A 24 de fevereiro acordámos com a devastadora notícia de que a guerra tinha começado na Ucrânia. Pânico, medo, angústia, vontade de ajudar ou impotência são alguns dos sentimentos e emoções que, nos últimos dias, nos têm assolado.
Por se tratar de uma guerra num país tão próximo, por estarmos constantemente em contacto com notícias sobre o acontecimento, por conhecermos pessoas ou familiares de pessoas que estão a passar pela situação no local, sentimos também mais empatia e muita vontade de fazer algo para ajudar.
Contudo, a invasão russa à Ucrânia é um acontecimento que está a causar também muita ansiedade. Nestes momentos, o que devemos fazer? É bom consumir todo o tipo de informação disponível sem qualquer critério? Fazer voluntariado ou ajudar da forma possível pode fazer com que nos sintamos melhor? É normal haver um sentimento de culpa por continuarmos a fazer as nossas atividades diárias? Falámos com uma psicóloga para esclarecer estas questões.
"Abraçar e reconhecer, com atenção e sem julgamento, todas as emoções que vão surgindo", é, segundo Filipa Jardim da Silva, o primeiro passo. Desligar por completo do tema não é, segundo a psicóloga, a melhor solução. Pelo contrário, diz que "devemos partir do princípio de que as emoções que vamos experienciar, e toda a comunicação que o nosso corpo nos vai dar, é uma informação útil e que estarmos sintonizados com o que está a acontecer à nossa volta é importante pois "só assim conseguimos ser verdadeiramente ativos na sociedade".
Nestes momentos, em que algo pode interferir com a nossa saúde mental, a psicóloga aconselha a que cada um de nós divida o processo em quatro etapas:
- observar o que estamos a experienciar;
- dar nome;
- explorar com curiosidade e sem julgamentos;
- e, por fim, satisfazer as necessidades.
"A emoção é a experiência muito corporal e automática que vai sendo reativada consoante o que vai acontecendo. Não controlamos as emoções na sua verdadeira génese, mas, ao dar-lhes nomes, vamos conseguir regular a sua intensidade. O sentimento surge já num segundo momento — e num terceiro é importante explorar as necessidades que estas emoções me estão a comunicar".
Nesta fase, é importante "não nos perdermos em legendas mais julgadoras". Segundo a especialista, é isso que muitas vezes acontece: "criticarmo-nos por estarmos ansiosos, julgando-nos fracos, e dar uma conotação negativa a isso."
Filtrar o que se vê, diminuir a exposição às notícias e escolher fontes de informação credíveis é essencial
Chegando ao quarto passo, o de "satisfazer as necessidades", a psicóloga esclarece que o que pode estar a faltar é precisamente filtrar e diminuir as fontes de informação e tentarmos procurar estar informados uma ou duas vezes por dia, através de fontes de informação credíveis.
"Nós já passámos por isto, de uma forma diferente, com a pandemia. Mas o exercício aqui é muito semelhante. Nós temos um momento de pânico e temos que, uma vez mais, dar espaço a isso. O que acontece é que o que tentamos fazer nestas alturas é procurar controlo na busca de muita informação e atualizada ao minuto. Isso, passado alguns dias, não é viável."
Segundo a psicóloga, é importante que exista uma "alternância" entre os momentos em que estamos conectados com a situação e os momentos em que estamos a viver o presente e o nosso dia a dia.
"É importante que possamos escolher uma ou duas fontes de informação credíveis, que possamos ir uma ou duas vezes por dia recolher essa informação e que também tenhamos atenção ao nosso nível de sensibilidade e às nossas características pessoais. Há pessoas extraordinariamente visuais e, por isso, são vulneráveis a imagens e a vídeos. Se assim for, é preferível privilegiar a informação escrita sem exposição a vídeos e imagens."
"Regular o medo não é fingir que nada se está a passar"
Nestes momentos, é, segundo Filipa Jardim da Silva, inevitável que queiramos ter uma perceção de controlo, mas também necessário que "não enterremos a cabeça na areia e não pensemos que regular o medo é fingir que nada se está a passar".
"Regular o medo é assumir que estamos numa situação de perigo, numa era desafiante e também perguntarmos a nós próprios: 'Aqui e agora, no meu campo de ação e na minha realidade, o que é que posso fazer para, no fundo, combater esta situação ou prevenir situações idênticas?''"
Regularmos as nossas próprias ações é, de acordo com a especialista, estarmos a contribuir para sermos "cidadãos saudáveis do ponto de vista mental e físico", o que faz com que possamos contribuir com decisões mais acertadas e valores mais humanistas. Assumindo que "o espectro de ajuda é muita grande", a psicóloga aconselha a que cada um tente perceber o que pode fazer, dentro das suas características e circunstâncias de vida, para contribuir neste momento.
"Para as pessoas que hoje partiram na Caravana Humanitária, aquilo que sentiram foi que era isso que o seu sistema estava a pedir. Há pessoas que se estão a mobilizar de uma forma direta em relação a este conflito, mas também existem outras formas de nós agirmos e contribuirmos: que é precisamente através das ações indiretas", diz, referindo-se aos comportamentos de entreajuda, cooperação e diálogo que ajudam a fazer do mundo um local melhor.
"Há pessoas que não conseguem mesmo fazer doações. É muito importante não entrarmos em comparações"
Nos últimos dias, os pedidos de ajuda têm-se multiplicado, mas as respostas também. Seja através de manifestações de apoio — como as que aconteceram no passado domingo, 27, um pouco por todo o País —, vigílias, jornadas de oração, recolha de bens e medicamentos ou apoio psicológico, o povo português já mostrou que está disponível para ajudar. Mas nem todos podem ajudar da mesma forma.
