Há 29 dias, quando Andreia Silva entrou em quarentena, a primeira coisa em que pensou não foi, como na maioria dos casos, em como passar o tempo. O primeiro pensamento foi: "Serei capaz de lidar com a comida? Será que vou ter mais compulsões alimentares? Será que vou engordar?".

Como tantos outros problemas de saúde mental, é a mente que influencia pensamentos como: "não devia ter comido a quarta peça de fruta porque dizem que só se pode comer três"; ou "estou cheia de de fome, mas vou esperar até à próxima refeição para comer". A juntar a isto está também o exercício físico, visto como uma compensação ou forma de controlo por muitas pessoas com distúrbios alimentares, mas que agora está mais limitado.

"Apesar de não praticar exercício físico regularmente, acabo por andar bastante durante a semana pelo facto de morar longe da faculdade que frequento. Estando em quarentena, o número de passos diminui para dar lugar ao tempo de lazer e descanso, contudo a alimentação mantém-se. Para mim, é perturbador pensar nisto, comer e parar para mim não é solução. A cabeça não aceita e critica-me, julga-me quando o faço", conta à MAGG Andreia, estudante de reabilitação psicomotora.

Tem apenas 21 anos, mas há cerca de um ano este tipo de pensamentos começaram a tomar conta de Andreia. Sempre se preocupou com o corpo, de uma forma saudável. Começou a praticar ginástica com 3 anos, passou ainda pelos trampolins e a ginástica acrobática — desporto que praticou até aos 16 anos. Foi nesta altura que se viu confrontada com o primeiro desafio: uma lesão no joelho que a impediu de continuar a treinar, ainda que tenha insistido, em sofrimento, durante três meses. Contudo, tornou-se incomportável e teve mesmo de abandonar a modalidade para se dedicar à fisioterapia.

"Não aumentei drasticamente o que comia, mas bastou parar de treinar 4 horas por dia, 7 dias por semana, para que tudo cedesse. Olhava para o espelho e para a balança com vontade de mudar. Eram 68 quilos de tristeza, de solidão, de melancolia, de depressão, de baixa auto-estima e confiança. Em 4 ou 5 meses comecei a vestir o L ou um 38 de calças, isso era o meu maior sofrimento", conta Andreia.

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Em setembro de 2018, começou a mudar a alimentação de forma consciente, equilibrada, comendo de tudo, no entanto, as coisas mudaram no ano seguinte, em abril, quando percebeu que podia perder mais peso em menos tempo, sem olhar a consequências. "Comecei a tirar tudo aquilo que era 'acessório', arranjando estratégias para que ninguém percebesse", diz.

Cortou coisas como a carne, os iogurtes, os hidratos de carbono e todos os processados e congelados que existem no mercado. "Tudo isto era sustentável, comia todas as refeições, embora pouco em cada uma. Bebia perto de 7 litros de água por dia mais alguns chás e via os quilos na balança a descer em modo maratona".

Resultado? Calças 32, camisolas S e XS, 46 quilos, uma obsessão alimentar, mas também uma felicidade que a dominava por conseguir os resultados que queria. Contudo, apercebeu-se de que não estava satisfeita: "Tornou-se um vício, uma droga, ver o peso a baixar a cada semana". Começou a aparecer uma fraqueza que quase a fazia desmaiar, bem como um cansaço que permanecia desde que se deitava, até que acordava de manhã.

A 15 de Novembro de 2019, Andreia Silva iniciou a reabilitação para tentar contrariar um risco iminente: a cama de hospital, ainda que admita que não colocava isso em hipótese — as prioridades eram outras. Apenas cinco meses passaram desde que começou a recuperação e apesar de ter assente que quer lutar, aceitar o corpo e trabalhá-lo para se sentir bem consigo mesma, este é um caminho difícil e cheio de desafios. A quarentena é um deles.

"De uma forma geral, a quarentena pode agravar qualquer quadro psicopatológico pré-existente e/ou potenciar alterações em pessoas sem perturbações anteriores. Sendo o distúrbio alimentar, de certa forma, um mecanismo para lidar com o desconforto das emoções, é expectável que possa agravar-se neste momento de forte adversidade na medida em que existe uma grande ativação emocional e, talvez, menos distrações. Paradoxalmente, para muitas pessoas pode ser uma fase de maior superação e resiliência, descobrindo forças e recursos que não imaginavam ter", explica à MAGG a psicóloga clínica e psicoterapeuta Alexandra Barros.

