“Mamã, o que é a Obesidade?”. Esta é a questão que dá nome ao livro infantil — embora talvez seja redutor colocá-lo nesta caixa, dado que apesar das ilustrações e da linguagem simples, é uma obra dedicada a toda a população — lançado pela Associação Portuguesa Contra a Obesidade Infantil (APCOI) no início deste mês de março, mas que é também a pergunta a que muitos ainda não sabem responder. Porque a obesidade é uma doença, que deveria ser tratada como qualquer outra, e não uma escolha de vida.

Esta é uma das grandes mensagens que o projeto quer difundir. Escrito em conjunto por Mário Silva, presidente da APCOI, Marta Coelho, uma jovem de 17 anos que viveu com excesso de peso, e Catarina Beja, mãe de Marta e voluntária da APCOI, e ilustrações de João Xu, o livro segue a história ficcional de Eva e da sua filha Mia, que questiona a mãe sobre o que é a obesidade após ter ouvido falar do tema na escola.

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Este é um projeto que surge numa altura em que os números ditam um cenário assustador. De acordo com o estudo de 2022 COSI Portugal, os dados mostram que 31,9% das crianças (considerando as idades do 1.º ciclo) no nosso País sofrem de excesso de peso, 13,5% das quais com obesidade.

"Existe este conceito generalizado que a obesidade é causada, pura e simplesmente, pelo sedentarismo e pelos maus hábitos alimentares. Isso não é verdade"

O livro “Mamã, o que é a Obesidade?” surge de um pedido de ajuda e de uma vontade de fazer mais. "Desde que a APCOI foi criada, em 2010, que semanalmente, para não dizer diariamente, nos chegavam pedidos por parte das escolas, municípios, profissionais de saúde, em que nos desafiavam a criar materiais que pudessem explicar e desmistificar conceitos acerca desta doença de uma forma compreensível, acessível a todas as idades, crianças e adultos", explica à MAGG Mário Silva, presidente da associação, em entrevista.

Depois de a APCOI ser responsável pelo projeto Heróis da Fruta, criado em 2011 — e que tem como intuito desmistificar a ciência, explicar os nutrientes com uma outra linguagem, mais acessível, embora focado nos hábitos de prevenção de doenças crónicas —, os pedidos de uma iniciativa apenas e só focada na obesidade casaram com o esforço de uma jovem voluntária. Falamos de Marta Beja Coelho, a jovem de 17 anos que também assina a autoria do livro.

Mário Silva
Mário Silva, presidente da APCOI

"A Marta é quase uma voluntária forçada desde os 5 anos, chegou pela mão da Catarina, que também já era voluntária da APCOI. Sempre participou no que conseguia. E foi depois de integrar um podcast com jovens de vários países, onde todos relatavam a experiência de viver com a doença, que ficou com vontade de fazer mais, de dar voz aos jovens que vivem com obesidade. A Marta acabou por ser o motor, quis muito fazer o livro, e diria que foi a conjugação desta vontade dela com os pedidos que nos chegavam frequentemente que nos levou a pensar em como é que íamos fazer isto", recorda Mário Silva.

Mas porquê um livro infantil? "Para poder ser lido a crianças, mas também pelas crianças aos adultos, numa linguagem que qualquer pessoa pudesse compreender, com um foco muito grande em explicar que esta doença, tal como outra doença qualquer, não é responsabilidade do paciente", diz o presidente da APCOI.

Há 20 anos que a obesidade é reconhecida como doença em Portugal. Foi também no ano de 2004 que o tratamento para a mesma começou a ser integrado no Sistema Nacional de Saúde (SNS) — embora com um foco muito específico na cirurgia. No entanto, mesmo passadas duas décadas, o estigma de que a obesidade é uma escolha permanece.

"Há uma responsabilidade na questão de dar o passo para procurar ajuda, tratamento. Claro, é uma responsabilidade e um direito individual. Mas ao contrário de praticamente todas as outras doenças, há aqui uma culpabilização, uma vergonha que a nossa sociedade impõe às pessoas que vivem com obesidade ou pré-obesidade. Existe este conceito generalizado que a obesidade é causada, pura e simplesmente, pelo sedentarismo e pelos maus hábitos alimentares. Isso não é verdade", salienta Mário Silva.

"Há aqui uma culpabilização, uma vergonha que a nossa sociedade impõe às pessoas que vivem com obesidade ou pré-obesidade"

"Isto foi o ponto de partida para as mensagens que queríamos passar neste livro. É mesmo importante passar a mensagem: isso não é verdade, isso é um mito. Ninguém vive com obesidade porque quer, não acontece. Estamos a falar de uma doença que se manifesta, de facto, por um tamanho corporal que tem impacto nos outros órgãos espalhados pelo nosso corpo, causa constrangimentos, condicionamentos e sofrimento, em muitos casos", refere o presidente da APCOI, que assinala que o livro demonstra a importância de uma conversa que, por vezes, ninguém quer ter.