"Há pessoas que não conseguem mesmo fazer doações, por exemplo, e por isso acho que é muito importante não entrarmos em comparações", frisa, salientando que, nestas alturas, há dois tipos de comparações muito comuns que não devem mesmo ser estimuladas.
"No sentido discriminatório, acontece muitas vezes por parte de pessoas extremistas do nosso país, a ideia de que 'então agora temos alojamento para receber as pessoas da Ucrânia, mas não temos para receber os sem abrigo portugueses': isto é um caminho fácil, mas é importante perceber que não podemos entrar por esses pensamentos de discriminação e comparação de coisas que não são comparáveis. Ao mesmo tempo, não nos colocarmos numa escala de tentar perceber quem é que ajuda mais e quem é que faz mais."
Aqui, a especialista frisa que é importante distinguir a comparação ou competição da admiração.
"Cada um deve fazer aquilo que sentir que é viável que seja feito à sua escala. Naturalmente existem comportamentos que nos podem causar admiração, mas a admiração é um sentimento que deve vir de um sítio de apreço e não de comparação. Quando eu admiro alguém que, por exemplo, vá, neste momento, na Caravana Humanitária é importante que eu simplesmente fique nessa admiração, mas que não faça o efeito ricochete de virar para mim e dizer: 'Eu não estou a fazer isso. Eu não estou a contribuir o suficiente'."
A importância de usufruir de momentos de prazer sem culpa
Neste momento, paira o sentimento de que o mundo está a ruir, ficamos devastados por saber que há muitas pessoas a morrer, milhares a deixar as suas casas e tudo o que tinham para trás à procura de segurança. Ainda assim, por não estarmos no epicentro da guerra, vimo-nos confrontados com a necessidade de continuarmos a fazer a nossa vida, o que por vezes gera sentimentos de culpa.
Contudo, Filipa Jardim da Silva alerta para que "quando nos apanhamos em momentos de prazer, alegria ou diversão, é importante que também nos permitamos, sem culpa, a usufruir desse momento". "A vida é feita deste equilíbrio e precisamos de perceber também que quando não estamos no epicentro das situações, o nosso corpo tende a ativar medo, mas não adrenalina, e isso, por vezes, causa uma preocupação ainda maior."
Assim, segundo a psicóloga, é importante que ao longo do dia tentemos equilibrar os momentos em que estamos assustados, com os momentos em que refletimos sobre o que podemos e necessitamos fazer face a esta situação de perigo, e os momentos em que nos permitimos abastecer de relaxamento, alegria e diversão. "Todas as pessoas para estarem em equilíbrio precisam desses momentos."
Como transmitir os acontecimentos às crianças
Mais do que estarmos preocupados em filtrar a informação que nos chega, Filipa Jardim da Silva frisa que é essencial haver critério quanto à exposição das crianças aos conteúdos. Apesar de vivermos numa aldeia global, em que as crianças e jovens estão cada mais sujeitas ao contacto com todo o tipo de informação, é importante perceber que a estrutura psicológica destas faixas etárias não é mesma do que a de um adulto.
"Acho que, especialmente no caso das crianças mais pequenas, se elas não nos trouxerem o tema, nós não temos que necessariamente trazer a palavra 'guerra' para cima da mesa. Devemos adequar o nível de informação e até perceber o que é que elas sabem e, tendo em conta isso, explicar. A ideia é criar informação e não pânico."
Apesar de a tendência ser, muitas vezes, dar muita informação e muitos dados, a especialista considera que isso, para as crianças mais pequenas, é um erro. Por outro lado, parte da opinião de que estes momentos podem contribuir para incutir valores como a cidadania ativa, empatia, responsabilidade individual e inteligência emocional.
Psicólogos unem-se para ajudar
Se para os portugueses e para vários cidadãos do mundo está a ser difícil aceitar que uma guerra acontece em 2022, tudo se complica para quem está na linha da frente e para quem vê os seus familiares a passar por esta guerra.
Tendo em conta a situação, em Portugal, há dezenas de psicólogos que já se disponibilizaram para dar apoio psicológico e emocional, pro bono, à comunidade ucraniana residente e à que chegue ao País refugiada da guerra com a Rússia.
"As pessoas que estão a vivenciar na primeira linha estas situações devastadores são pessoas que, inevitavelmente, estão em circunstâncias de criação de trauma psicológico. Se os médicos estão a trabalhar os traumas físicos, os psicólogos têm o papel de trabalhar o trauma psicológico: quer seja nos locais que acolhem os refugiados num primeiro momento, quer seja depois quando todos os países começaram a receber as pessoas que regressam deste contexto", afirma.
A equipa de Filipa Jardim da Silva foi uma das que já se disponibilizou para ajudar os familiares de pessoas que estão a passar pela guerra, ou os refugiados, quando estes chegarem a Portugal.
Ana Carina Valente foi também uma das primeiras profissionais a criar um projeto de apoio no qual conta atualmente com sete psicólogos que darão ajuda à distância (online ou telefone). Os pedidos podem ser solicitados através de e-mail (geral@anavalentepsicologia.pt) ou contacto telefónico (938 502 339).
"Há um ano já tinha reunido uma equipa no âmbito de uma iniciativa solidária para dar apoio a profissionais de saúde, aquilo que fizemos agora foi pegar nessa equipa já formada e reforçá-la, até porque vários colegas se quiseram juntar a nós", esclareceu a psicóloga Ana Carina Valente à MAGG no âmbito deste artigo.
"O que estamos a fazer, enquanto classe, é todos, independente de onde trabalhamos, darmos umas horas por semana enquanto apoio pro bono para conseguir apoiar melhor estas pessoas", remata Filipa Jardim da Silva.