Tem uma energia que se nota nas muitas palavras que debita, na forma entusiasmada com que fala sobre o que o move e nos muitos números que sabe de cor e que servem para sustentar uma luta que assumiu como sua. Quer pôr Portugal a comer mais feijão e menos McDonalds, mais legumes e menos enchidos.
Nuno Queiroz Ribeiro despertou tarde para a gastronomia e só quando entrou pela primeira vez numa cozinha profissional — para ajudar a pagar os estudos de fotografia — é que percebeu que dali já não queria sair.
Estudou na Cordon Bleu, viajou por Itália e pelo Líbano, onde trabalhou e absorveu tudo o que pôde sobre comida de verdade, e é o único chef português com uma distinção de mérito do Ministério da Saúde e o primeiro convidado para um simpósio da Organização Mundial de Saúde, onde foi promover a dieta mediterrânica.
Aos 43 anos e com três filhos que não comem batatas fritas (pelo menos quando está presente), abriu agora o seu primeiro restaurante, o Mediterra, onde não entram processados nem açúcares refinados. Há pratos vegetarianos, mas também peixe e até carne, que o objetivo aqui é oferecer uma cozinha democrática.
Em breve, e adaptando-se às restrições impostas pela COVID-19, vai subdividir a sua cozinha em cinco, com restaurantes a funcionar apenas para entregas. À MAGG fala sobre estes novos desafios, mas também sobre os antigos. É que ele não descansar até ver uma criança preferir um pão com queijo a uma Bola de Berlim.
É dos que começou a cozinhar ainda em criança, em família?
Comecei a cozinhar em criança com a minha mãe. Sempre tive muita curiosidade em ver a minha mãe na cozinha e sempre gostei de a ajudar nisso. A minha mãe chegou até a ter um negócio de venda de bolos e sobremesas para fora e havia fins de semana que ela não estava e era eu quem cozinhava.
A memória mais antiga que eu tenho sou eu aos três anos a dizer que queria ser o homem das castanhas. Um dia vi-o na rua e pensei: “Eu quero ser o homem das castanhas!”. [risos] Acabei por me tornar um pouco mais do que isso em termos de cozinha.
Mas, inicialmente, trabalhar em cozinha não era um objetivo.
De todo. Quando fui para Londres, fui para estudar fotografia. Só quando cheguei a Londres é que descobri o mundo da cozinha. O meu primeiro trabalho lá foi numa cozinha, apanhei a altura em que o Jamie Oliver estava a aparecer, via os programas do Gordon Ramsay...
Quando é que percebeu que a cozinha ia ser um emprego?
Mal pus os pés naquela cozinha em Londres.
Apostou depois em formação?
Sim, em pouco tempo estava a estudar no Cordon Bleu. E já lá vão 16 anos.
Como era a sua alimentação em criança?
Sempre tive a sorte de ter uma alimentação cuidada, mesmo em criança. Tinha acesso a vegetais, comia todos os dias sopa, o prato tinha sempre salada. Eu não me lembro de os meus pais me levarem a uma cadeia de fast food, por exemplo.
Sempre comi comida verdadeira. E é exatamente essa a minha luta: que as pessoas comam comida de verdade. Não têm que comer só biológico, ou só legumes, a comida tem é que ser real.
Os seus filhos comem batatas fritas?
Comigo não. [risos]
E as outras crianças?
Todos os dias que ando na rua, ou entro num café, fico espantado com o que vejo. Mas basta andar na rua e olhar para as crianças: a maioria tem excesso de peso. E depois vejo a forma como os pais compram comida para os filhos, a forma como lhes dão de lanchar. É muito diferente da forma como isso acontecia quando eu era criança. Eu lembro-me de comer um pão e fruta em casa, não ia a um café lanchar um bolo, nem bebia refrigerantes. Mas também a realidade é muito diferente. Quando eu era criança, havia um supermercado, o Continente. Hoje em dia temos, sei lá, dez supermercados diferentes, não sei quantos hipermercados, e isso fez com que a oferta seja mais diversificada. O truque nos supermercados é não andar nos corredores centrais, onde estão os processados. É nos laterais que estão os frescos.
