Descreve-se como "anti-social", como alguém que não gosta de "exibir seja o que for" e com uma personalidade "ríspida" que usa para as suas rubricas subversivas e extremadas, porque o humor pede exagero, no "Extremamente Desagradável", o programa da Rádio Renascença, uma emissora de cariz católica, que também está disponível em podcast — sendo já um dos mais ouvidos em Portugal, segundo dados do "Podtail".

Joana Marques, 35 anos, é alguém cujas atividades têm esta particularidade de acabarem em ista: humorista, radialista e argumentista. No entanto, diz que quando lhe perguntam o que faz, a resposta é imediata: "Vou sempre pelo caminho mais fácil e aquele que me parece mais verdadeiro, que é dizer que sou guionista." Não porque se sinta desconfortável com outras denominações, mas porque a sua vida sempre foi escrever.

E é difícil ignorar os resultados: o podcast "Extremamente Desagradável" é já um dos mais ouvidos em Portugal e a própria esteve nomeada para Melhor Humorista do Ano dos Prémios Hiena (prémio atribuído a Bruno Nogueira), sendo a única mulher destacada nessa categoria. Foi-lhe atribuído o prémio de Melhor Rubrica na Rádio.

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Quando lhe perguntamos se o facto de a sua rubrica, que já existe desde a Antena 3 e cujo nome foi dado por Inês Lopes Gonçalves, se ter tornado tão popular faz com que sinta o peso da responsabilidade e a bandeira da representatividade, diz que não. Aliás, responsabilidade é coisa que tenta não sentir na sua vida.

"Da mesma maneira que avalio os humoristas como tendo graça ou não, nunca fui apologista de noites de stand-up só de mulheres. Sempre achei um disparate porque se trata de um espaço e de uma profissão em que, e cada vez mais temos provas disso, as pessoas acham graça independentemente de o humorista em palco ser mulher ou não", argumentando não haver "uma segregação" no meio, mas sim uma espécie de "meritocracia".

Por entre uma conversa que decorreu via Zoom, houve tempo para falar do programa "Altos & Baixos", que criou e apresentou juntamente com o marido, Daniel Leitão, e de como ambos nunca tiveram dificuldade em gerir a vida profissional com a de casal; de como é trabalhar com Ricardo Araújo Pereira ; e de como lida com as críticas que vêm das pessoas de quem fala nas suas rubricas numa emissora que, apesar de matriz católica, nunca lhe impôs nenhum limite.

No momento em que a conversa surge, Joana prepara-se para um direto de 50 horas a acontecer a 16, 17 e 18 de junho, em que, juntamente com Ana Galvão e Filipa Galrão, pretende apoiar a União Audiovisual, numa iniciativa que vai contar com atuações ao vivo de artistas no Rossio, em Lisboa.

Joana Marques.
Quando lhe perguntam o que faz, Joana Marques vai pelo caminho mais fácil e verdadeiro, que é dizer que é guionista

"É uma emissão sem parar. Para nós é uma novidade, porque estamos habituadas ao horário da manhã. A ideia é angariar fundos para a União Audiovisual, uma equipa que se juntou para apoiar todas as pessoas que trabalham no meio  [desde artistas a técnicos de iluminação, por exemplo], que será talvez dos mais lentos a retomar a normalidade na sua plenitude." Embora consciente do sacrifício de estar 50 horas sem dormir, Marques também descreve a iniciativa como um estímulo. "Num ano sem festivais, que acompanhávamos na rádio, é bom poder ter um bocadinho dessa normalidade de volta com músicos a atuar ao vivo e as pessoas a ver", sempre com todas as normas de segurança em vigor.

Apesar do cansaço que prevê sentir já na próxima semana, Joana Marques falou com a MAGG com a mesma energia contagiante que já lhe conhecemos.

É argumentista, humorista, já fez televisão e está agora na rádio. Quando lhe perguntam o que faz, é fácil responder?
Vou sempre pelo caminho mais fácil e aquele que me parece mais verdadeiro, que é dizer que sou guionista. Não só porque foi assim que comecei [nas Produções Fictícias], mas também porque acho que é a coisa que existe em comum entre todos os trabalhos: sou guionista na televisão e na rádio. A única diferença é que, pelo menos neste momento, na televisão estou a escrever com outras pessoas e para outra pessoa, neste caso, Ricardo Araújo Pereira. Na rádio, escrevo para mim.

O trabalho de base é sempre o mesmo.
E é essa parte do trabalho que valorizo mais: a que me dá mais gozo, a que considero que faço melhor quando comparo com todas as outras e, por isso, não é difícil responder. Digo sempre que sou guionista e creio que continuarei a dizer.

Há alguma definição com a qual sinta alguma incompatibilidade?
Nenhuma e percebo, até, que a tendência seja para me descrever mais como humorista.

"Não sou a pessoa de entrar numa sala e ser a alma da festa. Por isso, não me convidem que não vale a pena"

Porque, de facto, essa é outra característica comum a todos os seus trabalhos: assentam no humor.
Exato. Podia ser guionista de séries de ficção, ou de filmes, mas faço sempre humor, por isso percebo que o termo humorista seja uma designação que faça sentido. Ou até radialista, se estiverem a falar especificamente do programa da Renascença ["Extremamente Desagradável"] em que, durante cerca de duas horas e meia, sou, de facto, radialista. Não tão competente como as minhas colegas que fazem mesmo rádio pura e dura, mas estou também a cumprir esse papel. Não ligo muito a essa coisa das designações e até hoje não houve nenhuma que me ofendesse ou à qual oferecesse alguma resistência.

Quando diz que não liga a essas designações, está, no fundo, a dizer que evita pôr-se em caixas ou rotular-se?
Sim, porque passa-me mesmo ao lado. Creio que, por vezes, as pessoas perdem muito tempo a discutir designações, se comediante é diferente de humorista, por exemplo, e acho-as pouco importantes. Se calhar, até são importantes, mas como não tenho tempo para estar a pensar nisso, faço o meu trabalho e não me preocupo muito com o nome que se dá àquilo que faço. Preocupo-me mais que seja uma coisa aceitável e que o resultado final seja bom.