"No livro, é retratado um momento de simplicidade de uma mãe e uma filha que ganham coragem para ter esta conversa. Porque depois isso é outra parte do estigma e do tabu: como existe toda esta culpa, vergonha, autoresponsabilização, quase que se evita falar do tema em família porque pais e filhos não se querem agredir, fartos de agressão estão eles em todos os outros contextos", diz Mário Silva.

"Evita-se o tema, mas ao fazer isso, está-se a perder oportunidade de dar apoio a alguém que pode estar preparado para procurar ajuda e controlar a doença. Porque como qualquer outra doença crónica, como a asma, por exemplo, há uma propensão genética, mas se for controlada desde tenra idade, aprende-se a lidar com a doença. A obesidade tem de ser vista desta forma."

Restrições alimentares podem levar a compulsões e distúrbios, principalmente nas crianças

Outra das mensagens que este projeto quer passar é a necessidade de procurar ajuda certeira. "É importante dar o passo e procurar ajuda especializada, não é qualquer profissional de saúde que consegue ajudar. Outro é evitar dietas sem qualquer tipo de acompanhamento nem fundamento, que são também um dos maiores motivos de combate à obesidade", diz Mário Silva.

"Muitas pessoas pensam que, como a culpa de serem obesas é delas, a solução tem de passar obviamente por elas. E depois abrimos a internet e existem um sem número de loucuras e é óbvio que as coisas não vão correr bem."

O presidente da APCOI salienta a importância de tratar a obesidade com especialistas, "médicos treinados, formados nesta especialidade, até porque dada a complexidade, nunca é tratado apenas por um médico, mas sim por uma equipa multidisciplinar".

E quando falamos de dietas e restrições alimentares, principalmente no que diz respeito a crianças, o tentar melhorar uma situação pode ter exatamente o efeito contrário — e dar origem a problemas ainda mais sérios.

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"Se restringimos alimentos de uma forma absoluta a uma criança, que ainda está a formar a sua personalidade, é quase certo que vamos contribuir para o desenvolvimento de compulsões ou distúrbios alimentares. Porque depois a criança pode ir consumir às escondidas o que lhe foi retirado, dado que se sente à vontade. Já não está sob julgamentos e vai fazer aquilo que andou a tentar evitar, seja por iniciativa própria ou imposição da família", continua Mário Silva.

"Às vezes, os pais têm estes comportamentos completamente ao contrário, acham que estão a ajudar e estão a fazer exatamente o inverso. A vontade é tão grande, porque foi negado, proibido, que se calhar nem apetece tanto, mas é a questão do 'fruto proibido ser o mais apetecido'. O restringir e o negar leva a esse comportamento compulsivo", salienta o presidente da APCOI.

"Esta doença é visível, fala antes da própria pessoa"

Catarina Beja, outra das autoras do livro, viveu com o tema da obesidade desde cedo. Com essa genética, que propicia o desenvolvimento da doença, na família, a mãe de Catarina viveu com obesidade durante a vida toda. Depois de ser mãe, e Marta, a filha, passar para o 5.º ano, Catarina começou a ver as evidências — mas ninguém queria acreditar nela.

Na escola, era vista como a mãe exagerada. O pediatra desvalorizava a situação, afirmando que Marta tinha apenas uma "barriguita" de crescimento. E, para Mário Silva, tudo isto tem que ver com o estigma que ainda existe em relação à obesidade.

Marta Beja Coelho
Marta Beja Coelho, co-autora do livro

"Até há pouco tempo, a obesidade não era vista como doença, as pessoas eram gordas porque não tinham força de vontade para perder peso. Ponto final. Quando falamos de qualquer outra doença, a pessoa não é culpada, e quando o tratamento falha, é porque não era adequado, não é culpa da pessoa. Mas há uma dificuldade em abordar desta forma, que é a certa, quando falamos de obesidade."

Para o presidente da APCOI, a obesidade, além de acompanhada e tratada com as ferramentas necessárias, tem de deixar cair o estigma e a culpa associada aos doentes, e este é também um dos grandes objetivos de “Mamã, o que é a Obesidade?”.

"É importante levar este livro a toda a gente para as pessoas se aperceberem que têm de mudar pensamentos, ter sensibilidade para não evidenciar aquilo que já é óbvio. Esta doença é visível, fala antes da própria pessoa, que quando entra num espaço, já toda a gente se apercebeu que se passa algo com aquele corpo. E isto por si só é tão constrangedor, que devíamos ser um bocadinho mais conscientes."

