"Quando uma mãe não quer amamentar, precisamos de perguntar porque é que um animal mamífero – que é o que somos – se negaria a fazer algo que faz parte do comportamento natural e instintivo da sua espécie."
Laura Sanches é a autora de "Amar não Basta", que chega às livrarias esta quinta-feira, 23 de maio. No novo livro, a psicóloga clínica explica como devem as mães preparar os filhos para o mundo com cabeça e coração.
Defensora da amamentação até tarde e do co-sleeping, a autora foca-se numa série de estudos recentes na área das neurociências, e nos exemplos e testemunhos reais da psicóloga especializada em Gestão de Stresse, Mindfulness, Técnicas de Relaxamento e Psicologia Positiva.
Na véspera da publicação de "Amar não Basta", a MAGG faz a pré-publicação do capítulo dedicado à amamentação.
Períodos de amamentação prolongada
"Nas sociedades tradicionais, a amamentação era realmente a melhor forma, se não a única, de garantir que o bebé teria todas as probabilidades de sobreviver. Se, por algum motivo raro, a mãe não pudesse amamentar, se morresse no parto ou se não quisesse fazê‐lo, teria de haver outra mãe que se dispusesse a amamentar o bebé – por isso existiam as amas de leite.
Hoje sabemos que a amamentação tem inúmeros benefícios para a saúde: o colostro, o leite que é produzido nos primeiros dias de vida do bebé, pode ser considerado um verdadeiro superalimento e tem uma quantidade de nutrientes e de vitaminas e outros benefícios que são impossíveis de reproduzir, além de que também tem um papel essencial na formação do microbioma. O leite materno tem a capacidade quase mágica de se adaptar aos bebés a quem é destinado: o leite produzido pelas mães de rapazes é um pouco diferente do leite produzido para as raparigas – o dos rapazes tem mais calorias e o leite que se produz para um recém‐nascido também é diferente do leite que as mães produzem para crianças mais velhas: vai‐se adaptando de forma perfeita às necessidades nutricionais da criança. E, se o bebé estiver doente, o leite da mãe muda de composição e leva‐lhe também anticorpos preciosos, produzidos pelo sistema imunitário da mãe, mais maduro e eficiente, para o ajudar a combater a doença.
Ainda não se sabe exactamente como é que isto funciona, mas há uma hipótese que diz que, quando o bebé mama, o organismo da mãe pode absorver quantidades milimétricas de saliva do bebé que lhe permitem saber se entrou em contacto com algum tipo de microorganismo para o qual o sistema imunitário da mãe consiga produzir anticorpos. Assim, estes anticorpos passam imediatamente a ser produzidos pela mãe que, por sua vez, os transmite através do leite ao bebé. Esta será uma das razões pelas quais se tem comprovado que os bebés amamentados têm tendência para adoecer menos e, quando ficam doentes, recuperam mais depressa e com menos necessidade de medicação.
Com tudo isto que sabemos hoje, existem vários profissionais que começam a tentar repor a verdade sobre a amamentação e a defender que esta é realmente a melhor maneira de alimentar um bebé. Por isso, existem já vários hospitais classificados como amigos dos bebés, onde é suposto que a amamentação seja defendida e protegida através das práticas que a facilitam: como o contacto pele com pele na primeira hora de vida e o não dar chupetas nem biberões – e a verdade é que as estatísticas indicam que quase 100% das mães tem alta da maternidade a amamentar. O problema é que isto parece nem sempre continuar por muito tempo e a taxa de abandono no primeiro mês já é significativa, mas aumenta muito a partir dos cinco, seis meses e são poucas as mães que continuam a dar de mamar depois dos seis meses e ainda menos as que o fazem depois do ano de idade.