Inicialmente tive esse problema quando, na fase inicial da carreira em que passava recibos verdes, tínhamos de estar inscritos nas Finanças numa categoria que era qualquer coisa como Criação Artística, Artistas de Circo e Bailado. Foi giro para não nos levarmos muito a sério. Estávamos ali numa amálgama de coisas em que, lá para o meio, havia guionistas.

"Tenho muito esse lado de não exibir seja o que for, como felicidade ou qualquer outra coisa. E mesmo exibir-me a mim, faço-o na rubrica de rádio, mas fica por aí. E é porque tem de ser. Percebo que para fazer aqueles textos, tenho de ser eu a dizê-los"

Numa das entrevistas que deu, disse que não gostava de exibir nada e que, por isso, sempre lhe pareceu bem ser guionista. Porque quem faz disto vida sabe que, à partida, estará quase sempre a escrever para os outros?
Sim. Não me lembro de ter dito isso, mas mantenho [risos]. Não é muito diferente daquilo que penso agora. Todas as ocasiões em que é preciso exibir felicidade, como em festas de Carnaval, de aniversário, passagens de ano ou em festivais de música, por exemplo, são situações nas quais não me sinto muito confortável porque, de facto, não gosto muito disso. Sou pouco sociável, a verdade é essa, exceto com as pessoas que conheço bem. Mas não sou a pessoa de entrar numa sala e ser a alma da festa. Por isso, não me convidem que não vale a pena. De facto, não gosto dessa coisa de exibir que, atualmente, me parece que por vezes está um bocadinho associada aos humoristas.

Em que sentido?
De repente, ser humorista tornou-se numa profissão da moda. Há uns anos era muito menos bem vista e em Portugal também haveria menos: menos amostra e, por isso, menos qualidade e diversidade. Nesse aspeto, creio que estamos ótimos porque há cada vez mais humoristas. Mas agora associa-se ao humorismo um estatuto semelhante ao da estrela de rock que como, há uns anos, víamos associado aos chefs de cozinha. Mas, de facto, não me identifico com nada disso porque não assento no perfil que seria necessário ter para estar a mostrar que carro tenho, como é a minha casa ou falar do dinheiro que se recebe ou não. Tal como o assunto das designações, são temas pouco interessantes que não me interessa saber nos outros, mesmo nos humoristas internacionais que usam os seus espetáculos para falar sobre as coisas que têm e que compraram. Como não me desperta interesse enquanto espectadora, também não faria para os outros, mas não tenho nada contra quem faça.

Tenho muito esse lado de não exibir seja o que for, como felicidade ou qualquer outra coisa. E mesmo exibir-me a mim, faço-o na rubrica de rádio [que também tem a componente de vídeo], mas fica por aí. E é porque tem de ser. Percebo que para fazer aqueles textos, tenho de ser eu a dizê-los. Não iria obrigar ninguém a dizer aquilo porque, acredito, muitas pessoas não estariam confortáveis a serem desagradáveis por mim. É uma responsabilidade que tenho de assumir.

É um esforço?
De todo. Nem esforço, nem frete, nem sacrifício. Divirto-me a fazer aquilo durante os dez minutos em que ali estou, mas a minha exibição acaba ali. É aquele bocadinho e pronto. No resto da minha vida, se puder passar despercebida, melhor.

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Era uma das perguntas que tinha para lhe fazer. Chega uma altura em que tem de exibir. Além do "Extremamente Desagradável", que tem excertos em vídeo, foi um dos rostos do programa "Altos & Baixos" que até levou ao teatro. O facto de escrever para si permite-lhe escudar-se numa personagem que cria ou não há essa barreira?
Acho que não há personagem, mas é engraçado que me pergunte isso porque ainda há uns dias achei muita piada a uma coisa que aconteceu e que assenta muito nessa ideia de que uma pessoa não se apercebe daquilo que é ou da imagem que os outros têm. Quem tira bem essa fotografia é, precisamente, quem nos conhece bem.

Há uns dias estava aqui muito indignada em casa a comentar umas imagens de [José] Sócrates que todos vimos após a decisão de Ivo Rosa. Havia umas imagens em que ele era super desagradável na forma como respondia e estava, precisamente, a comentar isso mesmo com a minha mãe. "Tenha razão ou não, não se fala assim com ninguém", dizia eu. Foi nesse momento que a minha mãe me disse: "Mas isso é como tu falas aqui em casa e é por isso que és extremamente desagradável". A minha mãe nunca tinha verbalizado isto [risos], mas percebo que no trato pessoal, não entrando na má educação, tenha assim uma forma de estar mais ríspida, que aproveito para usar na rubrica.

"Não tenho uma agenda de querer falar de alguém, mas de encontrar o que é engraçado"

Foi aí que percebeu que não era uma personagem?
Sim, achei muita graça a isso. É misturar este lado de parecer que tenho 16 anos, embora tenha 35, para ser meio ríspida e poder criticar tudo e todos como se não fosse, eu própria, criticável. Isto para dizer que não há nenhuma personagem nem um esforço da minha parte quando tenho de me exibir nestes contextos. Agora parece que estou num reality show a dizer que sou exatamente o que as pessoas veem ou ouvem, mas de facto sou.

Claro que nas rubricas e nos textos humorísticos que lhes dão vida é sempre mais extremado porque não pode ficar só pela crítica geral: é preciso ir palavra a palavra, situação a situação. É um processo meio exaustivo e quase doentio. O que, por vezes, me faz pensar que as pessoas que são alvos disto podem pensar que esta pessoa as andou a perseguir. Aqui há uns tempos a Raquel Varela reagiu, através do seu blogue, a um episódio do "Extremamente Desagradável" dizendo que havia uma equipa de gente que andou a seguir o que ela dizia durante meses a fio.

