O início do programa "Goucha" foi marcado por lágrimas. Não do apresentador, mas antes da convidada desta segunda-feira, 11 de janeiro. "Sente a falta do seu marido?", atiraManuel Luís Goucha a Ana Gomes, ex-eurodeputada e candidata à presidência da República. "Tenho", responde. A voz trémula confirma-o.
Ana Gomes começa assim a entrevista: a recordar António Franco, que morreu em julho de 2020. Relata a última conversa que teve com o antigo embaixador, já internado: "Essa conversa foi decisiva, porque ele me encorajou a avançar nesta candidatura. Ele estava muito preocupado com o que ia acontecer à nossa democracia, com as ameaças que estão a acontecer a todas as democracias pelo mundo fora, mas também aqui".
O anúncio de que iria concorrer a Belém fê-la adiar o luto: "Eu entrei nesta campanha e foi como pôr o desgosto numa gaveta, que vou ter de reabrir a qualquer altura", confessa, acrescentando que abraçou o desafio pelos filhos e netos "de todos nós."
"Uma boa parte da inspiração vem dele e eu penso sempre no que é que o António me aconselharia", diz, acrescentando que tinham personalidades muito diferentes. "Porque ele era muito cerebral, muito refletido e dava-me esse lado que me complementava muito bem."
"Pedíamos dispensa das aulas de religião e moral. Era uma afirmação política contra o regime"
Manuel Luís Goucha repete a frase que Ana Gomes proferiu num dos debates com o candidato André Ventura: "Eu vivi a ditadura". A partir desse momento, entramos na segunda parte do programa, durante o qual a ex-eurodeputada relembra os tempos do Estado Novo e de como a sua família lhe deu, desde cedo, consciência política.
"Lembro-me de aos 12 ou 13 anos ter dito qualquer coisa sobre Salazar à mesa e a minha mãe me ter mandado sair. E eu fiquei muito chocada, porque eu sabia que a minha mãe pensava sobre ele ainda pior do que eu. Mas hoje eu compreendo, porque era para me proteger. Ela tinha medo que eu viesse a repetir aquilo cá para fora."
A conversa segue para os tempos de liceu. "Na família pedíamos dispensa das aulas de religião e moral", conta. "Era uma afirmação política contra o regime, porque essa dispensa dependia do Ministro de Educação. O encarregado de educação, que era a minha mãe, tinha de pedir."
Ana Gomes ingressou a faculdade nos tempos do ministro da Educação Nacional, Veiga Simão, no rescaldo da morte do estudante Ribeiro Santos, assassinado pela PIDE — figura que veio a tornar-se num ícone da revolta estudantil que, por sua vez, levou à introdução dos famosos "gorilas" nos estabelecimentos de ensino académico.
"Eu vou para a faculdade, em 72, e é exatamente a seguir que há o assassinato do estudante Ribeiro Santos pela PIDE", conta. "Eram seguranças, mas eram indivíduos que tinham vindo da guerra colonial e que estavam ali para reprimir os estudantes e para reprimir os professores porque chegavam a entrar nas aulas a pedir satisfações aos professores", conta. "Era um regime terrível."
Ana Gomes conta que quis juntar-se à facção mais radical contra o "regime repressivo" e também devido à guerra colonial. "Fui eleita delegada de curso, em que a atuação legal", conta. "Por detrás, havia uma estrutura clandestina, que eram os tais comités de luta anti-colonial e que, por detrás, ainda teria o MRPP [Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado ]."
Através desta "estrutura clandestina", Ana Gomes chegou a riscar paredes, com mensagens revolucionárias contra o Estado Novo. Refere um muro junto ao miradouro das Portas do Sol, onde numa "noite muito escura e fria", escreveu "abaixo a guerra colonial". "Era uma prova de fogo para ver se tínhamos coragem e para fugir à polícia", conta. "Foi uma escola de aprendizagem."