Para a geração de mães que nasceu e cresceu nos anos 60 e 70, a amamentação foi‐se tornando uma coisa mais rara. Nesta altura, começava a surgir uma espécie de fé muito grande na ciência, ao mesmo tempo que nos afastávamos e desconfiávamos mais dos instintos. Assim, começou a achar‐se que um leite pensado e desenhado num laboratório que podia ser medido, controlado e analisado seria algo em que podíamos confiar mais do que aquele que saía naturalmente do corpo das mulheres. Assim, os médicos começaram a incentivar cada vez mais mães a dar esse leite. À primeira dificuldade na amamentação, ou mesmo sem ela, o biberão era sugerido como algo mágico que até fazia o bebé dormir mais e crescer melhor, para além de também libertar a mulher, razão por que deveria ser sempre preferido. Isto esteve ligado também à entrada da mulher no mercado de trabalho e a uma época em que a fome ainda era uma coisa presente, sobretudo nas comunidades rurais e por isso um bebé bem gordinho – que as fórmulas facilitavam – era o maior desejo de qualquer mãe e achava‐se que lhe dava uma espécie de garantia de saúde. Isto fez com que se fosse perdendo a cultura da amamentação e, com a diminuição do número de filhos por mulher, esta passou a tornar‐se algo cada vez menos frequente e com que muitas mulheres nunca chegaram a ter contacto antes de serem mães.
Depois, com todas as intervenções que passaram a ser frequentes nos partos e com a presença cada vez menor de mães com experiência que pudessem dar apoio e orientação, o facto é que amamentar se foi tornando uma coisa quase rara. Penso que estaremos agora no fundo da curva descendente, em que foi diminuindo o número de crianças amamentadas, e começamos a recuperar este comportamento como sendo uma parte essencial da criação de um bebé humano, tal como acontece com todos os mamíferos.
Ainda assim, existe, por vezes, alguma controvérsia ligada à questão de não podermos impor a amamentação a uma mãe que não deseja amamentar. Vivemos numa sociedade de direitos em que os direitos do indivíduo são muito valorizados e parece incorrecto dizer que uma mulher não tem o direito de fazer o que bem entender com o seu próprio corpo.
Mas acredito que esta não é uma questão de direitos: porque, se fosse, os do bebé teriam de ter, pelo menos, o mesmo valor que os da mãe ou até mais, já que a amamentação é tão inquestionavelmente importante para o seu crescimento e saúde. Então, quando uma mãe não quer amamentar, precisamos de perguntar porque é que um animal mamífero – que é o que somos – se negaria a fazer algo que faz parte do comportamento natural e instintivo da sua espécie. Se tivéssemos uma gata ou cadela que tivesse acabado de ter uma ninhada e se recusasse a dar‐lhe mama não iríamos pensar que ela tinha esse direito, mas ficaríamos preocupados por não apresentar um comportamento esperado, natural e importante para a sobrevivência das crias. Tentaríamos perceber o que é que se passaria de errado que a levasse a não seguir o instinto.
Pois, é isso que penso quando alguém me diz que não quis dar de mamar, ou que optou por deixar de o fazer muito cedo: o que se terá passado com aquela mãe, mulher, mamífera, para não querer alimentar a sua cria da forma mais saudável, natural e instintiva? Podem existir vários motivos para que tal aconteça. No caso das mães que amamentaram durante algum tempo e pararam por terem surgido complicações, muitas vezes são a pressão social, a falta de apoio e de confiança no próprio corpo e no seu leite que as fazem parar.
Mas o caso de uma mulher que não quer amamentar é diferente daquele de alguém que até queria, mas que acaba por desistir por causa das dificuldades que vai encontrando.
Mitos e dificuldades que atrapalham o instinto
— O mito do leite fraco é talvez dos mais nocivos e um dos que mais leva as mães a dar biberão. É um mito porque não existe tal coisa, o nosso corpo, na sua sabedoria, vai buscar todos os nutrientes para fazer o melhor alimento que o bebé pode receber. Mesmo no caso de mães doentes ou malnutridas, o corpo continua a ser capaz de produzir um leite de melhor qualidade do que qualquer fórmula artificial. Li em tempos um livro impressionante sobre três bebés que nasceram no campo de concentração de Auschwitz em plena Segunda Guerra Mundial. Todos eles nasceram de mães altamente subnutridas, que eram obrigadas a trabalhar e a suportar condições extremas com uma dieta de apenas 300 calorias por dia. Estes três bebés nasceram com cerca de 500 g e o único alimento a que tiveram acesso durante os primeiros tempos foi o leite das suas mães. E ainda hoje estão os três vivos. Vi também uma reportagem em que um contava que a sua mãe ficou com muitos problemas nos ossos porque o corpo foi‐lhes retirando todo o cálcio que conseguia para alimentar o filho. Porque, mesmo no caso de uma mãe a viver uma tragédia como esta, o seu organismo é capaz de gastar todos os recursos para dar prioridade à sobrevivência do bebé.
