É uma tristeza. Jaz o ser humano na terra há 350 mil anos e ainda precisamos de discutir conceitos tão básicos como o respeito. "Homo Sapiens" significa "homem sábio", mas eu tenho para mim que se tratou de um erro de casting. Se Deus existir deverá estar algures lá em cima prestes a gritar "Corta! Este filme está uma merda! Quem é que se lembrou de inventar os humanos? Chamem já o argumentista." Ou então o guião assume mesmo um retrocesso, o que significa que estamos a andar no sentido contrário. E o que é que isto quer dizer? Que mais dia menos dia, voltamos à primeira etapa da nossa existência e seremos chimpanzés. É o efeito Benjamin Button na evolução. Sim, eu sei que a narrativa dos deuses entra em conflito com a de Darwin, mas deixem-me brincar.
O gravíssimo défice de empatia de que padecemos reflete-se em inúmeras situações do nosso dia a dia, mas nada baterá a forma como nos manifestamos na selvajaria das redes sociais. Na semana passada entrevistei três mulheres incríveis: a Mafalda Fonseca, a Catarina Corujo e a Catarina Sousa, três modelos plus size que desempanham um papel importantíssimo nas suas plataformas digitais. Elas desfazem uma série de estereótipos altamente tóxicos, não só em relação às pessoas gordas, como em relação ao amor-próprio do sexo feminino no geral, cuja felicidade e autoestima tantas e tantas vezes depende exclusivamente das formas que o seu físico assume.
Aquilo que aconteceu depois foi irónico. Juro que há momentos em que penso que sou o Jim Carey no Truman Show, mas num filme de comédia negra. No Instagram, num artigo que refletia sobre a gordófobia, nascem como cogumelos os comentários gordofóbicos, quase todos escritos por mulheres, algumas das quais com mais de 60 anos, o que nos prova que idade e sabedoria estão pouco relacionadas.
Mas, bom, ao invés de estar a cascar nesta escória com um gravíssimo défice de empatia e de conhecimento, irei pelo caminho da pedagogia, desmontando junto de vós quatro argumentos absurdos que são o motor da gordófobia — quatro argumentos tacanhos, como todos os que estão por detrás de raciocínios preconceituosos e destrutivos.
Vamos lá ver.
1. Os gordos são gordos porque não fecham a boca
Pois é, quem diz isto é porque, de facto, não compreende a complicada e traiçoeira máquina que é o corpo humano. Lamento informar-vos: "Não é obeso quem quer, é obeso quem pode", disse-me Mariana Monteiro, médica, investigadora Multidisciplinar de Investigação Biomédica e professora da Universidade do Porto, a propósito de outro artigo que escrevi. Metam isto na cabeça: é preciso ter "terreno genético" para se ser obeso, o que quer dizer que a maior parte da pessoas obesas "tem predisposição genética para desenvolver" esta doença, podendo, inclusivamente, herdá-la dos seus familiares. Isto tem que ver com vários fatores: com a quantidade de genes poupadores, que não deixam fazer uma gestão eficiente da energia, e ainda fatores ambientais externos, que passam de mãe para filho, e que se relacionam o consumo de nicotina, de tabaco, de plásticos, de alimentos processados, havendo ainda um problema relacionado com a regulação da saciedade.
Depois, há de facto quem engorde por comer muito. E isto é da responsabilidade de outra máquina muito traiçoeira, que é a mente. A compulsão alimentar, que é comer com os sentimentos e não com a fome, é um problema emocional sério, a que todos estamos sujeitos e que, muito provavelmente, muitos de nós já experimentaram, em situações esporádicas. Mas a verdade é que este é um distúrbio alimentar, que afeta muitas pessoas e que opera através de gatilhos que nos fazem ir buscar prazer (ou um castigo) à comida. Isto não é uma invenção dos gordos, é um problema real, reconhecido por especialistas da área da psicologia. Também já escrevi sobre compulsão alimentar. Podem ler aqui.
2. Os gordos que não estão escondidos a deprimir-se estão a promover a morte
Isto é muito bom. Agora o gordo tem de viver escondido do mundo, infeliz e deprimido numa qualquer caverna, porque, se for feliz, tiver autoestima e amor próprio é promotor da morte e da obesidade. Uma pessoa gorda que tenha um Instagram sobre positivismo corporal é um demónio que nos quer engordar a todos, porque está a dizer que ser gordo é positivo e que isso é que está a dar.
Vamos por partes.
1. Primeiro, nunca ouvi falar de ninguém que quisesse engordar porque viu uma influencer gorda. O efeito que o trabalho destas instagrammers tem é, na realidade, incrivelmente positivo: muitas pessoas, pela primeira vez na vida, percebem que são mais do que um corpo, que não é só isso que as define. Percebem que não precisam de se odiar, mesmo que, durante toda a sua vida, a sociedade lhes tenha dito o contrário. De repente, percebem que também o mundo é delas: podem ter uma vida social, podem gostar de roupas, podem gostar de se maquilhar, podem querer ir a restaurantes e, adivinhem, podem até podem treinar. Elas estão a dizer a todas as mulheres, até hoje presas à ideia de que é o corpo que as define, "calma, tu és muito mais do que isso".
2. E isso não quer dizer que promovam o desleixo. Pelo contrário: fazermos as pazes com aquilo que somos é trilharmos o caminho para estarmos mentalmente equilibrados. E, acreditem, só mentalmente equilibrados é que seremos, verdadeiramente, capazes de cuidar de nós.
3. É bastante mais promotor da morte vermos personal trainers a sugerirem suplementos duvidosos, é bastante mais promotor da morte vermos influencers a gabarem-se de como bebem Coca-Cola todos os dias, é bastante mais promotor da morte vermos celebridades a gabarem-se do peso que perderam por causa de uma gastroenterite. Mas, pronto, com esses ok, porque aquele six pack dá carta verde para tudo.
3. Todos os gordos têm maus hábitos de vida
Continuamos na mesma lógica. Se é verdade que a obesidade é uma doença perigosa, por ser a origem de muitas outras, também é verdade que nem sempre o nosso peso é um reflexo do nosso estado de saúde. Há pessoas gordas com ótimos hábitos e pessoas magras com péssimos hábitos. E, reforço: ninguém quis ficar gordo porque viu um influencer gordo. Por outro lado, quantas miúdas com corpos normais não farão de tudo para ficar com o corpo editado das capas de revista? Pergunto-vos: ao final do dia, o que é que será mais lesivo?
4. Fazer piadas sobre gordos é giro
Não se trata dos limites do humor, mas da qualidade do humor. Quando Ricardo Araújo Pereira diz que o "cigano é um povo que é todo para ir à vida" não está a gozar com os ciganos, mas, antes, com as pessoas que gozam com os ciganos. Isto é refinado. Isto é prova de que estamos perante um cérebro que pensa, que reflete, que sabe que é um ponto insignificante no universo. Agora, piadas com gordos, é o inverso: é preguiçoso, é brega e muito pouco inteligente. É bullying do sexto ano.
Não façam isso. É que pode vir a ser um filho vosso o alvo da piada. E isso, se calhar, já não dá assim tanta vontade de rir.