Adorava ter uma equipa, mas fui só eu [risos] que fui à procura de material. Não há uma obsessão pessoal para querer dizer mal de alguém. Encontrei um momento que achei engraçado e pensei em ir ver outros para não me ficar apenas pelo "só isto", do qual, à partida, já toda a gente falou. Para que a crónica acrescente alguma coisa ao que foi dito, é preciso ir mais além, por isso sou um bocadinho exaustiva na análise, mas não é com intuito persecutório. Não tenho uma agenda de querer falar de alguém, mas de encontrar o que é engraçado.

Um podcast subversivo numa rádio de matriz católica onde não há limites

Quando escreve textos, há alguma linha vermelha que evite transpor? Um tema ou uma figura?
Assim de repente, diria que não. Estando na Rádio Renascença, talvez fosse problemático usar a figura do Papa como objeto de sátira, mas confesso que nunca aconteceu pensar: "Agora queria gozar com o Papa Francisco e não posso." Porque não é um tema que tenha muito que ver com os territórios que piso. Mas essa imposição nunca me foi feita. Portanto, imposições externas não tenho e censura própria também não, exceto a do gosto que se limita àquilo a que acho graça ou não.

Quando se fala nessa coisa dos limites do humor, o meu limite é esse. O das outras pessoas será outro, mas seria bom se não se impusessem limites nenhuns. Cada um fará a sua avaliação, como em tudo. Nunca se vai conseguir agradar a gregos e troianos e isso é especialmente verdade quando se fala de futebol ou de política. Sentimos muito isso no "Isto É Gozar Com Quem Trabalha", porque se há uma semana em que, devido à atualidade, acabamos por incidir mais sobre o Partido Socialista [PS] , haverá alguém que não goste do PS a comentar dizendo que aquele programa é ótimo. Às vezes, a mesma pessoa, na semana seguinte, é capaz de dizer que o programa é péssimo se, por acaso, estivermos a falar de Rui Rio. Temos de saber viver com isso porque as pessoas associam muito daquilo que fazemos à opinião. E embora tenha, porque é difícil fazer uma análise absolutamente neutra, a tentativa é que tenha graça e muitas das vezes pode não refletir a 100% aquilo que acho de um determinado acontecimento.

De facto, há uma dicotomia interessante: tem um programa subversivo numa emissora de rádio católica. Essa liberdade foi-lhe sempre dada ou foi pisando o risco a cada emissão para perceber até onde pode ir?
Estou sempre a pisar o risco, mas até agora ainda não tive de voltar para trás. Brinco muito com isso. Mas, lá está: uso temas que, à partida, não são polémicos, como a eutanásia ou o aborto o são. Não são territórios que navegue muito. Mas se achar que a piada ideal tem de ser uma muito específica, vou batalhar por ela e não desisto assim tão facilmente, a menos que encontre outra melhor. Não é por preguiça, mas sim porque às vezes não há mesmo uma piada melhor.

Há uns dias falava de bolo de bolacha e do jornalista Paulo Salvador, da TVI, que destratou umas pessoas que tinham feito um bolo de bolacha, e que ele considerava não ser tradicional. Estava a brincar com isso e com o facto de ele ser um purista dos bolos de bolacha e achar que os bolos "verdadeiros" deviam todos ter aqueles ingredientes específicos. A certa altura ele dizia qualquer coisa como: "Tudo bem, é uma boa sobremesa, mas não lhe chame bolo de bolacha", e só me conseguia lembrar de comparar com aquelas pessoas que dizem que dois homens ou duas mulheres podem casar, mas não aceitam que se chame a isso casamento. Teve de ser essa porque não encontrei outra, mesmo sabendo que para a igreja católica podia ser polémica.

"Se nesta altura temos um Papa que foge um bocadinho ao padrão, também é importante e positivo que a Renascença, se é uma representante e emissora católica em Portugal, seja também ela diferente face ao que acontecia há vários anos."

Manteve a piada, portanto.
E não aconteceu nada. Acho que isso também terá sido assumido desde o princípio quando me convidaram para ir para a Renascença. Inicialmente também fiquei espantada e na dúvida sobre se eles próprios saberiam ao que iam ao contratar-me, mas acho que a ideia terá sido a de, mesmo perdendo algum público que se sentisse ofendido, conquistar outro que talvez não se imaginasse conquistar.

Os números têm sido positivos e acho que o que tenho feito não choca em nada com os ideais católicos. Pode parecer que é escárnio e mal dizer, mas vem de um fundo bom.

Os temas são aprovados previamente ou ninguém sabe do que vai falar a cada emissão?
É completamente livre e ninguém sabe o que vou levar para o dia seguinte. No fundo, confiam em mim, o que pode até ser um bocadinho louco. Não me impuseram nenhum limite; tenho o meu que, até ver, cruza bem com o da rádio. Por isso, nunca houve um problema e fui percebendo isso. Cheguei até a falar de um padre que, durante a pandemia, não queria parar de dar missas e fazia umas quantas ilegais. Mesmo aí não houve nenhum problema e, com o passar do tempo, fui percebendo que não havia nenhum assunto proibido.

Se nesta altura temos um Papa que foge um bocadinho ao padrão, também é importante e positivo que a Renascença, se é uma representante e emissora católica em Portugal, seja também ela diferente face ao que acontecia há vários anos. O que não quer dizer que na altura fosse má. Da mesma forma que a igreja evoluiu, é positivo que uma rádio que tenha essa matriz evolua também.

