu parecia pobre", disse esta miúda de 5 anos. E o meu coração gelou. Estamos em 2023, e ainda continuamos a julgar as pessoas pelas marcas que usam, pela qualidade dos brinquedos que levam para a aula, pelos colégios particulares em que andam ou deixam de andar?

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Pior, desde que ouvi esta frase, há algo que não me sai da cabeça: culpa. Não culpa por ser pobre ou rica (sou jornalista, pessoal, óbvio que não sou milionária), mas por achar que a culpa de a minha filha, que gosta de brincar com toda a gente, ter ouvido aquelas barbaridades sou eu.

Porque o teletrabalho fez de mim uma mendiga funcional de leggings com borbotos, que sai de casa para a ir buscar à escola e pôr no ballet em tempo recorde, com um computador debaixo do braço para não falhar no trabalho. "Ando sempre descabelada, mal-vestida e é claro que pensam mal de mim e foram dizer às filhas e agora é a miúda que sofre", pensei eu. E depois acordei do meu devaneio ridículo, pouco importante e nada racional, e percebi que o problema não sou eu, não são os meus borbotos, muito menos a minha filha — e não são aquelas crianças.

São quem lhes dá (ou não) a educação, e ainda, em pleno século XXI, continua a achar que podemos julgar as pessoas pelo aspeto, roupa, marcas, cor, dinheiro ou orientação sexual. São pessoas que acham que pertencem a elites por pagarem colégios particulares ou escolas de dança da moda acabadas em "azzy".

São pessoas tão pequenas por dentro, que conseguem retirar a alegria a crianças inocentes por terem ervilhas no lugar dos cérebros. E que podem ser ricas, mas são muito pobres de inteligência emocional, civismo e vá, noção.

Mas como é que nos aguentamos sem querer partir tudo? Como é que explicamos que não é ser pobre ou rico, que isso não tem importância nenhuma, quando elas ouvem dos seus pares essas coisas? Quando começam desde pequenas a serem postas de lado por, supostamente, terem menos dinheiro do que as outras?

Cresci num colégio privado da linha, a dividir turma com filhos de jogadores de futebol e administradores. Grande parte dos meus amigos vivia em vivendas com piscinas, eu num T2 arrendado. E já ia na terceira classe quando percebi que talvez tivesse uma vida ligeiramente diferente da dos meus colegas. Provavelmente percebi algo quando achei normal pedir ao meu pai para ir para a equitação na Penha Longa, com direito a cavalo particular, e ele riu-se na minha cara, num jeito de "como é que eu vou explicar isto".

Mas gostava de aprender com os meus pais, que conseguiram educar-me para eu nunca sentir que as minhas diferenças financeiras em relação à maioria dos meus colegas faziam de mim uma pessoa menor. E que a minha filha não cresça com esta ideia.

O pior? É que para quem sofre de ofensas diárias, xenofobia, racismo, este meu problema é de primeiro mundo. E isto só me dá um cheiro de realidade do quanto continuamos a ser uma merda enquanto sociedade.

Íamos ficar todos melhores depois da pandemia, não era? Pois.