Um jovem de 18 anos que planeava um ataque à Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa (FCUL) foi detido esta quinta-feira, 10 de fevereiro, pela Polícia Judiciária (PJ). O plano seria posto em prática esta sexta-feira, 11, pelo estudante que tinha como objetivo matar o maior número possível de colegas, de forma indiscriminada, num dia em que decorriam exames que iam juntar centenas de alunos.
O que pode levar um jovem de 18 anos a planear um ataque deste género? Há sinais aos quais se pode estar atento para intervir na altura certa? De que forma a crescente ligação dos jovens às redes sociais, jogos violentos ou fóruns ocultos pode potenciar comportamentos como estes? Falámos com especialistas para tentar responder a estas questões.
Para Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, é importante ir além de classificar o ataque como um ato de terrorismo e tentar perceber o que pode, a nível psicológico, ter motivado a "iniciativa desviante". Frisando que o que importa agora não é arranjar culpados — e tentar perceber o que é que os pais, professores e comunidade educativa podiam ter feito de diferente no crescimento deste jovem — Filipa Jardim da Silva alerta para a necessidade de se perceber a falta de atenção que continua a ser dada à saúde mental das faixas etárias mais novas.
"Este jovem, na minha perspetiva, é uma manifestação aguda da doença psicológica que está neste momento prevalente nas crianças e jovens. Quando nós olhamos para a incidência preocupante de comportamento de automutilação e de suicídio, temos aqui um espelho disto mesmo. Nós temos aqui uma manifestação de desintegração, temos um jovem que nos diz que durante 18 anos de vida não se conseguiu ligar o suficiente aos outros que o rodeiam e não conseguiu, dentro dele, dar nome ao que sente e criar motivos saudáveis para existir. Isto é uma falha global."
Até agora, o estudante foi sempre descrito como uma pessoa reservada, bom aluno, mas com algumas dificuldades de relacionamento com outros indivíduos. Em entrevista aos vários meios de comunicação social, quem conhecia o jovem desde criança revela ter ficado surpreendido com a notícia e sem perceber o que o terá levado a planear um ataque deste género.
À MAGG, Filipa Jardim da Silva explica o que pode justificar um comportamento destes por parte de um jovem que, à partida, não apresenta motivações ideológicas.
"Nós estamos numa era em que os ecrãs e as tecnologias entraram na nossa vida com muita força. Quando olhamos para estes jovens adolescentes e jovens adultos, percebemos que eles cresceram numa geração cujos pais não tiveram propriamente grandes oportunidades de treinar inteligência emocional", começa por referir a psicóloga, acrescentando que, muitas vezes, as questões estão também relacionadas com a estrutura familiar.
"Estamos perante sistemas familiares que são cada vez mais desconectados. Vários elementos vivem na mesma casa e partilham o mesmo espaço, mas não estão ligados entre si, não têm uma ligação emocional segura. Coabitam, mas não trocam experiências, não partilham emoções, não conseguem confiar uns nos outros para satisfazer as suas necessidades emocionais e psicológicas momento a momento."
Até agora, não há certezas de que o caso possa ou não estar relacionado com algum problema de saúde mental, mas Filipa Jardim da Silva realça que há traços de personalidade "que vão sendo cozinhados de forma meio subtil" e que podem ser indicadores de que algo não está bem.
"Estamos perante sistemas familiares que são cada vez mais desconectados", Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica
"À partida, sem conhecer este jovem, vemos alguém que está desintegrado da sociedade. Quando nós temos boas ligações enquanto cidadãos, somos orientados para a sobrevivência, para a entreajuda e para a conexão. Se estivermos realmente conectados e ligados aos outros, não vamos pensar fazer mal ao outro porque isso vai contra a nossa programação base. Alguém que pensa fazer mal ao outro é alguém que não está ligado ao outro. Tem de haver convivência e socialização, não só na escola, mas também fora dela."
O problema da exposição sem controlo à internet
Para a especialista, outro grande problema está também relacionado com a falta de controlo por parte dos pais no momento em que as crianças começam a usar as plataformas online.