Mas o que é que podemos entender por distúrbio alimentar? "É aquilo a que chamamos de uma perturbação do comportamento alimentar. É algo que merece atenção e que pode evoluir para uma situação mais grave. Todos nós temos uma relação emocional com a comida e muitas vezes depositamos nesta relação algumas questões mais inconscientes e difíceis de gerir", esclarece a nutricionista Margarida Beja, mais conhecida como "em banho maria" no Instagram, distinguindo assim aquilo que é uma má relação com a comida, ou seja, um comportamento alimentar perturbado, de um distúrbio alimentar.

Pesquisámos por "distúrbios alimentares" no site do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para perceber se há dados, conselhos ou contactos que ajudem quem esteja num destes casos. Por estranho que pareça, o único distúrbio de que se fala no site é a obesidade. Perto de um milhão de adultos sofre desta patologia, de acordo com a Fundação Portuguesa de Cardiologia, mas quantas serão as pessoas que sofrem de anorexia, bulimia, ortorexia (obsessão pela alimentação saudável) ou outras perturbações alimentares?

Não há um número total, até porque estas não são doenças fáceis de diagnosticar por se caracterizarem precisamente pelo silêncio e ocultação de comportamentos, mas sabe-se que em 15 anos perto de 4.500 pessoas foram hospitalizadas com doenças do foro alimentar, de acordo com os últimos dados divulgados pelo serviço Nacional de Saúde, em 2018.

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A recuperação em quarentena

Inês Pinto Viana, 32 anos, começou a recuperação em 2011. Já lá vão 9 anos, é certo, mas quem passa por um distúrbio alimentar enfrenta desafios durante longos anos, com melhores e piores fases pelo meio. O isolamento trouxe mais um: "Sou uma pessoa de rotinas e, como é óbvio, uma pessoa com um distúrbio alimentar tem tendência de controlo e, com o isolamento, é muito mais difícil gerir isso. Estamos sempre em casa com tudo disponível a qualquer hora e, mesmo tendo ocupação, como é o meu caso, pois tenho aulas online, vou à cozinha e já está", refere a estudante de Culinary Arts na Escola de Hotelaria e Turismo do Porto, que já foi também advogada.

A área de estudo alia-se ao facto de adorar cozinhar o que, segundo a mesma, dificulta mais nesta fase. "A gestão é muito difícil. Acho que vou chegar ao fim deste isolamento sem ainda ter conseguido uma boa gestão, mas já me sinto melhor do que no início – portanto, já há progressos", diz Inês que começou a quarentena a 13 de março.

Admite que este período está a influenciar o distúrbio e já teve alguns retrocessos, contudo, anseia pelo dia em que tudo volte ao normal. O tempo até é imprevisível e tal como Inês, outras pessoas em recuperação querem tentar manter-se num bom caminho. Mas como fazer isso?

"Em primeiro lugar tentar manter o acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico, tendo em conta que grande parte dos profissionais continua a trabalhar online. Depois, procurar identificar, legitimar, expressar e partilhar o que está a sentir, que é o grande desafio de quem sofre de distúrbios alimentares", refere a psicoterapeuta Alexandra Barros. Essa partilha pode ser com alguém com quem estão a passar a quarentena ou alguém de confiança com que pode contactar através das tecnologias.

Além disso, a especialista aconselha que se tente canalizar as emoções de forma criativa, no desenho ou dança, por exemplo, bem como praticar meditação e exercícios de relaxamento. Procurar aconselhamento nutricional é também importante, e, por fim, a psicoterapeuta Alexandra Barros destaca: "Tolerar e aceitar as recaídas e as falhas no processo".

No que diz respeito ao aconselhamento nutricional, é aqui que entra a nutricionista Margarida Beja, que refere que "há casos em que existe um plano negociado e ajustado à fase em que a pessoa se encontra". Contudo, noutras situações, pode fazer mais sentido não ter um plano de forma a desviar a necessidade de controlo pela alimentação e trabalhar outras questões. "Isto deve ter sempre acompanhamento psicológico por base, já que o nutricionista tem uma ação muito limitada quando isto não acontece", esclarece.