Depois do 25 de abril, Ana Gomes continuou no MRPP, trabalhando na sede central, tendo inclusivamente sido membro durante o 25 de novembro. "O MRPP esteve do lado certo, com o Partido Socialista (PS), com o general Ramalho Eanes, contra a tentativa de golpe totalitário."
Mas terá sido pouco depois disto que a socialista se afastou: "Afastei-me com 21 anos, porque cheguei à conclusão de que ali também havia uma vivência totalitária em que as pessoas não podiam ter vida familiar. Entretanto tinha casado e tinha tido uma filha"
Ana Gomes tirava ilações sobre a democracia nestes tempos. "Fez-me refletir que a democracia não se constrói da noite para o dia. Nós temos de a construir e criar. E portanto vale a pena apostar nisso. E o MRPP tinha uma visão muito cética do regime democrático e dizia que era controlado por fascistas. E, sim, havia lá fascistas, como o general Spínola. Mas havia gente boa", lembra,
Não tem qualquer vergonha de ter pertencido a este movimento, que foi uma "escola importante de trabalho e dedicação política", considera. "O Durão Barroso entrou no MRPP depois do 25 de abril e não nos tempos duros em que arriscámos tudo. E ninguém o embaraçou por isso."
"Eu candidato-me também pelas mulheres do nosso país"
Depois de "45 anos a trabalhar pela democracia e direitos humanos, no nosso país e outros países", Ana Gomes abraça um desafio, em parte dedicado às mulheres — a quem, recorda, nos tempos da ditadura era vedado o acesso à carreira diplomática. "Foi o o doutor Mário Soares, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, que abriu a carreira diplomática para as mulheres em 75", lembra.
Admite o progresso que a democracia trouxe à igualdade de género, mas fala ainda em "combates pela frente". "Eu candidato-me também pelas mulheres do nosso país, claramente pelas mulheres do nosso país que trabalham, que hoje estão qualificadíssimas", alerta, acrescentando que "muitas têm a dupla jornada de trabalho, porque quantas vezes não têm o trabalho e depois as tarefas de casa".
A "partilha" de tarefas em casa e campo familiar é ainda "desigual". "E até mesmo agora, com o teletrabalho, são as mulheres que estão mais sobrecarregadas. Mais do que nunca, precisamos de ter fiscalização por parte das autoridades do trabalho, para não permitir abusos e sobretudo abusos contra as mulheres."
É preciso lutar contra o fenómeno da "violência machistas, numa sociedade ainda muito antiquada e patriarcal", onde "90% das vítimas em casa e no espaço público são mulheres e crianças", aponta.
"Isto tem de mudar. Eu acho que uma mulher na presidência da República pode fazer uma grande diferença para que isto mude" diz. "Uma diferença que claramente farei será a garantir que há de facto paridade. "
"Eles estão aqui, como na América, a pregar o ódio. Ainda no outro dia, esse senhor admitia que podia cortar as mãos aos ladrões."
Houve várias referências a André Ventura, mas nunca o seu nome foi proferido. A conversa em torno do perigo que a democracia enfrenta, não só em Portugal, mas em muitos outros países no mundo, foi desencadeada por um vídeo de Pedro Limões, um jovem de 18 anos que enviou uma carta a Ana Gomes, encorajando-a a candidatar-se a Belém.
"Obrigada por se ter atirado a este combate, pela democracia, pelos jovens, mas principalmente pelo futuro do país", diz Pedro Limões. "Posso atestar que é uma pessoa extremamente dedicada e verdadeira nas causas em que acredita e sei que levará consigo as bandeiras para a presidência da República."
Partindo do sentimento comum em faixas etárias mais jovens, Manuel Luís Goucha introduz então o descrédito pela classe política em Portugal. "Não foi só aqui em Portugal, é em todo o lado", diz a candidata, que dá o exemplo dos Estados Unidos e do Reino Unido. "Olhe para o que se passa na Grã Bretanha. O Brexit é um produto de gente ressentida, gente desapontada com a democracia, que é manipulada e instrumentalizada por forças que têm projetos autoritários."