"Este miúdo com certeza que cresceu a ser exposto e a ter acesso à internet, muitas vezes sem supervisão. Quando nós achamos que um jogo, por ter lá um selo a dizer que é a partir de uma idade, é adequado para um jovem só porque estamos a cumprir com o selo da idade, nós estamos redondamente enganados. Enquanto cuidadores (pais, professores e familiares) precisamos de ter esta atenção mais plena dos conteúdos aos quais os jovens estão a aceder momento a momento, desde um simples vídeo no Youtube às redes sociais ou jogos."
Paulo Rossas, Chief Innovation Officer na Lisbon Digital School, frisa que as pessoas não fazem ideia do que pode existir no mundo digital, além dos sites aos quais estamos habituados a aceder.
"A Dark web é um conjunto de sites que não estão indexados, que ninguém sabe de onde vêm, mas aos quais é possível aceder. Há um browser próprio que permite aceder a esses sites que estão escondidos (e dentro da Dark web vale tudo, desde vender droga a contratar assassinos). O que acontece é que há especialistas a andar pela Dark web que conseguem detetar a entrada das pessoas e movimentações das pessoas", explica Paulo Rossas à MAGG.
Foi assim que as autoridades conseguiram chegar ao plano do jovem de 18 anos, já que o alerta para a intenção do ataque chegou à PJ através do FBI. As autoridades norte-americanas, na monitorização que fazem da internet, das redes sociais e da Dark web, como prevenção do fenómeno do terrorismo, detetaram conversas em chats nas quais intervinha o jovem português e onde este anunciava a intenção que tinha de cometer um ataque em Portugal.
"Da mesma forma que nós tiramos uma carta de condução, devia também haver uma carta que nos dissesse que podemos andar no mundo digital", Paulo Rossas
Na opinião do especialista do meio digital, não há forma de impedir que os jovens acedam a estes sites ocultos, mas apostar na literacia digital e alertar os pais para estas possibilidades é essencial.
"O digital é um mundo um bocado chato porque é um mundo de ninguém e sem regra. Nós temos todos de ter literacia digital e perceber que isto existe e que a grande maioria dos websites estão na Dark web, ou seja, os sites que nós visitamos são uma minoria e não tem nada que ver com o que está escondido na Dark web", frisa Paulo Rossas, acrescentado que "da mesma forma que nós tiramos uma carta de condução, devia também haver uma carta que nos dissesse que podemos andar no mundo digital".
"Isto é uma realidade de ninguém, não há regulamentação e é muito fácil um miúdo de 18 anos entrar nestas Dark Web e ver um mundo totalmente diferente à distância de um clique", continua.
Tendo em conta a difusão não controlada de todo o tipo de conteúdos, Filipa Jardim da Silva frisa que, muitas vezes, as crianças e jovens não têm capacidade cognitiva para selecionar e perceber o que é ou não adequado. "Os adultos têm de ter mais essa monotorização e isso passa não só por fazer a triagem, mas, mais do que isso, apostar nos momentos de diálogo diário. Eu, enquanto educador, devo garantir que estou atento aos comportamentos não verbais da criança. Uma criança ou adolescente, independentemente da idade, que se tende a isolar, que foge para o seu quarto e que se recusa a comunicar com os pais é uma criança em risco", afirma.
"A naturalização e desvalorização daquilo que são marcadores de pouca saúde psicológica está errada"
Para a especialista, é necessário mudar paradigmas e passar a ver os cuidados de saúde mental como cuidados necessário e não opcionais.
"Enquanto temos indicação para a criança ter um pediatra, um médico de família e ir ao dentista, não temos esse acompanhamento na dimensão psicológica e um pai e uma mãe nem sabem, em termos emocionais, o que é que é suposto uma criança de 3, 5 ou 17 anos ser capaz de aceder em termos emocionais. Esta naturalização e desvalorização daquilo que são marcadores de pouca saúde psicológica está errada", diz Filipa Jardim da Silva, frisando que deve-se saber separar os comportamento da identidade das pessoas.
"Um jovem que fala sobre vídeos agressivos e atos de terrorismo na escola não está bem e isso precisa de ser sinalizado atempadamente", Filipa Jardim da Silva
Na opinião da especialista, importa que haja nas escolas profissionais de psicologia em número suficiente para atender às necessidades de toda a comunidade escolar — e não só das crianças e jovens sinalizados com algum tipo de patologia. À MAGG, explica ainda que o acontece no caso das crianças e jovens que consomem jogos violentos é que, muitas vezes, o cérebro perde a noção do que é real e do que é virtual. Os cenários de guerra, destruição e sangue passam assim, segundo a especialista, a ser banalizados por quem passa por uma exposição continua e repetida deste tipo de conteúdos.
