Importa começar por reforçar que ainda ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Estes são os factos: na segunda-feira, 31 de julho, cerca de 200 peregrinos oriundos de Angola e Cabo Verde deveriam ter chegado à diocese Leiria-Fátima, para participarem num evento que antecederia a Jornada Mundial da Juventude. Deveriam ter chegado, sim, mas não chegaram. Com o passar das horas, nada de peregrinos. Atendendo ao facto de ainda serem quase duas centenas, e de não ser assim tão fácil perder tanta gente num país tão pequeno, a organização declarou-os rapidamente como estando "em parte incerta".
Estes são os factos. Agora vêm as suspeitas: no dia seguinte, as autoridades vieram dizer de sua justiça, ou melhor, de sua desconfiança, que a grande maioria parece ter usado o evento religioso como pretexto para abandonar os seus países em busca de melhores condições de vida. Afinal, não vinham rezar. Afinal, só estavam a fugir da pobreza extrema das suas terras, onde não existem cuidados médicos, comida, água ou sequer a possibilidade ínfima de arranjarem um trabalho.
Aqui está um belíssimo exemplo do chamado "chapadão de realidade na tromba". Depois da limpeza aos sem-abrigo na Almirante Reis, de Carlos Moedas se ter armado em influeció-coisas para responder ao tapete de Bordalo II, de termos andado todos a discutir se os milhões investidos nas jornadas vão ter mesmo retorno, e de mais uma coisita ou outra que muitos se limitaram a interpretar como percalços no caminho de Cristo, eis que temos o caso dos peregrinos desaparecidos. É demasiado azar para um país só, não acham?
Se calhar até não é. Ora reflitamos um pouco: a pobreza extrema em Angola cresceu de 35 para 44% entre 2019 e 2022. Em Cabo Verde, um destino bem bonito, diga-se de passagem, e onde não faltam resorts com piscinas impressionantes e restaurantes para desbundar o all you can eat, 13% da população vive com 1,20€ por dia. Repito: 1,20€ por dia. Um café, portanto. Vocês não aproveitariam a possibilidade de viajar para outro país em nome da fé para se porem a andar? Olhem que eu aproveitaria.
Ontem, a caminho de casa depois de um dia de trabalho, vi-me a maldizer os peregrinos que seguiam no meio da estrada, incólumes à existência de um passeio que sim, é pequeno, mas dá para toda a gente, malta, é só saberem caminhar em linha reta. Vinham com as bandeiras dos seus países hasteadas e respetivos hinos a fugirem-lhes da boca, ansiosos por festejarem o que significa nos dias de hoje ser-se jovem e acreditar-se na fé católica.
Depois lembrei-me de que continua tudo errado no mundo. Enquanto eu amaldiçoo os peregrinos, outros tiveram de fingir sê-lo para escapar da fome. Enquanto eu, vocês, todos nós, adotamos um tom jocoso para criticar tudo o que nos parece estar errado neste país — e que está, atenção, a realidade continuará sempre a ser a realidade —, outros só pensam em fugir.
Eu tenho o privilégio de estar sentada no topo do mundo, mesmo que tantas vezes duvide disso. Sou mulher, é verdade, e por isso posso queixar-me das diferenças salariais, do machismo, da misoginia. Mas sou uma mulher branca, por isso nunca saberei o que é ser olhada de lado só por ter a pele escura, ou ser mandada para a minha terra, mesmo que a minha terra seja Portugal. Sou heterossexual, por isso nunca experienciarei o que é ser expulsa de casa, renegada pela minha família, amigos e sociedade só porque escolhi amar alguém do mesmo sexo. Sou ocidental, por isso nunca viverei as dores do oriente. Sou portuguesa, por isso nunca terei noção do que é querer fugir de uma guerra, viver com 1,20€ por dia, ver os meus filhos roubados para serem soldados ou ser obrigada a cobrir o meu corpo contra a minha vontade.
Sou privilegiada em todos os sentidos da minha essência: tenho um trabalho, uma casa, uma vida, sou independente. Queixo-me de que engordei, mas porque tenho comida com fartura no frigorífico; queixo-me da endometriose, mas porque tive dinheiro para ter os cuidados de saúde necessários para chegar a um diagnóstico; queixo-me dos homens, mas porque sou livre de escolher quem eu quiser; queixo-me dos traumas familiares, mas porque tenho dinheiro para pagar um psicólogo.
E depois?, perguntam vocês. E bem, têm razões para isso, estejam à vontade para colocar essa questão com altivez e até um pouco de desdém, é vosso de direito. Queixamo-nos do que nos dói na alma porque não temos — nem podemos — viver aquilo que é dos outros, não é verdade? Sim, existem pessoas piores do que nós, mas isso tira força ao que a nós nos custa? De que adianta escrever uma crónica sobre aquilo que é mais elementar na vida, que é a desigualdade ou a noção de que o mundo não é justo? Acorda, miúda! Já tens idade para ter juízo.
Querem que responda? Honestamente, não sei. Só sei que importa reforçar que ninguém sabe ainda ao certo o que aconteceu. Estes peregrinos podem ter-se só perdido, porque o Google Maps às vezes consegue ser mesmo maluco e não faltam recantos para 200 pessoas se esconderem neste Portugal pequenino. Ou podem ter visto nestas jornadas a possibilidade de fugir. Em desespero, pela fome. Em desespero, pela fome dos filhos. Em desespero, pela desesperança no futuro.
Repito: não sei. Só sei que este foi um enorme "chapadão de realidade na tromba".
Até à próxima quarta-feira.
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