Há uma responsabilidade política muito grande, mas é difícil de a ver concretizada. Tanto tens pessoas no Ministério da Saúde a querer fazer coisas, como pessoas no Ministério da Economia ou das Finanças que querem é ter impostos. Se as crianças consomem entre cinco a sete refrigerantes por semana, imagina os impostos que isso não dá. Mas depois pagamos muito caro, a médio e longo prazo, na nossa fatura no SNS. A obesidade é uma das coisas que mais dinheiro gasta à nossa economia. Temos 40% da população pré-diabética, temos 60% da população adulta com excesso de peso e obesidade.
Como chegámos a estes números?
O fast food entrou-nos em casa vendendo a ideia de que é muito mais barato. Mas façam isto: peguem numa lata de grão ou feijão, juntem legumes e vão ver que custa metade de um menu do McDonald's, do Burger King ou do KFC.
Mas não é só isso, os valores estão diferentes. Nós demitimo-nos da função de cozinhar, afastamo-nos da responsabilidade que temos com a nossa saúde, e depois culpabilizamos um terceiro, que não sabemos quem é, pelas doenças crónicas.
Em que altura deixámos as nossas tradições alimentares para trás?
Foi na transição para a minha geração. Eu sou do Porto e lembro-me bem quando abriu o primeiro McDonald's na Maia. Faziam-se excursões! Foi aí que as cadeias de fast food entraram em força na nossa casa, na nossa televisão. É a força da publicidade. Nós hoje entramos na UberEats e a primeira coisa que vemos é McDonald's ou Pizza Hut.
Mas a pizza, por exemplo, tradicionalmente não é uma coisa pouco saudável. Na sua base, é pão com molho de tomate e um bocado de queijo. O que é mau é a barbaridade de processados que agora lhes são postos em cima. Tudo o que é processado tem excesso de sal e de açúcar, e o açúcar vicia nove vezes mais do que a cocaína. Nós perseguimos uma coisa como o diabo — que é e eu não ponho isso em causa — mas aceitamos o açúcar, que mata muito mais e é vendido em todas as formas e feitios.
"A pandemia foi a desgraça para a obesidade"
Como se deu esse despertar para a preocupação com a alimentação saudável?
Deu-se quando o meu pai morreu com um cancro do pâncreas. O meu pai tinha diabetes, triglicéridos altos e morreu de cancro. Foi um turning point para mim. A partir daí quis ser um exemplo.
Esse exemplo acontece agora no Mediterra?
Completamente. É lá que mostro que as pessoas podem comer saudável, mas cheio de sabor. A comida é super saborosa sem ter um açúcar refinado, uma gordura saturada, ou sal refinado. A comida é temperada q.b., com especiarias e muito amor.
E quando sai dessa bolha saudável, com o que é que se depara?
Nas escolas, principalmente, continua a chocar-me que sejam permitidos fritos e comida processada. Rissóis, croquetes, lasanhas e enchidos são servidos nas cantinas.
Já me reuni com o Ministério da Educação e até com o Presidente da República para que este caderno de encargos seja revisto, mas entretanto as cantinas públicas já têm atribuídas as empresas de catering, tudo continua igual e este tipo de coisas continua a ser permitido. O leite achocolatado, por exemplo, tem mais açúcar que uma Coca-Cola e é permitido nas escolas públicas, e até é oferecido pelo governo às escolas.
Eu defendo muito que regressar não é regredir, e se nós voltássemos às nossas origens, à nossa dieta mediterrânica nas escolas, tudo ia mudar. Temos que olhar para as crianças como uma prioridade
Acredita que ainda vamos a tempo de mudar, ou às vezes a frustração fala mais alto?