Não evita temas nem pessoas. Mas e se um dos visados, por exemplo, for alguém que conhece muito bem?
Nesses casos, aviso a pessoa antes, como já aconteceu. Digo que vou falar sobre ela, mas não é num tom de ameaça. É só para a pessoa não sentir aquele sobressalto que, acredito, possa sentir quando alguém lhe envia a rubrica ou entra no carro e a ouve. Mas também não foram muitos os casos de pessoas visadas que me eram próximas. Sinto essa obrigação de avisar, mas não deixo de fazer só porque a conheço.

Joana Marques.
No momento em que conversa com a MAGG, prepara-se para um direto de 50 horas de apoio à União Audiovisual

Nessas situações, já aconteceu suavizar alguma piada?
Se calhar, sim, involuntariamente. Se conheço a pessoa visada, talvez seja mais branda do que se não a conhecesse. Mas é normal.

Também já aconteceu, por exemplo, algumas pessoas visadas falarem comigo após a rubrica, numa de tentar justificar ou explicar certas coisas que possam ter feito. Explico sempre que percebo perfeitamente, mas que foi bom não saber de nada disso antes. Porque se conhecesse toda a gente muito bem, já não conseguiria fazer nada ou fazia umas versões muito pálidas da sátira. No fundo, a falta de informação ou de contexto é boa para o meu processo criativo.

Não se condiciona.
Isso. Não posso estar numa gruta sem conhecer ninguém, mas tento. Lá está o meu lado meio anti-social outra vez [risos].

Joana Marques no stand-up? "Não vejo isso a acontecer num futuro próximo"

Esse lado de não querer exibir nada ajuda a explicar por que fez poucos espetáculos de stand-up até agora?
Diria, até, que são quase inexistentes. Houve uma altura que fizemos o "Altos & Baixos" ao vivo, mas não era stand-up porque aí éramos dois em palco [Joana Marques e Daniel Leitão] e, por isso, acabava por ser mais conversa do que stand-up. Houve outras coisas parecidas como umas galas de prémios do Porto, só mesmo porque sou muito fanática pelo meu clube. Mas não é uma coisa que me dê gozo. E não tem tanto que ver com nervos ou falta de coragem. Não teria qualquer problema em assumi-lo caso fosse, porque sou a pessoa mais medrosa do mundo e assumo os meus medos todos como o de andar de avião, de doenças e de levar vacinas. Menos a da COVID-19, porque essa quero muito.

Em comparação, o stand-up não é uma coisa que me assuste assim tanto. Acho que, nesta fase, não traria mais valia às pessoas que iam ver.

"Há muitos espectadores de stand-up que não são humoristas e que, talvez, percebam muito mais do que eu. Mas respondendo diretamente à pergunta: não vejo isso a acontecer num futuro próximo, mesmo que me desafiem a isso."

Porquê?
Talvez por achar que não é das coisas que faça melhor. Claro que isso pratica-se e vai-se experimentando, mas agora também não tenho essa possibilidade. Por isso, prefiro fazer uma coisa que creio estar a fazer relativamente bem e que ainda pode melhorar.

Mas gostava?
Isto não quer dizer que não vá fazer nunca, digamos assim. Temos muito esta conversa em grupo nos bastidores do programa "Isto É Gozar Com Quem Trabalha", porque uns fazem e outros não... Estamos sempre a picar o Ricardo, por exemplo, para voltar a fazer, e percebo que as pessoas têm muito essa expectativa porque já o viram e a fazer bem. Mas ele não está muito para aí virado e compreendo-o, porque a verdade é que tornou-se quase obrigatório que para ser humorista tem de se fazer stand-up. Isso tem tanta lógica como dizer dizer que, para se ser humorista, é preciso ter-se programas de rádio ou programas próprios. É bom estarmos todos a fazer coisas diferentes ao mesmo tempo.

Se calhar, está no meu organismo, quase anti-social, de gostar de acordar às seis da manhã, ir para um estúdio onde só estão duas ou três pessoas e fazer aquilo naquele ambiente que sei que depois chega a mais gente, do que estar num bar, cheio de fumo e a fazer stand-up. Talvez tenha mais que ver com a envolvência do que com a coisa em si. Não quer dizer que um dia não faça, mas não é um ambiente que me fascine. De todas as áreas da comédia, talvez ponha o stand-up em último porque, mesmo como espectadora, não vejo muitos. Há muitos espectadores de stand-up que não são humoristas e que, talvez, percebam muito mais do que eu. Mas respondendo diretamente à pergunta: não vejo isso a acontecer num futuro próximo, mesmo que me desafiem a isso.

Quando lhe fazem uma crítica às suas abordagens no "Extremamente Desagradável", de que forma a analisa primeiro: como humorista ou guionista?
Da parte do visado ou de outras?

Há diferenças?
Aconteceu uma das pessoas que conhecia um dos visados dizer-me que ele tinha ficado muito triste e perturbado com a brincadeira sobre um acontecimento, até, muito inofensivo. A minha abordagem na rubrica tinha mais que ver com o tipo de linguagem e não tanto com alguma coisa que a pessoa em questão tinha feito, mas soube que essa pessoa, porque conhecíamos outras em comum, tinha ficado sentida.

Pedi o contacto dela e expliquei o que fiz.

Nestes casos, pede-se desculpa?
Acho que não se pode pedir desculpa por uma coisa que não teve mal nenhum. No fundo, expliquei o meu lado, dizendo que não tinha qualquer intenção de que isso a deixasse triste, porque não foi para melindrar. Mas também não me quero armar em Madre Teresa: tomei a iniciativa de a contactar porque soube que tinha ficado triste. Não é a minha intenção que os visados fiquem melindrados e, por isso, a opinião deles é a que me interessa mais. Por simpatia e empatia.

Também acontece muito serem os fãs de alguma figura ou artista a ficarem muito melindrados. Mas no caso da grande massa de pessoas que ouve... Repare: há interações que me deixam a pensar quando me apontam um engano em qualquer coisa. Porque sou um bocadinho perfecionista.