— Outro mito que também é comum e que importa combater é o de que há mulheres que não têm leite. Na verdade, até as mães adoptivas, que nunca chegaram a dar à luz, podem amamentar. Uma vez li uma notícia sobre uma mulher grávida que morreu de acidente mas em que foi possível salvar o filho que já estava no final da gestação. A mãe dessa mulher que morreu – avó do bebé – decidiu amamentar o neto e conseguiu fazê‐lo com sucesso. Também há casos de duas mulheres que têm um filho mas em que ambas se preparam e são capazes de amamentar, mesmo a que nunca esteve grávida. Então, na verdade, não faltam casos de mulheres que, mesmo sem a ajuda das hormonas que se geram durante a gravidez e o parto, conseguem produzir leite.
— Por vezes, também há a ideia de que o leite pode acabar, por causa de alguma tensão ou simplesmente porque acabou. Mas isto também não é verdade; pode acontecer que o stress impeça o leite de sair tão facilmente, dificultando um pouco o reflexo de ejecção, mas não faz com que ele deixe de ser produzido. Pode acontecer que, por vezes, a mãe esprema o mamilo e não saia leite nenhum e isto, sobretudo se o peito já não está inchado, faz com que algumas mulheres pensem que já não têm leite. Mas isso pode ter várias razões: primeiro, o peito não estar inchado significa apenas que o corpo já se ajustou à quantidade de leite que é necessária e por isso deixa de acumular e passa a produzir mais na altura em que o bebé começa a mamar; isto acontece geralmente uns três meses depois do parto, que é uma altura em que muitas mães param de amamentar. Mas também pode acontecer que a mãe não tenha
pressionado bem o peito, porque é preciso uma pressão especial e não apenas apertar o mamilo para que o leite saia.
Outras vezes também acontece que nos primeiros segundos em que o bebé começa a mamar o leite pode ainda não ter descido e, se ele já estiver com muita fome, pode ficar bastante impaciente e começar logo a chorar, o que faz a mãe pensar que não tem leite.
Nestes casos, o bebé já está com muita fome, já despertou a sua resposta de alarme e já está a chorar e muito impaciente e a mãe também começa a ficar nervosa, o que pode dificultar um pouco o tal reflexo de ejecção. Se o bebé vem à mama e o leite não sai imediatamente, ele pode ficar frustrado e começar a chorar ainda com mais força, o que, por sua vez, deixa a mãe ainda mais nervosa. Também pode acontecer que o bebé chore apenas porque já está em estado de alerta e não se consegue acalmar imediatamente, mesmo que o leite já esteja a sair.
O facto de não se conseguir tirar leite com uma bomba também não quer dizer que não haja leite, mas simplesmente que a visão da bomba e o seu estímulo na mama não são suficientes para enganar o corpo que sabe que precisa do bebé para produzir as hormonas que desencadeiam a produção de leite. Por isso, muitas mães que precisam de tirar leite para deixar aos bebés quando não estão optam por tirar de uma mama enquanto ele mama da outra ou, quando estão longe dos bebés, usam fotografias e tentam lembrar‐se dos filhos o melhor possível.
Na verdade, o mais comum quando uma mãe dá de mamar durante algum tempo e o filho simplesmente pára é que ela ainda continue a produzir leite durante muito tempo, durante vários meses ou até mesmo anos, em alguns casos. Há muitos casos de mães que precisam de ficar longe dos filhos durante alguns dias por doença ou por viagem e, quando voltam, a amamentação continua como se nunca tivesse sido interrompida. Porque, sobretudo depois de este processo estar bem estabelecido, o corpo vai continuar a produzir leite ainda durante muito tempo. Um dos poucos eventos de vida que pode realmente diminuir muito, ou até impedir a produção de leite, é uma nova gravidez. Porque nessa altura o corpo começa a preparar‐se para dar prioridade ao novo bebé que irá chegar.
Uma grande dificuldade com que muitas mães se deparam é a questão da pega: muitas vezes os bebés, porque o seu instinto não foi activado na altura certa ou por outro tipo de problema (como o freio curto), podem ter dificuldade em abocanhar a mama de forma adequada para conseguirem retirar leite suficiente. Nestes casos, as mães costumam ter muitas dores durante o processo e é importante saber que isto pode ser corrigido com a ajuda de conselheiros de aleitamento materno. Estes são profissionais qualificados, que podem ser médicos, enfermeiros ou vir de outras áreas mas que fizeram uma formação específica para ajudar mães a lidar com as dificuldades que possam surgir neste processo.