"Um jovem que fala sobre vídeos agressivos e atos de terrorismo na escola não está bem e isso precisa de ser sinalizado atempadamente. Para isso, é preciso que haja uma clarificação do que é certo e do que é errado, do que é saudável e não é. É preciso que haja confiança entre os alunos e comunidade educativa e essa confiança precisa de ser muito mais promovida", acrescenta Filipa Jardim da Silva.
"Se esta pessoa realmente sofria de problemas de saúde mental, também devia estar em sofrimento"
A opinião de que este caso deve servir para alertar a comunidade geral para a consciencialização e sensibilização para a saúde mental — caso se venha a verificar que o estudante de 18 anos sofre de problemas psicológicos — é também partilhada por Cátia Moreira de Carvalho, investigadora da Universidade do Porto em psicologia do terrorismo. "Sem querer desculpar, o que é certo é que, se esta pessoa realmente sofria de problemas de saúde mental, também devia estar em sofrimento", diz.
Apesar de ainda não haver confirmação de qualquer tipo de problemas psiquiátricos, e de, na tarde desta sexta-feira, 11 de fevereiro, a juíza de instrução ter validado a indiciação pelos crimes de terrorismo e posse de arma proibida, Cátia Moreira de Carvalho frisa que é necessário clarificar algumas questões tendo em conta a possibilidade de o caso não ter por trás uma motivação ideológica.
"O terrorismo, por definição, é movido por uma motivação política e ideológica e, como tal, é também consciente, racional, deliberado e intencional. Neste caso, aquilo que parece estar a acontecer é que este jovem não estava a ser movido por nenhuma causa política nem a agir em nome de nenhuma causa política e parece que padece de algum tipo de problema de saúde", esclarece Cátia Moreira de Carvalho, frisando ainda que importa esclarecer que pode haver pessoas que sofrem de problemas de saúde mental e que podem de facto agir em nome de uma causa política.
"A conjugação dos dois aspetos existe. É residual, mas existe e, normalmente, quando existe, está associada a casos de violência de extrema direita e nesse aspeto é 14 vezes superior a outro tipo de atores", acrescenta. Além de desejar que este caso abra o diálogo a cerca da saúde mental dos jovens, Cátia Moreira de Carvalho espera ainda que se passe a falar dos conteúdos aos quais os mais novos têm acesso e que são "altamente prejudiciais".
"A verdade é que as pessoas podem mesmo radicalizar-se ao estarem em contacto com conteúdos na Internet para os quais não têm maturidade ou qualquer retaguarda. Este é um problema também para outras áreas porque há um tipo de comportamentos que podem ser cometidos por influencia das redes sociais, como é o caso do bullying", realça.
Neste momento, o jovem de 18 anos encontra-se já em prisão preventiva, sem internamento. A medida foi decretada na tarde desta sexta-feira, 11 de fevereiro, pela juíza do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa que analisou a situação entendeu que existe forte perigo de continuidade de atividade criminosa, estando ainda em causa a perturbação da tranquilidade pública.
No entender da psicóloga Filipa Jardim da Silva, seria importante que o jovem fosse apoiado ao nível da saúde mental. "Ontem ouvia comentários como: 'Parece que este fenómeno dos Estado Unidos pode ter chegado a Portugal. Isto não é propriamente um vírus que vem do ar e que se instala. É preciso olhar e perceber o que é que aconteceu. Nós vemos essa desintegração, é um tempo de exposição à internet brutal, é uma sociedade muito mais fragmentada."
Para a especialista, é agora importante também ter um olhar perante a universidade e as pessoas com quem o jovem de 18 anos contactava, sendo uma boa medida garantir que venham a existir mais psicólogos e mais programas de prevenção e de promoção de saúde psicológica nas escolas e nas faculdades.
"Sinal de que estamos a tirar notas disto era agora perceber como é que os colegas da faculdade e os do secundário, que conhecem este jovem, estão a reagir a isto. Seria importante que houvesse um conjunto de medidas que revelassem que estamos a aprender com estas situações e que são medidas não de controlo, mas de prevenção", remata Filipa Jardim da Silva.