Que tipo de enganos?
Por exemplo, não percebo nada dos filmes de "Harry Potter" e da trilogia de "Senhor dos Anéis". Confundo-os. Para a maioria das pessoas, é um ultraje. Na escrita da crónica, aconteceu trocar o nome de umas personagens e os comentários que se seguiram foram todos de crítica ao meu engano. Aí, passei a ser a visada e é merecido.

Detesto, não o facto de gozarem comigo, mas o facto de ter cometido essa falha. Se for um comentário de puro ódio, usando termos como "caixa de óculos", "anã", ou esses insultos de internet, não valorizo.

Suponho que, em algum momento, se tenha cruzado com algum dos visados do "Extremamente Desagradável". Há fairplay ou fica sempre um ambiente desconfortável?
Para mim, é sempre desconfortável. Aliás, para mim já é desconfortável entrar numa sala em que estão pessoas sobre as quais não disse nada, imagine quando entro numa em que está um dos visados [risos]. Fica sempre a dúvida: será que a pessoa ouviu ou não?

O visado acaba sempre por saber.
É isso. Alguém lhe vai enviar, seja um amigo ou um não tão amigo. Nos casos em que me cruzo com algum dos visados, é sempre desconfortável. Não porque me sinta culpada, mas porque há um elefante na sala. A pessoa sabe que eu disse aquilo, eu sei que disse, e depois não falámos sobre isso. Geralmente é o que acontece. Não fica um ambiente de cortar à faca, vá, mas fica estranho.

Lá está: mais um motivo para estar sempre em casa e nunca sair à rua. [risos]

A ideia que tenho é que a Joana nunca esteve muito envolvida em polémicas, mesmo com as suas sátiras mais ríspidas, como as descreve. Estou enganado?
Lembro-me de uma vez, ainda na Antena 3, que hoje talvez fosse pior porque seria com mais intensidade, quando analisei os youtubers que, na altura, estavam na moda, explicando as características principais que eles todos tinham. Uma generalização, como sempre fazemos no humor e se calhar injusta para alguns. Aí foram os fãs que, neste caso, eram miúdos novos com tempo livre porque aquilo, creio, calhou num período de férias escolares, e foi uma loucura.

Lembro-me que a Antena 3 bloqueou os comentários no YouTube, embora não a meu pedido, porque foi uma avalanche. Foi a primeira reação visceral que provoquei e lembro-me de coisas engraçadas decorrentes disso: uns meses depois do programa ir para o ar, calhou estar num almoço com uns amigos. A mãe de um dos miúdos quase teve de o obrigar a cumprimentar-me porque ele não queria. Afinal, eu era a pessoa que tinha dito mal do Wuant [risos]. São miúdos. Também acontece com adultos, o que talvez já seja mais incompreensível... mas acho que tenho passado ao lado de muitas polémicas.

Acontece também com clipes tirados do contexto, como quando, no programa "Irritações", disse que tinha medo de cães e usaram isso para formulações como: "Como é que gostam desta pessoa se ela não gosta de animais?". Nunca disse que não gostava, só que tinha medo. Durante uns meses essa polémica ainda rolou e nunca morre, porque de vez em quando lá aparece alguém com o vídeo tirado do contexto ou muito indignada porque falei mal dos youtubers.

Mas daquelas polémicas odiosas e à grande escala, nunca.
Dessas não, mas acho que acabará por acontecer. Estamos sempre a ver quem é o próximo que sai na lotaria. Estou preparada para isso, se é que há alguma preparação possível. Estamos sempre à procura da próxima polémica e isso tem um lado bom: é que passam muito depressa e no dia seguinte já ninguém se lembra. Achei graça que, aqui há uns dias, a polémica do dia foi protagonizada por Rui Unas e Tomás Taveira, sobre uma publicação que ninguém percebeu muito bem e que o próprio Unas depois disse que ia explicar e fazer um conteúdo sobre isso. Depois acabou por não fazer. Não lhe perguntei, mas creio que terá sido porque terá percebido que a polémica já tinha passado e não valia a pena, até porque iria reavivar uma coisa sem necessidade e isso não lhe interessava.

Mas noto muito essa tendência para extremarmos tudo no discurso digital, sim. Até percebo. As pessoas também têm de se entreter com alguma coisa [risos]. Atualmente, há muito esta ideia de que agora não se pode dizer nada. Pode-se. Dizemos todos várias coisas e faz-se uma conversa, mas acho que hoje tudo o que se diga é muito mais analisado e muitas vezes procura-se até leituras que não existem.

"Haverá profissões mais duras em que essa diferença de tratamento é sentida. Na minha, no entanto, acredito que as pessoas estão mais preocupadas em rir e nunca achei que avaliassem o que tem graça ou não com o facto de ser mulher"

Mas lida com muito ódio nas mensagens que lhe são enviadas?
Não sei se posso catalogar como ódio, mas recebo muitas não muito simpáticas. Nas raras vezes em que respondo, sempre a gozar e sem as levar muito a sério, acontece a pessoa recuar e admitir que se enervou. Acho que as pessoas não são assim tão violentas como podem parecer à primeira vista.

A maioria quer só conversar e, acredito, entende bem a lógica do que é o humor. Mas não valorizo comentários de internet.

Não fazem mossa, portanto?
É uma questão de prática, diria. As primeiras, que começaram a surgir no início da minha carreira, tocaram, claro. Mas depois de uma, duas e três seguidas, deixei de valorizar. Se me chocasse todos os dias, teria de arranjar outra profissão. Ou isso ou deixar de ver. Como tenho uma curiosidade muito grande sobre tudo, até sobre o que dizem de mim, vou sempre ver. Mas só o faço porque sei que não fico incomodada.

Acha que essas abordagens poderiam ser diferentes, talvez mais agressivas, até, se fosse homem?
Não, nem sinto que haja uma diferença de tratamento por ser mulher. Reparo que na internet há muitos comentários que se focam na roupa, mas acredito que se um homem aparecesse vestido com uma roupa da qual as pessoas não gostassem, iria receber o mesmo tipo de comentários. Haverá profissões mais duras em que essa diferença de tratamento é sentida.

