Há mais de uma década, a minha tia Maria olhou-me nos olhos e disse-me que queria morrer. Não havia medo nas suas palavras, dúvidas nos seus olhos ou rancor no seu coração. A voz não lhe tremeu, o seu olhar não ficou cheio de lágrimas, as dúvidas não lhe trespassaram o peito como setas. Não, não houve nada mais além de um pedido sincero e genuíno de quem sabe exatamente o que quer — e está em pleno uso das suas faculdades mentais para reconhecer o peso daquelas palavras.

Dois anos antes, a minha tia Maria tinha tido um AVC que a deixou com metade do corpo paralisado. Depois de uma vida inteira a usufruir da sua independência, mesmo quando a sociedade lhe dizia que não o podia fazer, ficou confinada a uma cadeira. A mulher que ousou divorciar-se ao fim de poucos meses, que viajava sozinha pela Europa e pelo mundo e que nunca teve medo de dizer o que pensava, nunca mais voltaria a andar, a comer ou a defecar sozinha. Nunca mais seria capaz de pegar num livro, de pintar um quadro ou de fazer uma escultura, as suas grandes paixões nesta vida.

No primeiro lar tinha sido agredida pelas funcionárias. No segundo, era maltratada verbalmente. No terceiro deixavam-na sozinha o dia inteiro, até quase enlouquecer com a solidão. No quarto desidratou até passar de uma cadeira para uma cama num verão demasiado quente — ninguém se apercebeu de que tinha deixado de beber água, apesar de estar numa sala com (supostamente) três funcionários e mais 30 idosos.

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Dois anos depois de ter um AVC, a minha tia Maria estava deitada numa cama e sabia que nunca mais iria voltar a ver a sua casa. Nunca mais iria largar as fraldas ou deixar de beber água por uma seringa. Nunca mais voltaria a ver a luz do dia senão por uma janela, aquela que fitava todos os dias porque era a única coisa que tinha para fazer. A minha tia Maria, a mesma que me ensinou a escrever, que me levou a museus e exposições e que me incutiu o gosto pela arte, estava confinada a uma cama na esperança de que chegasse rápido o dia de morrer.

Eu não pude matar a minha tia Maria. Tê-lo-ia feito sem pestanejar no dia em que ela me fez este pedido, no entanto a lei em Portugal não o permite. Ela não tinha condições físicas para o fazer sozinha, eu não tinha condições práticas para o fazer sem acabar acusada de homicídio. A minha tia Maria desistiu de viver naquele dia em que eu lhe respondi "Não digas isso", apesar de o meu coração gritar "Eu sei".

Só que continuou a respirar durante mais oito anos. Oito anos. Esteve à beira da morte várias vezes, deixou de conseguir falar e de se alimentar por via oral, mas continuou a "viver". Viver. Como é irónica esta palavra aqui. Sucumbiu à tristeza profunda, a uma vida que ninguém quer ousar sequer pensar viver um dia. Mas ela viveu-a. Dia após dia. Hora após hora. Com o olhar preso naquela janela, sem conseguir falar palavras que alguém entendesse. Ficou presa dentro da sua mente durante anos, até ao dia em que finalmente partiu.

A minha tia Maria era religiosa. Acreditava na religião católica apostólica romana. Antes do AVC, ia à missa e fazia a confissão dos seus pecados. Depois, rezava o terço e recebeu a extrema-unção mais vezes do que gosto de recordar. Sim, a minha tia Maria era religiosa, católica apostólica romana, no entanto, nunca teve dúvidas no seu íntimo de que não estava a ir contra a sua religião. Ela sabia que nenhum Deus quereria que um dos seus filhos sofresse assim.

Os últimos dois anos de vida da minha tia foram passados a gritar. A gritar e a gemer, de dores, de pânico, de exaustão. E os médicos, enfermeiros e auxiliares tudo o que nos diziam é que se continuasse assim teria que ir para outro lar.

Este é possivelmente o editorial mais pessoal que escrevi até hoje. Mas não quis deixar de fazê-lo porque neste pequeno espaço de opinião onde nunca tive medo de dizer o que pensava, nunca a história da minha tia Maria me pareceu mais relevante. Portugal volta a discutir o tema da eutanásia. A maioria dos partidos com representação na Assembleia da República quer impedir um referendo à população, porque, mais uma vez, acham que a sua opinião vale mais do que a do povo. Oito religiões assinaram uma declaração conjunta contra a eutanásia, porque acreditam que ninguém tem o direito a querer morrer, mesmo que já tenha morrido há muito tempo.

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Há dois anos discutiu-se o tema da eutanásia e não deu em nada. Em 2020, não quero ser pessimista, mas vamos ver o que acontece. Toda a gente tem o direito a ter a sua opinião e a defender as suas convicções pessoais — sejam elas contra ou a favor da minha. Tudo bem. Não preciso que toda a gente concorde comigo. Não preciso sequer que tomem a mesma decisão que eu tomaria um dia em relação a mim e aos meus, se a lei o permitisse.

Mas ninguém me pode dizer que a minha tia Maria tinha que viver. Ninguém me pode dizer que a minha tia Maria não tinha o direito de morrer quando o pediu. Ninguém me pode dizer que passar um total de dez anos sentada/deitada, a defecar numa fralda e a comer e beber por uma seringa, sem conseguir obter entretenimento de qualquer forma e a gritar de dores todos os dias, é vida. Não é, é tortura. E é a tortura que a lei neste País nos obriga hoje a suportar.

Nunca me perdoei verdadeiramente por não ter ajudado a minha tia. Apesar do meu lado racional me dizer que não podia fazer nada, o meu coração diz-me que deveria ter feito alguma coisa. Hoje já não há nada que eu possa fazer em relação a isso. Mas, se não posso mudar o passado, ao menos que lute para mudar o futuro.

Que ninguém se esqueça da história da minha tia Maria. E, acima de tudo, que ninguém nunca tenha de sofrer o que ela sofreu durante uma década de "vida".

Esta semana, a jornalista Rafaela Simões sentou-se à conversa com um advogado para entender todos os meandros da lei que diz que Ângela não pode ter um filho do falecido marido, Hugo. A história deste casal tornou-se conhecida na reportagem "Amor Sem Fim", que comoveu o País. O que diz a lei, o que pode mudar e poderá Ângela ter mesmo um filho de Hugo? As respostas — as possíveis pelo menos — estão aqui.

Já a jornalista Marta Cerqueira conversou com Ana Milhazes, a mulher que destralhou a casa e a vida e contou tudo num novo livro intitulado "Vida Lixo Zero". O lixo de Ana cabe num frasco — e garante que o seu também pode vir a caber.

Também foi um novo livro que lançou a jornalista Ana Luísa Bernardino neste trabalho sobre o sono. Não consegue dormir 8 horas e está sempre a acordar? É porque não está a cumprir estes mandamentos — ela diz-lhe quais.

No mundo das fofocas, contamos-lhe também porque é que Jessica Athayde vai passar a tomar banho de água gelada por causa da série documental "The Goop Lab", a polémica que levou Diogo Carmona e a mãe para tribunal e o mais recente comentário de Macaulay Culkin sobre Michael Jackson.

Ainda não acabámos. Para quem anda à procura de novidades, temos sugestões para o fim de semana, noites de Sexo e a Cidade em Lisboa só para mulheres e um novo bar onde quem manda são os cocktails e as ostras. Para terminar, deixamos-lhe um desafio: não pode dizer que conhece os edifícios mais famosos do mundo se não identificar pelo menos 14 de 16 neste teste.