Esta pode ser uma das limitações do isolamento, mas o teletrabalho e o digital têm facilitado essa tarefa. No caso de Inês, vai mesmo começar a ter consultas de psicoterapia online, tendo esperança que ajudem particularmente neste momento, mas também na restante recuperação.

"Fiquei preocupada, para mim treinar é um escape, é o único momento do dia que tenho só para mim"

Com a quarentena, vimos crescer o número de treinos online, apelos para os portugueses começarem a mexer-se, e publicações de quem acabou de cumprir o seu treino em casa. Essas partilhas, que podem passar ao lado de muitas pessoas, são para outras que estão a recuperar ou em fase grave de um distúrbio como um alerta que diz ao cérebro que estão a falhar, que precisam de se mexer.

"O facto de parecer que as pessoas estão a treinar imenso fez-me sentir um pouco 'culpada', no sentido em que achei que deveria estar a fazer o mesmo. Principalmente ao início, porque tive alguma dificuldade em ter motivação para treinar em casa. Agora estou muito tranquila, já encontrei a minha 'rotina de quarentena'", diz Anaísa Gonçalves, 27 anos, que revela que durante anos teve uma relação demasiado obsessiva com a comida e com o exercício físico, entretanto praticamente ultrapassada.

Contudo, admite que esta nova fase não deixou de ser uma preocupação: "Para mim, treinar é um escape, é o único momento do dia que tenho só para mim e em que não penso em nada. Procurei alternativas, claro, e encontrei. Faço treinos em casa diariamente com ajuda de canais do YouTube e aproveitei ainda este tempo para iniciar a prática de ioga", conta Anaísa e acrescenta que neste momento o seu principal objetivo não é “ser fit”, mas contribuir para parar a pandemia.

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Tal como Anaísa, também Inês que procurou alternativas, ainda que já andasse a ver equipamentos para ter em casa antes de o surto acontecer. "Quando efetivamente a escola fechou, fui a uma loja e comprei caneleiras, um haltere, um tapete e umas bandas. Entretanto, comprei uma bicicleta estática e penso que já dá para fazer uns treinos bem eficazes", conta a estudante de Culinary Arts, acrescentando que também tem recorrido ao YouTube, Instagram, e às sessões online como seu personal trainer, Marcos Vieira.

Apesar de Anaísa referir que o exercício é como um escape, a nutricionista Margarida Beja esclarece que este não é um escape num distúrbio alimentar, pelo menos numa fase mais aguda. Pode, no entanto, ser muitas vezes usado como forma de controlo, o que nem sempre significa que seja feito de forma positiva e adequada.

No que diz respeito à situação que vivemos, a nutricionista refere: "Especificamente em situações de isolamento e neste contexto das doenças do comportamento alimentar, o mesmo [a prática de exercício físico] deve ser discutido com o médico ou um profissional da área do exercício qualificado para o efeito", de forma a seja adaptado à situação clínica e ao estado nutricional da pessoa, acrescenta.

O lado de quem vê tudo a acontecer: a gestão familiar

A família é em muitos casos o apoio que nas várias fases das patologias assume diversos estados: a vontade de ajudar, a incompreensão, a tomada de medidas drásticas e a paciência. São também eles que agora que estamos de quarentena tentam lidar com quem debaixo do mesmo teto está a passar por um distúrbio alimentar.

Vivem à escuta de um vómito forçado, de olhar atento no que está no lixo e de palavras medidas porque sabem que algo que parece inofensivo pode ferir. Como pode então a família gerir tudo isto nestes tempos que perante um distúrbio de outra pessoa podem ser ainda mais difíceis?

"Como em qualquer outro tipo de quadro psicopatológico, uma postura empática e compreensiva tem sempre melhores resultados do que contrariar ou confrontar. A pessoa está em sofrimento e este reflete-se na sua relação com a comida. Não é uma mania das dietas, não é gulodice. Talvez seja o momento para tentar compreender um pouco melhor, de abrir o diálogo, de escutar e de apoiar, sem respostas do tipo 'tens de te controlar', 'não penses nisso', 'tens de relaxar', 'tens de ter força de vontade'", diz a psicóloga clínica Alexandra Barros, acrescentando que contrariar e confrontar pode potenciar o comportamento secreto e solitário que caracteriza estas patologias.