Na minha, no entanto, acredito que as pessoas estão mais preocupadas em rir e nunca achei que avaliassem o que tem graça ou não com o facto de ser mulher embora houvesse, em tempos, aquele elogio, que no fundo é uma ofensa, e que agora sinto menos. O do "apesar de seres mulher, até tens piada". Tenho ouvido menos e acho que as pessoas olham para mim como olham para outro humorista qualquer.

O sucesso de "Extremamente Desagradável" e o fator sorte

É-lhe fácil explicar o facto de o "Extremamente Desagradável" ser já um dos podcasts mais ouvidos do País e ter sobrevivido a duas estações?
Creio que consegui encontrar, assim meio sem querer, um formato que não estava a ser feito e que funciona bem em rádio: que é ser só um humorista a falar durante cerca de quatro minutos numa crónica que podia ser escrita, mas que na verdade é dita e ouvida, beneficiando do facto de estarmos na rádio para usar alguns excertos em som dos momentos a que me refiro para compor a crónica. Isso ajuda em termos de ritmo.

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Não se torna monótono.
É por aí, sim. Ouço muitos podcasts de conversa, às vezes de uma hora ou mais, mas percebo que nem toda a gente tenha paciência ou disponibilidade para isso. Quem sai de casa às oito da manhã e vai deixar as crianças à escola antes de ir para o trabalho, se calhar precisa de uma coisa que seja mais atrativa em termos de formato. Mas só o formato não resultaria e seria preciso conteúdo. Quero acreditar que, nesse aspeto, o trabalho que me dá — e é bastante, porque além de escrever e procurar os sons, edito-os a todos — é recompensado com ter pessoas a ouvir.

Se assim não fosse, seria um bocadinho frustrante. Mas não sei se há um segredo. Atualmente está a ser muito ouvido, mas se calhar daqui a uns tempos deixa de o ser. Mas se tivesse de apontar uma explicação para esta popularidade, diria que tem muito que ver com o facto de ser um formato diferente que funciona muito bem em rádio e que se manteve na transição de uma rádio para outra, o que não é muito comum.

O mais recente convidado de Conan O'Brien no seu podcast foi Obama. Na conversa, este disse que desconfia sempre de alguém que, sendo bem sucedido, não atribua um bocadinho de sorte a esse reconhecimento. Partilha desta ideia, mesmo assumindo que há muito trabalho envolvido no que faz?
Claro, sem dúvida. Houve sorte em todos os passos do caminho, desde ter feito um curso na Restart e, na altura, ter sido convidada para fazer uma espécie de estágio nas Produções Fictícias para começar a escrever.

Estudei Ciências da Comunicação na faculdade e achava tudo aquilo uma chatice. Enquanto os meus colegas diziam que queriam ser jornalistas, já sabia que queria ser guionista. Nesse caso, foi estar no sítio certo à hora certa. Se as Produções Fictícias não precisassem de um estagiário, provavelmente não me chamariam. Mais tarde, se o Diogo Beja não tivesse remodelado a sua equipa na rádio, provavelmente não me teria convidado para ir para a Antena 3. Lá está: é estar no sítio certo à hora certa. Não há uma explicação. Simplesmente, calhou.

"Olhe-se para a Cristina Ferreira, por exemplo. Parece que tudo aquilo que ela faz agora é mau quando, na verdade, me parece ser muito igual ao que fazia na SIC e que era visto como bom e espetacular. Há uma onda e uma tendência que dita aquilo a que as pessoas vão atrás"

Podia não ter calhado.
Exato. E atualmente haverá muita gente com muito talento que ainda não teve essa sorte. Claro que hoje há mais facilidade e mais plataformas para se fazer coisas, mas também há mais gente a fazer.

A componente da sorte está sempre presente, mas também há outra muito semelhante àquilo que vemos com as equipas de futebol. Há anos em que tudo corre bem e outros em que tudo vai ao poste. Neste fase, estou a aproveitar um bom momento, mas nada garante que daqui a uns meses as pessoas não deixem de gostar. Mas isso não deve afetar aquilo que estou a fazer. Há também pessoas muito engraçadas e que agora estão menos presentes ou menos visíveis, ainda que continuem a fazer coisas. Isso faz muito parte deste trabalho. O Herman José, por exemplo, tem uma carreira muito longa e não beneficiou sempre do mesmo nível de atenção.

Vemos isso fora do humor também. Ou não?
Claro. Olhe-se para a Cristina Ferreira, por exemplo. Parece que tudo aquilo que ela faz agora é mau quando, na verdade, me parece ser muito igual ao que fazia na SIC e que era visto como bom e espetacular. Há uma onda e uma tendência que dita aquilo a que as pessoas vão atrás e que também tem muito que ver com esse momento de que falava.

Fala da Cristina Ferreira, mas podia ser de outra pessoa qualquer. Há essa ideia de o valor de uma pessoa quase se resumir à forma como o seu último projeto é recebido. Não é ingrato?
Têm todos muito pouca memória, parece-me, até porque as pessoas estão nas suas vidas e talvez não tenham uma memória infinita para prestar atenção aos programas de televisão ou de rádio que, para nós que os fazemos, são a coisa mais importante. Nesse sentido, é natural que tenham uma memória a curto prazo do que foi feito, não só nesta área.

Mas não é ingrato?
Faz parte das regras do jogo e não acho que seja especialmente injusto. É o que é, da mesma maneira que se for a um restaurante e num determinado dia não correr muito bem, provavelmente não volto e fico com a ideia de que a comida não presta. Quando, se calhar, até presta e o chef que está à frente daquela cozinha faz coisas ótimas. Talvez não devamos exigir essa memória a longo prazo das pessoas, também para não nos encostarmos à sombra da bananeira.