São duas coisas: frustração de remar contra a maré sinto imensas vezes, mas não deixo de ter, todos os dias, a força de renascer como uma fénix. Reinvento-me para encontrar energia e força para trazer uma mensagem de esperança e positivismo às pessoas. Para toda a gente, há sempre um turning point. Mas, claro, todos os dias que não o fizermos, é sempre mais tarde. É que este é um problema que não é individual. Uma pessoa obesa e que se alimenta mal, não está só a afetar a sua saúde. Está a afetar a saúde dos meus filhos, porque os recursos naturais estão em risco.
Eu admiro imenso a Greta [Thunberg] e de todas as Gretas do mundo, mas ainda não estamos a ver o problema como um todo. Um exemplo disso são as palhinhas, que demonizamos tanto, e que representam apenas 0,01% de todo o plástico que está no mar. Já todo o plástico que foi deitado pelos pescadores ao mar é responsável por mais de 34 % do lixo que está no mar. Demonizamos uma coisa sem pôr o dedo na ferida. A forma como nos alimentamos, consumimos e compramos é que está a acabar com os nossos recursos naturais.
Quais são os principais agentes de mudança?
Temos que envolver a comunidade inteira e trazer a informação certa às pessoas. As pessoas têm que saber a produção de um hambúrguer equivale ao gasto de 15 mil litros de água. E se pensarmos que temos 3% de água potável no mundo e que estamos a desperdiçá-la a produzir 80 mil milhões de animais por ano.
Põe rótulos na sua alimentação?
Por defeito de profissão sou obrigado a provar tudo, mas a minha alimentação diária é vegan e vegetariana.
E a sua cozinha, tem rótulos?
A minha cozinha serve dieta mediterrânea, que, se virmos bem, tem apenas 9% de carne. Se pensarmos que precisamos apenas de 60 gramas de proteína por dia e que ela está também no arroz, nas favas, no grão, no feijão...
Mas percebi, ao longo da minha vida que, na cozinha, se queremos mudar mentalidades não podemos ser fundamentalistas, temos que ser ativistas. Se eu quiser que toda a gente coma comida vegan ou vegetariana, eu vou ganhar inimigos
Ainda que tivesse estado estes últimos anos ligado à gastronomia, este é o primeiro restaurante. Porquê tanto tempo?
Porque eu fugi da restauração toda a vida. Eu tenho três filhos e quero vê-os. Se eu trabalhasse na restauração eu não ia ter uma vida com eles.
Porquê abrir agora?
Porque o Mediterra só serve almoços, fecha à noite e ao fim de semana.
Falo não apenas da fase da sua vida que escolheu para a abrir o restaurante, mas principalmente da fase que o País atravessa e que não é propícia a grandes loucuras.
Já estava previsto na verdade. Já tinha contratos feitos e comecei a obra em fevereiro, que teve que ser interrompida até há pouco tempo. Mas eu vou aproveitar este espaço para ter ainda cinco restaurantes virtuais.
Que restaurantes vão ser esses?
Vou ter o Mediterra disponível para entregas, mas também uma hamburgueria vegetariana, uma empanaderia argentina, um coffee house com sobremesas saudáveis e um restaurante libanês.
Isso foi uma resposta as condicionantes da COVID-19?
Claro. Decidi virar-me imediatamente para o online, vai ser a sobrevivência do meu negócio.
Mas não tenho dúvida que tem que haver um compromisso muito maior por parte do governo e o governo tem que apoiar a restauração. Nós não temos forma de suportar isto, e vai piorar quanto mais medidas medidas restritivas houver e quanto mais pânico criarem às pessoas.
O que eu gostava de ver é um meio de comunicação falar sobre a importância da alimentação na nossa saúde. É que, no geral, esta doença mata quem já tem uma doença, ou diabetes, ou obesidade, ou uma doença cardiovascular. E pior, a pandemia foi a desgraça para a obesidade. Se pouca atividade física faziam, menos fazem e, em termos de alimentação, quem ficou com menos dinheiro, vai atrás de uma falsa ilusão de optar por algo mais barato mas mais calórico. Fazer uma sopa, cozer um grão, fazer uma arroz e uns legumes é mais barato que qualquer uma dessas porcarias.