Já há fármacos úteis para combater a obesidade. Comparticipação do Estado é que ainda é uma miragem

Nos últimos tempos, temos assistido ao fenómeno das drogas utilizadas para o tratamento da diabetes serem uma solução milagrosa no que diz respeito à obesidade. Fármacos como o Ozempic ficaram nas bocas do Mundo, por um lado devido à grande escassez que surgiu devido à constante procura, do outro, por causa de celebridades como Oprah Winfrey virem a público assumir que os usavam para perder peso.

A utilidade deste típico de fármacos em doentes obesos já foi provada, mas a comparticipação quando falamos apenas de obesidade — e não de obesidade e diabetes — é inexistente em Portugal. E para Mário Silva, trata-se de discriminação.

"Porque é que uns doentes podem ter acesso a tratamento e outros não? Não falo do Ozempic especificamente, que também é útil contra a obesidade, e foi justamente essa descoberta que levou a que neste momento existam medicamentos indicados para a obesidade, mas esse fármaco é indicado para o tratamento da diabetes. Mas existem outros com os mesmos princípios ativos, mas com dosagens diferentes, que esses sim, são indicados mesmo para a obesidade."

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"Mas não são comparticipados", continua o presidente da APCOI. "Há uma discriminação e é do próprio sistema de saúde, e isso tem que ver com este histórico de, no passado, esta condição não ser vista como uma doença. Atualmente, temos soluções como a cirurgia, mas isso é só para alguém já num estado muito crítico, o que é altamente discriminatório. Pior: muitas vezes, geram uma situação completamente indesejada, até aconselhada por profissionais de saúde. Quando temos alguém no limiar de ser elegível para cirurgia, por iniciativa da pessoa ou influenciada, os doentes tentam engordar de propósito para serem elegíveis para a operação."

Falta literacia para os pais fazerem melhores escolhas para os filhos

A obesidade infantil é um problema sério em Portugal e, para Mário Silva, a falta de informação é um dos fatores primordiais nesta questão. "O nosso País tem uma baixíssima literacia em saúde e uma muito baixa literacia alimentar. A maior parte das pessoas não sabe ler um rótulo alimentar, saber o que é mais ou menos saudável. E depois temos toda a avalanche de manobras de marketing que assolam o nosso dia a dia. Por exemplo, temos uma multinacional com um orçamento de milhões de milhares de euros para fazer vender os seus produtos, que não olham a meios para atingir fins, e têm de levar um travão."

"Temos um pai com pouca formação, que não teve acesso a mais educação a seguir ao 12.ª ano, por exemplo, e vamos colocar a culpa nesse pai de ceder à pressão deste marketing, brindes divertidos que cativam as crianças, quando muitas famílias vivem com baixos orçamentos e têm de optar por alimentação ou brinquedos? E depois esse pai ou essa mãe pensa: 'se formos ali, temos um pack e cumprimos os dois objetivos, a criança fica feliz com o brinquedo e fazemos uma refeição, e se está à venda, é porque não faz mal ao meu filho'. Tudo isto e um raciocínio. Um pai com alguma literacia opta por uma refeição mais equilibrada e ter de fazer mais esforços, ou por negar mesmo o brinquedo porque o importante é comer de forma correta", conclui Mário Silva, que salienta que a legislação pode ajudar, tal como foi feito em 2021, quando alimentos como refrigerantes e batatas fritas foram proibidos em bares e cantinas escolares.

"Esse pai ou essa mãe pensa: 'se formos ali, temos um pack e cumprimos os dois objetivos, a criança fica feliz com o brinquedo e fazemos uma refeição, e se está à venda, é porque não faz mal ao meu filho'. Tudo isto e um raciocínio"

"Continuo a achar que é disto que se trata, de literacia, de dotar as as pessoas de informação. Temos previsto no orçamento de Estado para 2024 medidas para integrar o tratamento da obesidade nos cuidados de saúde primários. Ter nos centros de saúde equipas multidisciplinares no sentido de prevenir, onde ainda é possível reverter o cenário com literacia, aprender o que precisam mesmo de fazer. Também há profissionais de saúde que não são isentos deste estigma, destes tabus, e esperemos que todos estes profissionais tenham a oportunidade de ter formação. Ter uma lei destas, mas pessoas sem formação em como conduzir conversas, conflitos ou culpabilização dos pacientes, não faz sentido. E é também aqui que entra o livro, que é para toda a gente, e para todos termos uma melhor compreensão desta doença", conclui o presidente da APCOI.

“Mamã, o que é a Obesidade?” pode ser adquirido nas principais livrarias do País e também online, por 15,90€.