Por outro lado, pode ajudar simplesmente a dizer: "imagino que esta situação esteja a ser muito difícil para ti, não sei como te posso ajudar, mas estou aqui". E, quem passa por um distúrbio, sabe que esse apoio está sempre lá em cada recaída ou derrota, quase sem ser preciso dizer: "Vejo nos olhos da minha família, nos seus sorrisos nas suas expressões o quão feliz e encantador é ver-me a comer algo que todos comem, sem me sentir mal e sem chorar por ter engolido algo que não queria", refere Andreia Silva.

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Comer algo que todos comem não significa que resultou de uma mudança brusca. Andreia revela que até chegar aí foram precisos pequenos passos. "Fui aprendendo a lidar com toda a situação e arranjar estratégias que me pudessem igualar aos outros. Por exemplo, o jantar é lasanha. Porque não adaptar de forma a que eu também não tenha receio de a comer?", diz.

Passou, por exemplo, a substituir as natas da lasanha por algo mais nutritivo, a massa normal por uma integral, de espinafres ou lascas de courgete. Seja de que forma fosse montada, o importante era a camada final: comer à mesa com a família sem que isso fosse um drama.

"Pode parecer banal comer uma lasanha, mas no nosso caso pode ser um drama, que pode conduzir a fenómenos de ansiedade que podem ser controlados e antecipados com um simples gesto", refere a jovem de 21 anos.

Pode acontecer também que, dado a típica ocultação dos comportamentos, o caso de distúrbio ainda não tenha sido detetado, mas o convívio agora mais frequente causa alguma ansiedade de quem sofre dos mesmos com medo de serem descobertos. Diferentes quadros têm sinais distintos, mas no geral um dos primeiros é a oscilação do peso.

A par destes, a psicóloga refere que outros sinais agora mais evidentes podem ser: "Evitar comer junto dos familiares, um foco excessivo na comida, nomeadamente estar sempre a falar de comida, a ler obsessivamente rótulos, a contar calorias ou pesar alimentos, a catalogá-los como bons ou maus, uma marcada rigidez, queixas frequentes de indisposição que podem ser uma forma de mascarar a intenção de procurar o vómito, desaparecimento de grandes quantidades de comida, estar constantemente a comer ou, pelo contrário, evitar comer".

"Os hábitos são outros e estamos todos a fazer o nosso melhor e, como tal, importa tentar minimizar a culpa"

Enfrentar esta fase de isolamento não é trabalho fácil para ninguém, especialmente para quem tem um transtorno alimentar. Contudo, a nutricionista Margarida Beja, que no seu Instagram fala frequentemente sobre comportamento alimentar, deixa alguns conselhos.

"É importante legitimar as nossas ansiedades e receios perante uma situação que não podemos controlar e o controlo pela comida pode aparecer de forma a compensar esta impossibilidade. Todos nós precisamos de trabalhar a nossa capacidade de flexibilidade e auto-compaixão: os hábitos são outros e estamos todos a fazer o nosso melhor e, como tal, importa tentar minimizar a culpa já que nesta fase é muito difícil ter rotinas, fazer exercício, aceder ao mesmo tipo de alimentos e nas mesmas quantidades", refere a nutricionista que defende o contacto frequente com profissionais de saúde sempre que possível, uma vez que são fundamentais na gestão destas questões.

Apesar de reconhecer que o isolamento não significa necessariamente um aumento de casos de distúrbios alimentares, refere que pode "dar ênfase ou exacerbar alguns sintomas naquelas pessoas que, por diversos motivos, têm uma relação emocional difícil com a comida".

Já no caso de quem tem ou está a recuperar de um distúrbio, o pós quarentena pode ser mais um desafio uma vez que significa o adaptar novamente a outra rotina, bem como o regresso da vida social que muitas vezes é condicionada por estas situações levando, por exemplo, ao cancelamento de jantares com amigos ou ao evitar partilhar horas de almoço com colegas de escola ou trabalho. Ainda assim, o regresso à "normalidade" vai sempre depender do caso.

"Independentemente do quadro psicológico, acho que há pessoas que vão revelar maior resiliência e até retirar algum crescimento na sua viagem interior imposta pela quarentena, mas outras vão debater-se seriamente com os seus conflitos internos", refere a psicoterapeuta Alexandra Barros.

Em ambos os casos, as emoções vão sofrer alterações e para ajudar a organizar aquilo que a quarentena deixou ao descoberto, a psicoterapeuta aconselha o recurso à psicoterapia e ao aconselhamento nutricional.