Tendo já trabalhado com o Daniel [Leitão] no "Altos & Baixos" e estando os dois atualmente na mesma estação, passaram, enquanto casal, por um período de adaptação para gerir a vida a dois e a vida profissional?
Não foi necessária nenhuma gestão porque sempre gostámos disto. Quem trabalha na rádio gosta disso, de falar do tema e de mal dizer. Da mesma forma que um casal que trabalhe junto em contabilidade também goste de, assim que chega a casa, falar disso e das pessoas do escritório, por exemplo. A diferença é que, aqui, há um escritório maior e com mais gente, por isso é um tema que nunca acaba. Nunca houve essa necessidade e acho, até, que foi uma vantagem.

Porque havia química entre ambos?
Sim, mas não era uma química que fazia as pessoas dizerem: "Olhem, como eles se dão tão bem". Era no sentido de podermos esticar a corda, especialmente no "Altos & Baixos", coisa que nunca faria se a minha dupla fosse um apresentador ou um humorista que não conhecesse bem. Com o Daniel sabia que podíamos dizer tudo, porque tínhamos esse à vontade, com a garantia de que nenhum dos dois ficaria melindrado no final do programa. Mas também fizemos coisas em separado e isso ajudou a que nunca tivéssemos necessidade de dizer "agora não se fala mais sobre isto".

Era possível uma nova versão do "Altos & Baixos" na televisão portuguesa?
De vez em quando trazemos o formato de volta para eventos privados de empresas. É um formato que é fácil de funcionar porque, à semelhança do "Extremamente Desagradável", ilustra a coisa com uns excertos, neste caso em vídeo, e faz-se comentários em cima disso. É um formato vencedor, diria. Mas na televisão seria difícil, creio. Fizemos isso no Canal Q porque, na altura, era meio selvagem. Usávamos as imagens sem ter autorização para tal e se fossemos fazer isso para um canal "a sério", teríamos de pagar. Isso daria problemas, ou porque as pessoas não iriam autorizar, ou porque estaríamos limitados às características de cada canal.

Ali tínhamos liberdade, mas não tínhamos o resto. Numa RTP, SIC ou TVI se calhar teríamos tudo o resto, mas talvez não tivéssemos a mesma liberdade. É um programa um bocadinho impossível de se fazer. Resultou naquela altura e naqueles moldes, mas mesmo na altura chegou a dar-nos chatices.

Como por exemplo?
Apesar de termos a sensação de que não havia muita gente a ver aquilo, a verdade é que tivemos de ir a tribunal duas vezes. Lá está: o visado vai sempre saber. Foi um bocadinho por isso que o programa acabou. Pediram-nos desculpa, mas disseram-nos que rapidamente iríamos levar o canal à falência. Apesar de nunca termos perdido em tribunal, os advogados pagam-se e estávamos a sair muito caros ao canal. As pessoas visadas sentiram-se lesadas na sua honra, coisa que nunca foi o nosso objetivo, e processavam. Foi também por isso que levámos o programa ao teatro, em que era uma coisa muito mais contida e, por isso, os visados quase nem chegavam a saber. Acho difícil trazer o "Altos & Baixos" de volta. Podia ser uma boa novidade na televisão portuguesa, mas iria sempre ser problemático.

"Não vejo que, ao contrário do que acontece noutras áreas de atividade, haja um problema no humor que pauta, na verdade, por uma certa meritocracia"

Porque iria ser visto por mais gente.
Garantidamente. E isso levaria a mais chatices.

O facto de não ter um programa seu de televisão é por falta de vontade ou de oportunidade?
Não tenho esse objetivo de ter um programa meu. Enquanto guionista já fiz muitos trabalhos a que não achava assim tanta piada, mas fi-los enquanto executante porque mos encomendavam. É um bocadinho como um pasteleiro que, não gostando de morangos, faz um bolo de morango porque lhe pagam para isso. Faz parte. Por sorte, agora não tenho de fazer isso. Quando pensamos em qualidade de vida, para mim é poder fazer algo de que gosto muito, seja na rádio ou na televisão. Mas não tenho essa coisa de querer o meu talk show.

Como não gosto desse lado da exibição e de ter o foco todo em mim, dispenso. Se o "Isto É Gozar Com Quem Trabalha" existisse para sempre e pudesse estar para sempre a escrever para o Ricardo, estaria ótimo.

"Lá por haver um Ricardo Araújo Pereira ou um Bruno Nogueira, não é preciso impor duas mulheres só porque sim"

O facto de ser mulher, a única nomeada para o prémio Hiena de Melhor Humorista do Ano, e de o seu podcast ser um dos mais ouvidos em Portugal, fá-la sentir que carrega nos ombros a responsabilidade e a bandeira da representatividade?
Não me foco nada nisso. Responsabilidade é uma coisa que tento não sentir de uma forma geral. A minha resposta é sempre dizer que não penso em nada disso e é verdade. Não estou a fazer género. Da mesma maneira que avalio os humoristas como tendo graça ou não, nunca fui apologista de noites de stand-up só de mulheres. Sempre achei um disparate porque se trata de um espaço e de uma profissão em que, e cada vez mais temos provas disso, as pessoas acham graça independentemente de o humorista em palco ser mulher ou não.

Muitas vezes isso pode ser usado como desculpa para justificar qualquer coisa que não tenha corrido assim tão bem e acredito, até, que haja quem possa ter razões de queixa por sentir que não é desafiada ou convidada para isto ou para aquilo, mas diria que tanto mulheres como homens não se devem agarrar tanto a isso. Devem, sim, usar esse tempo e essa criatividade para fazer coisas e depois logo se vê. Por isso, não me sinto representante de nada nem sinto essa responsabilidade.