Mas, se é triste o facto de muitas mães quererem amamentar e não serem capazes de o fazer por muito tempo devido à falta de apoios, parece‐me ainda mais triste algumas mães dizerem que não amamentaram mais porque não quiseram, pura e simplesmente.
A amamentação não tem que ser um mar de rosas para toda a gente. Se muitas mães dizem que adoram amamentar e que este é um momento especial e belo, também há outras que o vêem apenas como algo que fazem porque querem o melhor para os filhos. E, tanto um como outro, são comportamentos naturais. O que não é natural é alguém não querer ter um comportamento intintivo que sempre foi essencial para a sobrevivência da espécie. A vida actual distancia‐nos do corpo. Vivemos muitas vezes num plano demasiado racional e esquecemo‐nos de ouvir os instintos e de sentir o corpo.
Amamentar um bebé traz‐nos de volta ao corpo. Sentirmos o nosso bebé em contacto com o corpo, a alimentar‐se de uma forma tão íntima de um alimento que é produzido por nós, pode despertar emoções muito intensas. E a verdade é que essas emoções – sobretudo para alguém que vive desligado do corpo – podem ser assustadoras. As emoções são vivenciadas através do corpo e a amamentação chama‐nos ao corpo e às emoções e, por vezes, temos medo de o fazer. A gravidez e a maternidade, sobretudo nos primeiros tempos, são períodos muito emocionais em que nos lembramos de que, além de sermos pessoas, também somos animais, em que sentimos a força da Natureza em nós e amamentar também nos lembra disso.
Por estarmos mais em contacto com o corpo e com as emoções de uma forma mais profunda, também ficamos mais vulneráveis: o pós‐parto é uma altura em que é mais fácil aparecerem medos antigos e feridas mal curadas. É uma altura em que nos sentimos naturalmente mais frágeis. E a verdade é que nem sempre vivemos bem com o corpo, que vai armazenando todas as feridas que preferimos
não sentir. Realmente, habituamo‐nos demasiadas vezes a viver com um certo distanciamento do corpo e das emoções e nem sempre estamos preparadas para entrar nesse modo de funcionamento mais instintivo e muito mais ligado ao corpo para onde a amamentação nos leva.
Fazemos parte de uma geração em que muitas de nós não foram amamentadas; por muito bem intencionadas que tenham sido as nossas mães ao fazê‐lo, é natural que isto tenha deixado em nós alguns pontos dolorosos que ficam guardados na memória implícita. E, mesmo que nos tenham dado de mamar e que tenhamos tido pais bem intencionados, é muito possível que haja feridas que nunca foram curadas e que ficaram guardadas sem nos darmos conta. E é o corpo que guarda todas estas informações, é no corpo que sentimos essas feridas e é por isso que nos fechamos e que desligamos algumas partes dele para não termos de entrar em contacto com essa vulnerabilidade. E, quando vivemos toda a vida com essas partes de nós desligadas, pode ser muito assustadora e intimidatória a forma como a amamentação nos faz despertar para essas partes.
Ter um bebé a mamar agarrado ao nosso corpo e sabermos que ele depende disso para viver e para estar bem tem tanto de gratificante como de assustador, sobretudo quando não temos a melhor história com a forma como nos relacionamos com o corpo.
Esta também pode ser uma razão pela qual muitas vezes as mulheres que viveram abusos não conseguem dar de mamar. Porque a sua história as obrigou a ficar mais desligadas do corpo e ter um bebé que precisa de se servir dele pode fazê‐las lembrar desse abuso e das memórias dolorosas, ao mesmo tempo que pode trazer também de volta a sensação de não se ser dona do próprio corpo e
desenterrar fantasmas assustadores do passado em que alguém o usava contra a sua vontade. Nestes casos, é importante pedir ajuda e saber que, como todos os outros fantasmas, é preciso trazê‐los para a luz e enfrentá‐los para que eles percam a força, mas pode ser muito difícil fazer isso sozinha.
