Há duas facetas de Henrique Sá Pessoa. De um lado, temos o chef de cozinha com duas estrelas Michelin. Do outro, o "vizinho do lado", como o próprio se caracteriza, que ensina os portugueses a cozinhar com diversos programas de culinária na televisão. Com uma presença no pequeno ecrã há cerca de 15 anos, Henrique Sá Pessoa regressa ao 24 Kitchen já esta segunda-feira, 17 de janeiro, com a estreia de "ComTradição Pelo Mundo", um spin off do "ComTradição", programa que fez sucesso no canal de cabo dedicado à culinária.
"A ideia inicial é a mesma das temporadas anteriores do 'ComTradição', mas a diferença é que, em vez dos pratos tradicionais portugueses, vou abordar pratos conhecidos de 15 países diferentes, dos quais 12 já visitei", conta à MAGG o chef de 46 anos. "Só não estive na Índia, na Grécia e no Perú, que é justamente o país da estreia."
Para além de deixar Portugal para trás e abrir fronteiras, esta viagem pelo mundo através da cozinha deve-se ao lado mais viajante de Henrique Sá Pessoa, que deu o mote para a escolha dos países, mas também ao facto de ser preciso inovar. "Ao fim de 120 receitas de gastronomia portuguesa — no 'ComTradição' —, achámos que estava na altura de evoluir para outro tipo de cozinha e explorar. A gastronomia portuguesa é muito variada de norte a sul, mas as bases são muito parecidas. É sempre a cebola, o alho, o louro, o refogado. A certo ponto, começa a ficar limitativo", explica o chef.
Assim, ao longo de 30 episódios, pode esperar receitas cheias de sabor, coloridas, apelativas visualmente e até inusitadas, sempre com o objetivo de ensinar as pessoas a cozinhar e a replicar estas sugestões em casa.
"Algumas receitas são mais óbvias para quem conhece a gastronomia daquele país, outras nem tanto. Aliás, algumas delas eu nunca tinha feito. Seguimos um processo de seleção: tinham de ser bonitas em televisão e era importante que também fossem acessíveis, quer em termos de ingredientes, quer em processos de confeção. Se calhar até podem existir receitas mais conhecidas, mas mais difíceis de replicar. Mas, para nós, era importante que as pessoas conseguissem encontrar os ingredientes."
Para além da facilidade em encontrar os componentes, o chef do Alma também acredita que é importante aproximar o público das receitas internacionais. "A ideia também é brincar um bocadinho, e tentar incorporar sempre ingredientes portugueses em algumas das receitas. Deu-me imenso gozo fazer este programa."
"Por cada comentário negativo que recebo, tenho 200 positivos a defender-me"
Pegar em receitas tradicionais e dar-lhes uma nova interpretação pode ser um jogo perigoso — mas Henrique Sá Pessoa não tem qualquer problema em entrar na arena. "Há receitas que vão surpreender e, como sempre, outras vão ser criticadas. Há sempre quem me critique por fazer coisas que não correspondem à receita original, mas acho que a piada do programa também é muito essa", salienta o chef.
"Quando fiz a feijoada à brasileira, fiz um puré de feijão, utilizei enchidos portugueses. Por isso, se calhar, alguém natural do Brasil vê o programa e diz que aquilo não é uma feijoada", explica Henrique Sá Pessoa, uma situação semelhante (mas no inverso) com o que se passou com Gordon Ramsay no programa "Uncharted", quando o chef inglês fez um pequeno-almoço português com ovos e carne de porco preto.
Questionado sobre a comparação, e se fica assustado com os eventuais comentários negativos, Sá Pessoa é assertivo. "Não me preocupa minimamente, e até acho piada a esse debate. Até porque por cada comentário negativo que recebo, tenho 200 positivos a defender-me. Por exemplo, ainda no outro dia fiz uma publicação com a minha versão do bacalhau à Brás, que leva uma gema de ovo confitada em cima. E veio logo alguém dizer que aquilo não era a receita original. Imediatamente, seguiram-se centenas de comentários a dizer que a pessoa nunca tinha experimentado, que tinha de ter a mente aberta."
"Na gastronomia, não há certos e errados. Não aceito dizerem-me que não posso fazer o bacalhau à Brás assim porque sou eu que o vou comer."
"Não é por se sair de um reality que se tem um futuro brilhante à frente"
Há cerca de 15 anos que Henrique Sá Pessoa tem marcado presença na televisão, através de vários formatos de programas culinários. Mas há uma razão para este sucesso?