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Mas o meio humorístico continua a ser muito pouco representativo. Embora haja mulheres a fazer humor em Portugal, são pouco visíveis. A falta de visibilidade tem que ver com a falta de qualidade?
Para já, há menos mulheres do que homens. Isso é certo. Em comparação com o que acontecia há dez anos, quando comecei a trabalhar, há mais. Em termos percentuais, no entanto, continuam a ser menos do que os homens e isso faz com que, por uma questão de lógica, os humoristas mais conhecidos sejam homens. Mas não acho que a diferença tenha de ser imposta.

Lá por haver um Ricardo Araújo Pereira ou um Bruno Nogueira, não é preciso impor duas mulheres só porque sim. Se tiverem graça, acredito que lá chegarão naturalmente. O público não vai dizer que não se vai rir só porque a pessoa em palco é uma mulher. Claro que haverá uns trogloditas a dizer isso, mas não me parecem ser a maioria. Há mais mulheres guionistas no humor e no "5 Para a Meia Noite", por exemplo, se a equipa de escrita não é constituída inteiramente por mulheres, anda lá perto. E a própria apresentadora é mulher. Não vejo que, ao contrário do que acontece noutras áreas de atividade, haja um problema no humor que pauta, na verdade, por uma certa meritocracia.

Há dificuldades em ascender no meio?
De facto, não é toda a gente que tem uma rubrica na rádio, um programa de televisão ou um canal de YouTube muito visto. É certo que não e que não há uma receita, mas também não me parece que as pessoas tenham de ter um direito especial de aceder a isso. É uma consequência natural do trabalho que foram fazendo. O Bruno Nogueira não teve uma rubrica na TSF no início da carreira e lembro-me que fez o "Manobras de Diversão", um programa assim meio obscuro, e depois terá feito outras coisas, como os Gato Fedorento fizeram na SIC Radical.

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Há muito este lado de iniciativa própria de tentar fazer coisas para ir caminhando até chegar a algum sítio. Depende do trabalho de cada um, da própria receção do público e do momento que um artista atravessa. Mas, sinceramente, não acho que seja uma questão de género, de etnia ou de proveniência. É uma área em que as pessoas avaliam o que o humorista diz e se acham graça ou não. Talvez seja injusto no caso de se gostar de uma pessoa que tem graça natural e não tem muito trabalho por trás e depois não se achar graça a outra que trabalha e se esforça imenso, mas depois não consegue ter tanta atenção do público.

Mas não há uma segregação de uma minoria nem acredito que haja uma característica especial a ser impeditiva de as pessoas terem sucesso nesta área.

Tendo já trabalhado com Ricardo Araújo Pereira em dois programas, sendo o mais recente este "Isto É Gozar Com Quem Trabalha", há diferenças entre o que já fez e o que está a fazer agora, em que escreve para um programa destes com uma das figuras mais populares do humor?
Sem dúvida. Trabalha-se de uma maneira completamente diferente. Já tive projetos em que se trabalhava em equipa, mas em que não havia uma ideia coletiva de escrita de guião. Cada um escrevia o seu, enviava ao coordenador e era ele quem tratava de agregar tudo. Com o Ricardo há um trabalho completamente diferente e do qual resulta um produto final muito melhor. O guião é, efetivamente, escrito em conjunto, palavra por palavra. Quem analisar de fora pode pensar que se perde muito mais tempo, mas a verdade é que o resultado final é muito melhor porque nós falamos, discutimos e "perdemos" muito tempo para um guião relativamente curto, que equivale a cerca de 30 minutos de programa. Debatemos cada piada, porque uns querem uma palavra numa frase e outros querem outra. Chega a ser curioso porque há amigos nossos que nos dizem coisas como: "Nota-se mesmo que aquela piada era tua".

Na verdade não é. O guião, que é finalizado no domingo antes de gravarmos, é mesmo pensado em conjunto. O Ricardo também escreve, até porque é ele que verbaliza as piadas, e é giro porque uma simples frase tem a contribuição de várias pessoas. É uma receita vencedora. Leva a nossa família um bocadinho à loucura, porque demoramos mais tempo por programa do que deveríamos, mas funciona.

É possível vários argumentistas serem incompatíveis no exercício da escrita para o mesmo formato?
Talvez, mas aqui estamos todos de acordo e não veja essa incompatibilidade. Por vezes, há diferenças de ideias. Lembro-me que, com o caso do Zmar, por exemplo, tínhamos visões diferentes sobre o assunto e também aí se perdeu tempo porque foram surgindo ideias e piadas novas que íamos apontado. É uma maneira de trabalhar muito divertida e todos nos adaptámos muito rapidamente.

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Há alguma pressão, ainda que ligeira, em trabalhar com Ricardo Araújo Pereira?
Não, de todo. Talvez tenha havido na primeira ou na segunda semana do "Gente Que Não Sabe Estar". Quando ele me convidou, foi um tiro no escuro, tal como ele próprio disse porque não me conhecia pessoalmente. Já tinha falado com ele um momento ou outro, mas eram conversas de um minuto ou dois. Ele fez a sua escolha e a coisa até correu bem, mas podia ter corrido muito mal e ser desastroso. Ao início fazia um bocadinho de cerimónia, um bocadinho como um jogador de formação que, assim que é passado para a equipa principal, depois vê-se a jogar com o Cristiano Ronaldo. No fundo, senti isso. E havia também o receio de que, a qualquer altura, ele descobrisse que decidiu mal e que, afinal, eu não escrevia assim tão bem como ele pensava.

Depois passou. Talvez porque já passámos por muita coisa juntos: já gravámos em vários horários, atravessámos uma pandemia em que o próprio Ricardo chegou a gravar a partir de casa, tivemos muitos programas sem público... Tudo isso ajudou a fortalecer a equipa, o que fez com que não precisássemos daqueles team buildings foleiros que as empresas fazem [risos]. Deixou de haver essa cerimónia e ainda bem, porque para chegarmos a uma piada boa tínhamos de dizer várias em voz alta. Foi bom deixar de haver essa vergonha.