A verdade é que seremos melhores mães quanto mais disponibilidade tivermos para olhar para essas feridas. Enquanto não formos capazes de as aceitar e integrar no presente, não poderemos resolver o passado e, enquanto não o fizermos, não será possível estarmos totalmente em contacto com os nossos sentimentos. Existirão sempre esses fantasmas que nos assombram e assustam. E, desta forma, não poderemos estar plenamente em contacto com os nossos filhos. Os bebés só sabem relacionar‐se com o mundo através das emoções. E só podemos relacionar‐nos com as emoções dos nossos filhos se aceitarmos as nossas. Isto significa que precisamos de ser capazes de activar também o nosso hemisfério direito, que está mais ligado às emoções e às sensações corporais. Mas, se passámos toda uma vida a dar preferência ao hemisfério esquerdo, que é muito mais analítico e racional, pode ser assustador sentir que a amamentação está a fazer‐nos activar esse lado.
A amamentação faz isso porque nos obriga a estar em contacto com o corpo. Acontece que o hemisfério direito também está muito associado a um sentimento mais global, menos analítico; o esquerdo está habituado a lidar com detalhes e explicações e liga mais aos pormenores do que ao todo. Então, o facto de deixarmos que o nosso hemisfério direito passe a estar mais activo – e o contacto físico com o bebé a que a amamentação obriga é uma forma de o fazermos – significa que também passaremos a ser mais capazes de nos sentirmos ligadas ao bebé e de ouvirmos o instinto, porque deixamos de ficar tão dependentes das explicações analíticas e racionais que o nosso hemisfério esquerdo produz, procura e valoriza.
Amamentar é estar em contacto com o bebé, connosco e com todas as emoções que podem surgir, boas ou más. Assim, mais do que perder tempo com quem tem direito a quê, o que é preciso perceber, reconhecer e aceitar é que uma mãe que não quer amamentar é uma mulher que foi ferida e que não quer reconhecer e voltar a sentir essa ferida. Quando somos crianças, não temos como nos defender de muitas coisas que magoam, por isso guardamos dentro de nós, bem escondido, aquilo com que não somos capazes de lidar. Os filhos podem ser uma forma fantástica de nos fazer voltar a entrar em contacto com essas feridas que foram guardadas e com as quais podemos mais facilmente aprender a lidar, agora que somos adultas. E os nossos filhos merecem que, pelo menos, tentemos fazê‐lo. Merecem que estejamos dispostas a tentar entrar em contacto com todas as partes de nós. Porque só se o fizermos é que podemos ter oportunidade de quebrar o ciclo e de não lhes deixar feridas que também eles terão de guardar em alguma parte de si.
Dar de mamar até quando?
Esta é uma questão que angustia muitos pais e que pode levar a vários tipos de conflito e mal‐entendidos.
Através da análise dos esqueletos, é possível ver o tipo de alimentação que faziam os nossos antepassados e isso permite‐nos ver que o mais comum era as crianças serem alimentadas principalmente através do leite materno durante o primeiro ano de vida, ao mesmo tempo que, por volta dos seis, sete meses, começavam a experimentar alimentos e continuavam a mamar pelo menos até aos três anos de idade, em média. Mas havia muitos casos em que a amamentação durava até aos seis, sete anos. Se observarmos as culturas que ainda vivem de forma tradicional, é também isto que encontramos e, se tivermos em conta os animais mais próximos de nós, o que nos dizem os números é que os primatas, como os chimpanzés e gorilas, costumam amamentar durante um período equivalente a cerca de seis vezes o tempo que dura a sua gravidez, o que daria cerca de quatro anos e meio, para um ser humano.
Alguns primatas também parecem ter tendência para desmamar as crias apenas quando lhes nascem os molares definitivos, o que, no caso dos seres humanos, não costuma acontecer antes dos seis, sete anos de idade. Talvez venha daí a expressão dentes de leite. Também há quem diga que os primatas, sobretudo aqueles que têm um tamanho mais parecido com o nosso, costumam desmamar quando a cria atinge um peso quatro vezes superior ao que tinha ao nascer, por volta dos dois anos e meio para os humanos.
Então, podemos olhar para esta questão por várias lentes e, consoante a que escolhermos, temos uma amplitude grande para aquela que seria a idade natural para o desmame de uma cria humana: que deveria andar algures entre os dois anos e meio e os sete. Isto quer dizer que tudo o que se situe neste intervalo deveria ser considerado normal e natural mas, infelizmente, o que acontece é que a esmagadora maioria das crianças nas sociedades ocidentais tem um desmame que, segundo estes dados, deveria ser considerado precoce.