"Acho que um dos meus segredos foi nunca me ter tornado demasiado popular. Toda a gente sabe quem eu sou, mas nunca fui muito mediático como o Ljubomir [Stanisic] é agora, por exemplo. Nunca estive muito exposto, nunca fiz um grande formato em televisão. Fiz o 'Chef's Academy' há uns anos, mas partilhado com a Marlene [Vieira], o Kiko [Msrtins] e o Zé Cordeiro. Tenho uma presença mais discreta, e acho que as pessoas olham para mim um bocado com aquela ideia de 'guy next door', o tal vizinho do lado, que tem programas onde ensina o público a cozinhar. Acho que sou humilde, mantenho os pés bem assentes na terra. Talvez seja esse o segredo da minha longevidade em televisão, nunca me deixei iludir muito."
Falando de televisão, e numa época em que a cozinha é abordada todos os fins de semana nos canais generalistas com o "MasterChef" aos sábados na RTP1, e o "Hell's Kitchen" nas noites de domingo, na SIC, qual dos formatos é mais fiel ao que se passa dentro das cozinhas dos restaurantes?
"Nem um nem outro correspondem à realidade. São formatos criados para o prime time e para prenderem as pessoas à televisão durante uma hora e meia. Sinto que o 'MasterChef' é mais didático, mas o 'Hell's Kitchen' tem um lado que corresponde à realidade no sentido em que há muita pressão nas cozinhas — e quanto mais o nível do restaurante sobe, mais pressão existe. Pode tocar na realidade de alguma forma nesse ponto, mas claro que há tudo o resto que é puro entretenimento. As intrigas, as discussões e as reações, a própria forma como o Ljubomir reage tem sempre o lado televisivo", afirma Henrique Sá Pessoa.
"Mas o 'MasterChef' também tem um lado televisivo. Porque ninguém que se sagre vencedor do programa pode ter a ilusão que vai sair dali, abrir um restaurante e ser uma pessoa bem sucedida imediatamente. O percurso de um cozinheiro até ter essa experiência demora, não é em 12 ou 13 semanas que isso vai acontecer, e acho que o formato vende esse sonho."
No entanto, o chef do Alma é o primeiro a reconhecer que o formato da RTP pode ser um empurrão e uma preparação para um início de carreira. "Há exemplos disso. Conhecemos a Ann Kristin e a Margarita Pugovka, que ficou em terceiro lugar em 2019 e hoje trabalha para mim em Amsterdão [ no ARCA Amsterdam] como pasteleira. Ter sucesso é um caminho, e acho importante saber gerir expectativas e perceber que não é por se sair de um reality que se tem um futuro brilhante à frente na cozinha. Isso vai depender de muitos outros fatores que vão além de entrar num programa de televisão."
Terceira estrela Michelin? "Não tenho pressa"
O Alma, o primeiro projecto em nome próprio de Henrique Sá Pessoa, ganhou a primeira estrela Michelin em 2016. Em 2018, chegou a segunda. Mas a terceira continua a tardar — tal como para todos os outros restaurantes portugueses, dado que não existe nenhum espaço nacional a deter três estrelas.
"Nunca podemos descartar a hipótese de ter esse objetivo. Isso é como perguntar ao presidente do Sporting, que esteve anos e anos sem ser campeão, se se contentava em estar sempre em terceiro lugar. Quando se está a um nível de uma, duas estrelas Michelin, é obvio que queremos sempre chegar à próxima e não acredito que haja um chef que vai dizer que não quer."
No entanto, Sá Pessoa descarta que viva obcecado com esse propósito diariamente. "Não acordo todos os dias a pensar na terceira estrela, até porque há outras coisas na minha profissão e muito outros projetos que me dão gozo. Agora, perante a minha equipa e perante o projeto do Alma, gosto de sentir que estamos sempre em constante evolução. Todos os anos, de alguma forma, conseguimos que a experiência no Alma seja cada vez mais refinada, complexa, pessoal, que haja um elemento de novidade. Se isso me aproxima mais da terceira estrela Michelin, isso infelizmente já não sou eu que consigo controlar."
Para o chef, o nível em Portugal em termos gastronómicos está tão elevado que a terceira estrela, seja para o seu Alma — "tivemos uma evolução tremenda em cinco anos, o que também explica ganharmos duas estrelas no espaço de três anos" — ou para qualquer espaço que já detenha duas estrelas Michelin, "é uma questão de tempo".
"Ficamos sempre tristes quando a terceira estrela não chega porque é mais do que merecido. Há vários restaurantes em Portugal que já estão a esse nível, mas todos sabemos que vão chegar. No meu caso, não tenho pressa. Agora, também não podemos baixar a guarda, porque da mesma forma que podemos ganhar, também podemos perder, e há que estar preparado para isso."
"É um campeonato em que tem de se saber gerir expectativas. Quem vive obcecado por estrelas Michelin é uma pessoa que sofre na vida, porque é algo tão difícil de controlar que não da para fazer previsões."
"ComTradição Pelo Mundo" estreia esta segunda-feira, 17 de janeiro, no 24Kitchen, às 21h. O programa é exibido de segunda-feira a sexta-feira.