"Não podemos continuar com aquela história de que somos um jardim à beira mar plantado e de que não se passa nada aqui", diz, lembrando que hoje estamos todos "interligados", num mundo "interdependente e globalizado". André Ventura, ou "esse senhor", por exemplo, utiliza as técnicas utilizadas pelo americano Donald Trump ou pela francesa Marin Le Pen.
"Eles estão aqui, como na América, a pregar o ódio. Ainda no outro dia esse senhor admitia que podia cortar as mãos aos ladrões", lembra. "É a mesma pessoa que defende o confinamento de pessoas de determinadas etnias e que diz que pode até haver uma ditadura de pessoas de bem. Ora, pessoas de bem não são pela ditadura, são pela democracia.
O descrédito pela política, considera, acontece muito porque a sua geração se "deixou contaminar" por corrupção e falta de transparência, fenómenos que engrossam "as fileiras daqueles que apoiam soluções simplistas". E é por isso, na defesa pela democracia, que uma das lutas que promete travar são contra a corrupção.
"Não podemos ser tolerantes em relação à corrupção. E é ai que eu quero fazer a diferença. Não só na justiça, mas no governo na presidência da República e todas as instituições democráticas."
Goucha questiona a candidata sobre o político que mais a desiludiu. Ana Gomes refere todos os que se "deixaram capturar pelos interesses privados". Mas não era essa a resposta que o apresentador queria. "Sócrates desiludiu-a?", pergunta.
"Sócrates desiludiu-me. Mas, se bem está lembrado, eu nunca apoiei Sócrates. Designadamente nas contendas internas do PS. quando ele foi eleito secretário-geral eu não apoiei Sócrates", diz. "Houve muita coisa que se foi sabendo que me deixava perplexa: o curso tirado ao domingo, casas inenarráveis", lembra, acrescentando que "não sabia nessa altura da missa a metade, como todos os portugueses: viver às custas do amigo, a mãe rica."
Segunda pergunta mais sensível: está arrependida por ter contratado Paulo Pedroso, pergunta Goucha. "Não, eu conheço bem Paulo Pedroso. Eu confio nele. Ele foi completamente ilibado pela justiça portuguesa e europeia, que, alias, até fez o Estado português pagar-lhe uma indemnização", diz. "Ele foi vítima e uma intrigalhada terrível que eu espero que um dia se esclareça completamente".
A ilegalização do Chega
Ana Gomes desmente Manuel Luís Goucha que afirma que a candidata disse que iria "fazer de tudo" para ilegalizar o Chega, partido da extrema-direita que levou André Ventura para a Assembleia.
"O que me ouviu dizer foi que eu, sendo presidente da República, iria dizer à Procuradoria Geral da República que levasse à reapreciação do Tribunal Constitucional a legalização desse partido", diz. "Estamos a falar de uma força que põe em causa a Constituição da República", lembra, "O líder tem dito que quer substituir a Constituição falando de uma 4.ª República."
Depois, fala na polémica em torno das assinaturas falsas: "A legalização [do partido] fez-se com assinaturas falsas, com assinaturas de pessoas mortas. 2500. Ha um processo em curso", diz. "Isso é crime. Então, como é que se permite a legalização? Permite-se que o crime compense?"
Menciona ainda outro aspeto: "a prática deste partido", ligada à disseminação de ódio. "Quem é presidente da República promete cumprir a constituição", diz. "O Tribunal Constitucional não pode ser apenas uma entidade pro forma, tem de olhar para a prática do partido em causa", diz, referindo que há artigos na Constituição e no Código Penal que criminalizam princípios semeados pelo Chega.
Por último, Goucha pede que Ana Gomes escolha uma palavra: "Esperança", diz. "Somos um grande país, um grande povo", lembra. Ana Gomes acredita que pode fazer diferença para todos: para os jovens, para os velhos. E para os que ficam no meio."