A verdade é que até ao final da primeira metade do século XX, pelo menos nas aldeias, ainda era comum verem‐se crianças a mamar até aos cinco, seis, sete anos e também era frequente que comessem muito pouco durante o primeiro ano de vida, sendo o leite o seu alimento principal nesta fase. Até porque havia menos alimentos e pouca variedade disponível, sobretudo nas classes mais pobres; por isso, o leite materno era uma fonte de nutrientes que não podia ser desprezada.
Um dos argumentos que leva muitos médicos a criticarem os períodos de amamentação prolongada – que, na realidade, se deveriam chamar períodos de amamentação natural: é que a OMS recomenda que esta se mantenha no mínimo durante dois anos, mas que isto seria apenas para os países subdesenvolvidos, em que há poucos alimentos e em que a água disponível está muitas vezes contaminada e não há higiene suficiente para preparar fórmulas em segurança.
Mas, se pensarmos um pouco, este argumento não faz sentido: não é porque temos acesso a tudo isto que o leite materno perde o seu valor nutritivo e toda a sua importância na formação e constituição do microbioma e do sistema imunitário que ainda está em formação nos primeiros anos. Não faz sentido nenhum dizer que as crianças precisam de beber leite de vaca ou consumir fórmulas – que até têm ingredientes nocivos, como o açúcar – e desprezar o valor nutritivo do leite materno que, para muitas pessoas, parece que se transforma em água a partir de uma certa idade.
É verdade que, para uma criança de dois ou três anos que já come de tudo, o leite materno poderá não ser propriamente essencial do ponto de vista alimentar. Mas isso não quer dizer que perca o seu valor nutritivo. Também não é essencial comermos mirtilos, por exemplo, no entanto, há muitas investigações que defendem que são um excelente alimento e que têm uma enorme concentração de antioxidantes e só temos a ganhar se os incluirmos na nossa dieta.
Então, o leite materno também continua a ter uma série de nutrientes importantes, mesmo para crianças mais crescidas.
Por outro lado, também existem alguns profissionais, pediatras e psicólogos incluídos, que afirmam que as crianças que são amamentadas até mais tarde acabam por ter menos autonomia e ficam mais dependentes da mãe que, no fundo, não quer deixá‐las crescer e é por isso que se recusa a parar de amamentá-las. Primeiro, é preciso dizer que não há nenhum estudo que prove isto, até começam a surgir evidências justamente do oposto: as crianças que vêem as suas necessidades respeitadas são crianças que se tornam mais rapidamente autónomas. E outros que mostram que as crianças que mamaram mais tempo têm até um QI mais elevado. Isto pode acontecer não só pelo valor nutritivo do leite materno, mas porque o toque e a proximidade física que a amamentação favorece são realmente um alimento importante para o desenvolvimento do cérebro.
Não quer dizer que uma mãe que dá biberão a um filho não possa também fazê‐lo de uma forma carinhosa e que não possa dar‐lhe esse amor e acolhimento que o fazem crescer. E não quer dizer que uma mãe que alimenta com biberão não possa também estabelecer um vínculo forte e seguro com os seus filhos, mas é preciso reconhecer que o contacto físico e íntimo que a amamentação promove
pode facilitar esse vínculo.
É verdade que uma mãe, em casos extremos, pode dar de mamar de uma forma fria e desligada e também que se pode dar um biberão com todo o afecto e carinho, mas a verdade é que é mais fácil sentirmos‐nos ligados à criança e ela sentir‐se ligada a nós se estamos em contacto corporal. É possível e acontece em alguns casos, infelizmente, ensinar bebés de poucos meses a pegar no biberão e alimentarem‐se sozinhos, mas é impossível que um bebé esteja a mamar sozinho; a menos que a mãe esteja muito desligada de si, do seu corpo e das suas emoções, ter o filho a mamar obriga‐a a sentir‐se presente, a sentir‐se ligada e não podemos desprezar este efeito na criação do vínculo.
Para além de toda a questão hormonal que também terá o seu papel, já que a amamentação ajuda a produzir oxitocina, a tal que também contribui para o fortalecimento dos vínculos.
E os bebés precisam de sentir esse contacto, razão por que até há quem recomende que, no caso de a mãe precisar mesmo de dar biberão, o faça despida e com o bebé junto da sua pele, estimulando essa proximidade. O importante é sabermos que a amamentação é mesmo a forma mais natural de criar um bebé e, por isso, sempre que ela não seja possível, é bom fazermos tudo para que o acto de dar biberão se aproxime o mais possível disso, sobretudo nos primeiros tempos de vida.
Depois, também é preciso perceber que nenhuma mãe consegue obrigar uma criança a mamar. E todas as crianças, quando lhes é permitido decidir, chegam a uma altura em que deixam simples mente de querer mama.
Todas as crianças têm motivação para crescer: todas querem andar, falar e fazer tantas coisas que os crescidos fazem. Isto acontece, em parte, pela vontade de imitar os adultos importantes para elas, mas também porque todas as crianças têm essa tendência inata para preencherem o seu potencial. Assim, da mesma forma que existe esta vontade imbatível e inata de aprender a andar e falar, as crianças também vão deixar de mamar, da mesma forma que irão deixar de fazer tantas outras coisas que pertencem apenas à infância.
Então, nenhuma mãe consegue obrigar um filho a mamar mais do que consegue obrigá‐lo a não aprender a andar, ou a não aprender a falar ou a usar fraldas para sempre.
Uma das questões que, por vezes, se coloca é que se o bebé está habituado a adormecer sempre na mama, o pai não consegue adormecê‐lo e isto pode fazer alguns pais sentir a amamentação como uma espécie de entrave à criação de um vínculo forte com os filhos. Mas a realidade é que os bebés adaptam‐se e, se é verdade que o pai não tem mama, ele pode usar outros recursos, como embalar o bebé passeando com ele no colo ou usando uma bola de pilates, por exemplo, e o mais importante é justamente que aprenda a acalmar e a relaxar o bebé com os seus próprios recursos. Poderá haver alturas em que isto seja um pouco mais desafiante mas, se o pai estiver presente e disponível desde o início, ambos aprenderão a encontrar os seus próprios ritmos e recursos.
Há médicos que defendem que dar de mamar a uma criança com mais de doze meses é fazer com que esta entre num comportamento regressivo que pode pôr em causa o seu desenvolvimento e a sua autonomia. Não posso deixar de dizer que me parece que esta ideia tem por base uma visão muito superficial, geralmente baseada na teoria psicanalítica. A psicanálise é apenas um dos modelos usados em psicologia para nos permitir ter alguma compreensão do processo de desenvolvimento e estruturação da mente humana. Mas é também um modelo antigo e um modelo que, como todos os outros, tem vindo a evoluir e a modificar‐se em função dos novos conhecimentos que vão surgindo. Mas é muito fácil alguém pegar em algumas noções básicas de psicanálise e acabar por interpretar de uma forma limitada e fundamentalista algumas das suas ideias. Então, isto é o que acontece quando alguém afirma que amamentar uma criança com mais de doze meses de idade é provocar um estado regressivo que pode limitar o crescimento psicológico dessa criança.
Porque, de acordo com a visão psicanalítica, uma criança que procura a mãe para mamar até pode estar a fazer uma ligeira regressão nesse momento, mas é uma regressão ao serviço do crescimento, porque essa regressão lhe permite encontrar o conforto e a segurança necessários para continuar a crescer e a conhecer o mundo, os que a rodeiam e a si própria. Essa regressão é necessária para que, a seguir, a criança possa seguir em frente, com confiança. Porque o crescimento não acontece sempre de forma linear. E quando não nos é permitido fazer regressões na altura certa, acabamos por precisar de as fazer mais tarde e, geralmente, de forma muito menos adaptativa.
Então, neste campo, precisamos muito de nos libertar de fantasmas e preconceitos. As mamas existem para alimentar bebés. Ponto. Os nossos filhos não têm culpa que vivamos numa sociedade em que a sexualização excessiva do corpo feminino nos leve a ter tantos fantasmas no sótão que achamos que ver uma mulher a amamentar uma criança de dois, três, quatro ou cinco anos em público é algo de indecente, quase pornográfico. Ao mesmo tempo que essa mesma parte do corpo da mulher é abusivamente usada para tudo em marketing, até para vender carros."